Roberto Amaral

 Sugeridos pela expectativa das próximas eleições – para muitos a possiblidade de mudança com a qual podemos contar –, partidos políticos e fundações as mais variadas, grupos sociais, entidades de classe e sindicatos se voltam para a formulação de planos e programas de governo. O ponto de referência é o quadro trágico de nossa realidade, que deita consequências para além dos  tristes dias de hoje. O concurso civil-militar governante desde 2016 não se satisfaz em destruir o presente do país e de seu povo – condenado à desesperança – e cuida mesmo de nos privar do futuro, mediante o combate sem tréguas ao conhecimento científico, atacando a educação e a cultura de um modo geral, mas concentrando seu poder de fogo o mais letal contra a universidade  pública, centro de produção de algo como 90% da pesquisa acadêmica, seja em ciências sociais, seja em ciências exatas. Universidade onde são formados nossos cientistas e pesquisadores, nossos mestres e doutores, nossos melhores especialistas; onde são cultivadas a ciência e a inovação, sem as quais  não há como cogitar de desenvolvimento, seja econômico, seja social. No mundo da revolução tecnológica, um continuum de avanços  encadeados,  assistimos de braços cruzados à destruição do sistema nacional de ciência e tecnologia. A universidade, porém,  conserva-se aquietada sob o peso de seus interesses corporativos. O que espera para pôr-se de pé? O milagre da fênix? Diante do criminoso projeto do bolsonarismo permanece silente o empresariado industrial, como se esse desastre não lhe dissesse respeito, como se fosse possível pensar em indústria sem desenvolvimento científico-tecnológico. Comprometidas com esse desastre, estão as forças  armadas brasileiras,  como se fosse possível pensar em defesa sem indústria nacional. E se o país não tem como defender-se, como justificar  o custeio de uma estrutura tão cara? Por outro lado, em festa está  o complexo agrário-exportador, exportando minério bruto enquanto o país importa trilhos, exportando matéria-prima para importar produtos manufaturados, exportando soja e milho in natura e proteína animal quando mais da metade da população do país  vive em condições de insegurança alimentar. Ignora o papel da Embrapa no aumento da produtividade agrícola brasileira, e observa com indiferença o desmonte da pesquisa que alicerçou seus lucros. Como na colônia e no império, vive a economia do país, em pleno terceiro milênio, em função das bolsas de commodities, mirando Walt Street para saber a quanto anda a desvalorização de nossa moeda, aumentando juros para combater uma inflação estrutural. Como se fosse um destino irremovível viver na periferia do capitalismo.

Enquanto o capitão Bolsonaro e a súcia de engalanados que o mantém no terceiro andar do palácio do planalto trabalham dia e noite contra o desenvolvimento científico-tecnológico brasileiro, a China acaba de lançar seu computador quântico, o Zuchonhzhi-2. Baseado na tecnologia de fótons de luz, é capaz de atingir a velocidade 100 sextilhões de vezes maior do que os mais rápidos computadores convencionais (Physical Review Letters, 25/10/2021), esses que ainda não fabricamos.

A média das reflexões e das propostas de programas de governo, como a da Frente Brasil Popular, parte do ajuizado pressuposto segundo o qual nada do que é necessário para alterar o presente imediato, ponto de partida para pensar em um novo país, simplesmente aquele no qual os pobres caibam no orçamento, pode ser cogitado sob a atual ordem político-militar,  o que, de logo, define o que fazer. A tarefa primordial para a esquerda brasileira é, pois, a remoção do entulho, para o que, se a canoa não virar, temos encontro marcado em 2022. Para lá chegar, porém, estamos desafiados a construir uma nova correlação de forças político-social capaz de assegurar a mudança, evitando uma nova frustração nacional. É o desafio de construir uma nova maioria, o que pede um discurso que fale sobre o futuro das grandes massas marginalizadas de nosso tempo. Algo que ainda não será a sociedade sem classes, a promessa de bonança futura, quando o pobre vive a tragédia social do cotidiano. Se o ponto de partida é o  indispensável sucesso eleitoral, a efetividade da mudança dependerá da arquitetura de uma nova ordem política fundamentada em um pacto nacional-popular capaz de fazer frente ao pacto das elites, a ordem  da casa-grande, legado colonial de escravismo e latifúndio que sobrevive na sociedade urbana e industrializada.

Em síntese e na fronteira do óbvio, ressalta-se: não basta ganhar, pois é preciso ganhar em condições de executar um programa que, embora ainda muito distante de qualquer sonho revolucionário, precisará ser decididamente reformista, preparado para realizar, ainda nos termos do capitalismo dependente e atrasado, a reforma do Estado, a reforma agraria, a reforma tributária, a reforma política, a reforma do poder judiciário, a regulamentação dos meios de comunicação tecnológicos, a reforma universitária, para citar aquelas mais ingentes. Nesse novo governo, novo porque sustentado por uma nova correlação de forças, o Estado retomará o planejamento governamental e a intervenção na economia como vetor de desenvolvimento, a experiência que, nascida na sequência da “revolução” de 1930, chegou aos anos 1980 com o Brasil ostentando níveis de crescimento em torno da média anual de 10%. Ou seja, ser reformista já será muito, consideradas as condições atuais de luta e o nível da organização social. Reconhecer o atraso político é o primeiro passo para encontrar a porta de saída.

Qualquer plataforma de governo é,  antes de mais nada, um projeto político, o que pressupõe uma visão de mundo e de sociedade. É evidente que no quadro visível a olho nu seria irresponsável as forças de esquerda suporem a existência de condições objetivas para a mudança de mando. Mas o outro lado do voluntarismo não pode ser a renúncia niilista à luta, porque simplesmente a história não acabou, e há, sempre, tarefas por cumprir. Sem descartar o estratégico  que é a ruptura, sabem os socialistas que há   muito o que fazer no sentido do progresso social – ainda nos limites trágicos de nosso capitalismo temporão, atrasado e  dependente. Porque entre nós o enfrentamento da sociedade de classes compreende o enfretamento a uma burguesia que jamais foi progressista e jamais comprometida com o interesse nacional, sempre desinteressada pela democracia e o progresso social. Seu histórico é de serviçal do capital financeiro internacional. Nem mesmo reformista é; pois impedir as reformas meramente burguesas e desenvolvimentistas  propostas por João Goulart foi a justificativa para seu apoio político e  financeiro  ao golpe militar de 1964, e sua adesão, recompensada, à ditadura, até o momento em que os militares se sentiram sem condições de manter o regime, e resolveram negociar uma transição inconclusa para a democracia e o poder civil. Suas restrições ao lulismo têm origem na recusa a qualquer sorte de emergência das massas. A aversão ao varguismo, industrialista e desenvolvimentista, remonta à ligação do ditador reformista com os trabalhadores, e sua veia nacionalista. Essa classe dominante que hoje se banqueteia com o bolsonarismo é herdeira do escravismo e do latifúndio colonial, filha do engenho de açúcar e da lavoura do café; defensora do statu quo, é desafeita ao progresso, inimiga da mudança, senão daquela que signifique a consolidação de seu poder, sobre a terra, o país e sua gente. Mesmo a burguesia industrial, aquela que pôde brotar em meio ao atraso secular, está desvinculada do interesse nacional, conformada com o papel de associada menor das multinacionais.

Nenhum   projeto de futuro imediato (uma formulação que pressupõe “passar a limpo” esses anos de destruição nacional) pode ver a história como um processo  linear, ou o país imune às profundas transformações que se operam no mundo, com a transição da hegemonia político-ideológica e econômica do ocidente para a Eurásia, do Atlântico para o Pacífico, desconcerto que se opera concomitante com a transição da hegemonia político-econômico-científica dos EUA para a China, anunciando traumas profundos nas relações internacionais, mais profundos do que aquelas crises particulares do desenvolvimento capitalista ocidental-europeu que marcaram a humanidade no século passado, com duas guerras mundiais.

Esse “novo mundo” cobra reflexões inovadoras, releitura de lições antigas, o abandono de certezas axiomáticas, eis que estamos diante de fatos novos.

O pano de fundo da história presente é a revolução tecnológica — sob a qual já vivemos mesmo na periferia do capitalismo –, anunciando rupturas das relações de produção e no mundo  do trabalho, cujas consequências apenas se anunciam, desafiando a imaginação dos profissionais da futurologia.   Modificações, por certo, mais profundas do que aquelas que na segunda metade do século XVIII anunciaram a revolução industrial.

Esse imponderável novo mundo de desafios pode estar oferecendo ao Brasil um quadro de alternativas impensável  poucas décadas passadas. Podemos ser, como agora, mero instrumento (sem vez, sem voz, sem querer) no choque das grandes alternativas, repetindo o papel do molusco na guerra entre o rochedo e o mar;  como também poderemos ser ator decisivo, se nos sobrar engenho e arte para construir nosso próprio destino. Se nada podemos esperar da classe dominante brasileira, alienada e forânea, tudo passamos a depender da construção de uma nova maioria nacional.

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Plantão econômico – A inflação, segundo os analistas de mercado, chegará até o final do ano na temida escala dos dois dígitos: 10%. Mas a inflação dos alimentos, segundo cálculos da  PUC-Rio, já está em 15,96%, quando 90% dos reajustes sindicais ficaram abaixo da inflação estimada.

Brava gente – O TSE, finalmente, concluiu que o capitão e o general se valeram de fake news na campanha de 2018 o que constitui crime eleitoral, punível com a cassação dos mandatos. Mas, abrandado a bravura, decidiu que só punirá a prática se os meliantes o repetirem em 2022.

Um gesto que ilumina – A Academia Brasileira de Letras ficou mais brasileira, mais jovem e mais contemporânea com a eleição de Fernanda Montenegro.

Fiapo de esperança – Se ainda sobrevive um mínimo de dignidade no PSB de hoje e no PDT de sempre, suas executivas devem fechar questão e determinar às bancadas na Câmara dos Deputados o voto não à PEC do calote, quaisquer que venham a ser os prejuízos pessoais de um ou outro parlamentar.