Celso Amorim se aprontava para sair de casa na manhã de 11 de maio de 2010 quando soube que a secretária de Estado americana Hillary Clinton queria falar com ele urgentemente. No dia seguinte, o então chanceler partiria com o presidente Lula para uma viagem que, terminando em Teerã, seria coroada com o gesto mais ousado e controvertido da política externa lulista. Os dois ambicionavam convencer o presidente Mahmoud Ahmadinejad e o aiatolá Ali Khamenei a aceitar um acordo sobre o programa nuclear do Irã, proposto pelos Estados Unidos em outubro do ano anterior, por intermédio da agência atômica da ONU.
Como relata Amorim no livro Teerã, Ramalá e Doha – a ser lançado em março –, Lula e o premiê turco Recep Erdoğan haviam discutido a questão com Barack Obama, em Washington, no início de abril. No encontro, Obama se comportara de forma brusca e dera a entender que, naquela altura, sua prioridade era impor novas sanções ao Irã. Alegou que, com isso, queria evitar um ataque de Israel ao país persa. Lula ficou tão irritado com o tom do americano que cogitou ir embora dos Estados Unidos, onde participava de uma cúpula sobre segurança nuclear.
No dia 20 de abril, porém, Obama voltou atrás. Em cartas idênticas enviadas a Lula e a Erdoğan, disse que a proposta de acordo continuava na mesa. O Irã deveria enviar ao exterior 1 200 quilos de urânio enriquecido; em troca, receberia combustível para seu reator que produz elementos radiativos de uso medicinal. Os iranianos relutavam em despachar o urânio, alegando temer uma quebra de contrato. Na carta, Obama reiterava que havia uma “solução de compromisso”: a Turquia seria a receptadora do material, assim garantindo a barganha. A operação visava criar “confiança mútua” para o início de negociações mais amplas. Também impediria que o Irã continuasse com urânio suficiente para a fabricação de uma bomba.
O presidente brasileiro não respondeu a Obama imediatamente. Esperou que seu chanceler voltasse de uma visita ao Irã e à Turquia com notícias mais frescas. Quando chegou ao Brasil, Amorim contou ter sentido alguma flexibilidade na posição iraniana – e foi isso que Lula escreveu à Casa Branca, no dia 10 de maio. Talvez o vislumbre de um acordo tenha acendido a luz vermelha para Hillary. Na conversa do dia 11 com Amorim, a secretária de Estado acrescentou novas condições às expostas por Obama. Na prática, disse que os termos da carta estavam ultrapassados, porque desde outubro o estoque de urânio enriquecido iraniano havia aumentado.
O ex-ministro afirma que apontou “sem meias palavras” a contradição entre o que Hillary dizia e a palavra do chefe dela. Depois de um “longo silêncio”, ela mudou de assunto e pediu ajuda para soltar três jovens americanos que estavam presos no Irã (a única mulher do trio foi libertada em seguida, depois de gestões brasileiras). “Ela não podia achar que a gente ia dizer: ‘Desculpe, secretária, eu acreditei na carta do seu presidente’”, comentou Amorim numa entrevista no final de janeiro, em Brasília, onde ainda estava para efetuar a transição do Ministério da Defesa, pasta que chefiou no governo Dilma.
Como se sabe, a Declaração de Teerã, de 17 de maio de 2010, atendia aos requisitos da carta, mas foi rejeitada pelos Estados Unidos. Um dia antes, China e Rússia haviam concordado em aprovar na ONU novas sanções contra o governo iraniano. No seu segundo mandato, sem a pressão da reeleição, sem a rival Hillary na diplomacia e com um novo presidente no Irã, mais palatável à opinião pública do que Ahmadinejad, Obama retomaria as negociações com o Irã – que agora tem urânio para fazer não uma, mas sete bombas, caso deseje.
Desde o episódio, no entanto, há uma disputa pela interpretação da correspondência. Sabe-se hoje que Hillary e sua equipe mais próxima foram contra o envio da missiva. Robert Einhorn – assessor especial da secretária de Estado em 2010, em contato direto com o assunto – esteve no Rio há três meses para um seminário na Pontifícia Universidade Católica. “A carta era muito polida, mas deveria ter sido mais honesta, mais franca, mais direta, para explicar que o acordo que havíamos proposto já não podia mais ser aceito”, disse ele à piauí.
Segundo Einhorn, a Casa Branca acreditava que o Irã jamais aceitaria a proposta. “Nesse caso”, continuou, “por que deveríamos adotar uma posição dura com nossos amigos brasileiros e turcos? Houve uma falha de comunicação, e infelizmente ela veio por meio de uma carta do presidente.” Perguntei a Amorim o que ele achava disso. “Se eu quis ser polido com você e te dei um relógio de ouro, eu dei o relógio, não interessa”, respondeu.
A relação entre Hillary e Amorim até que começara bem. Em meados de 2009, numa assembleia de chanceleres da Organização dos Estados Americanos, a secretária fez dele um escudo contra os bolivarianos ao se sentar a seu lado: “Vou me proteger por aqui”, avisou ela. No livro, porém, ele é mais simpático a Condoleezza Rice, responsável pela diplomacia no segundo mandato de George W. Bush.
Em 2007, Condoleezza convidou o Brasil para participar da Conferência de Annapolis, que naquele ano discutiu o conflito entre palestinos e israelenses. Para Amorim, foi um reconhecimento da legitimidade do país em tratar de temas do Oriente Médio – o segundo relato do livro detalha a aproximação promovida por Lula com os países árabes. “Condoleezza vinha do mundo acadêmico, não estava buscando voto. Ouvia com muita atenção, recolhia o que queria. Não vou dizer que Hillary não ouvisse, mas tinha sempre uma agenda política própria”, disse ele.
Apesar da oposição brasileira à política externa de Bush, Amorim é generoso com o republicano. Descreve-o como informal, franco e direto – “Tratava o Lula de igual para igual”. Já Obama tendia ao “paternalismo”. Nicolas Sarkozy, o ex-presidente da França, também sai mal. Ambivalente e dissimulado, fazia juras de amor a Lula, mas agia contra ele nos bastidores. O ex-chanceler disse que nunca discutiu esses antecedentes com Dilma quando ela optou por comprar o caça sueco – e não o francês ou o americano – para a Força Aérea.
O volume de mais de 500 páginas se baseou em notas que Amorim tomava no calor da hora. O ex-ministro se refere repetidamente à crença de Lula na vontade política para resolver problemas difíceis. Certa vez, o presidente sugeriu ao colega israelense Shimon Peres “colocar os cinco melhores chanceleres do mundo numa sala” para produzir um acordo aceitável para palestinos e israelenses. Quando Lula teve a ideia de promover um “jogo da paz” entre os dois lados, porém, Amorim observa que essa crença às vezes ia “além do razoável”.
Amorim volta em fevereiro para seu apartamento no Rio de Janeiro, ao lado do Copacabana Palace. Como único chanceler que ocupou o cargo mais tempo do que o barão do Rio Branco, continuará pondo no papel sua versão da história. O próximo livro deverá ser sobre a vizinhança sul-americana.
O retorno do ex-ministro ao Itamaraty chegou a ser cogitado no final do ano passado, mas o convite de Dilma não veio. Amorim disse que os jovens diplomatas estavam esperançosos de que isso acontecesse, mas logo acrescentou que Mauro Vieira, o escolhido, tem estilo “mais jeitoso e menos abrasivo” do que o dele, e “pode conseguir as coisas gradualmente”. As coisas são verbas e prestígio para o ministério, que anda à míngua. “É preciso levantar a autoestima do Itamaraty, que nunca esteve tão baixa”, afirmou. Na avaliação do ex-chanceler, Dilma manteve a linha geral da diplomacia lulista, mas faltou-lhe intensidade. “Como é a frase do Hegel? A quantidade se transforma em qualidade.”
Dois dos relatos do livro – sobre a Declaração de Teerã e a tentativa de fechar as negociações da Rodada Doha na Organização Mundial do Comércio – terminam em decepção. Ele não se sente frustrado? “Frustrado, sim; arrependido, não”, rebateu. Não por acaso, o ex-ministro reafirma sua célebre boutade no subtítulo – Memórias da Política Externa Ativa e Altiva. “As três narrativas mostram um esforço para criar um mundo multipolar, no qual o Brasil tenha uma posição de destaque”, disse.
Um paradoxo fica evidente nas memórias de Amorim. Dizia-se que o Brasil estava sendo ingênuo em relação ao Irã, que no entanto cumpriu as promessas que fez ao país. A ingenuidade, afinal, teria ocorrido em relação às grandes potências? “Em certas situações você tem que tomar as pessoas pela palavra, senão vai fazer o quê? Ficar de fora de tudo. Nos anos 60 houve um secretário-geral do Itamaraty que dizia que política externa dá bolo. Tem gente que até hoje acha isso, que política externa dá bolo. Então não faz.”