Decisões divergentes de Lewandowski e Fux mostram instabilidade e politização na Corte. Proibição de que Lula falasse veio no mesmo dia em que Moro liberou delação da Palocci
O Supremo Tribunal Federal protagonizou, nos últimos dias, uma guerra de decisões entre três ministros da Corte em torno do direito de jornalistas entrevistarem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que está preso desde abril em Curitiba. O imbróglio, que começou na sexta, 28, mostrou que o STF optou por resgatar no Brasil o conceito de censura à imprensa, ao mesmo tempo em que revelou que o Judiciário tem cada vez mais dificuldades de se apresentar como um árbitro imparcial do já tumultuado processo eleitoral, segundo especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.
Uma entrevista com o ex-presidente que estava marcada para acontecer às 11 horas desta terça, 2, em Curitiba, foi cancelada horas antes por determinação do presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, depois de uma sucessão de despachos divergentes, assinados primeiramente pelo ministro Ricardo Lewandowski —que autorizava a realização da entrevista—, e depois pelo ministro Luiz Fux, que proibiu que ela acontecesse, acatando uma solicitação do Partido Novo. Lula aceitou ser entrevistado pelo jornalista Florestan Fernandes Jr., colaborador do EL PAÍS e apresentador do programa Voz Ativa, e pela jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo. Fernandes Jr. e Bergamo haviam entrado com recurso no Supremo, para que a liberdade de imprensa, garantida pela Constituição brasileira, e reafirmada pelo próprio STF quando o tribunal derrubou a Lei de Imprensa da Ditadura Militar em 2009, fosse respeitada. Nesta quarta, 3, mais um capítulo: Lewandowski voltou a autorizar as entrevistas, mas submeteu a decisão, mais uma vez ao presidente do Supremo.
Tudo começou na manhã de sexta, 28, quando Lewandowski acatou o recurso dos jornalistas para que realizassem no final de semana passado a entrevista na sede da Superintendência da Polícia Federal, onde Lula está preso. Assim que o despacho do ministro foi liberado, os jornalistas viajaram para Curitiba com as respectivas equipes. Mas, na noite da mesma sexta, Fux, que é vice-presidente da Corte, suspendeu os efeitos da autorização dada por Lewandoswski, sob o argumento de que a veiculação das declarações de um candidato que teve seu registro cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), como é o caso de Lula, poderia causar “desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais”.
Na segunda logo cedo, os advogados de Florestan Fernandes Jr. entraram com outro recurso no Supremo, acolhido novamente por Lewandowski, que expôs em seu despacho o azedume com a postura de Fux: o magistrado considerou a decisão do colega com conteúdo “absolutamente inapto”, com “inescusáveis erros”. “Com efeito, o pronunciamento do referido ministro [Fux], na suposta qualidade de presidente em exercício do Supremo Tribunal Federal, incorreu em vícios gravíssimos” . Na noite desta segunda, foi a vez de Toffoli entrar em cena. Enquanto presidente do Supremo, ele determinou que a posição de Fux fosse respeitada e que Lula não desse entrevista até que o Plenário da corte analisasse o caso, o que não tem data para ocorrer. O assunto não consta, por exemplo, na pauta de votações desta quarta-feira e a tendência hoje na Corte é que ele não seja analisado em breve.
Para Taís Gasparian, advogada especializada em mídia e Internet, diante do confronto aberto entre os dois ministros, não cabia a Toffoli outra saída que não fosse se manifestar como o fez na noite de segunda, quando cancelou novamente a entrevista com Lula. No entanto, ela ressalta que o Plenário do STF deveria se posicionar no sentido de permitir a entrevista antes do primeiro turno. “O problema não é do jornal, do Judiciário ou do PT. É um problema da sociedade que não poderá ter informações suficientes justo no momento em que mais deveria ter informação”, diz. “[A decisão do ministro Fux] retira do conhecimento uma informação, isso é censura, não tem dúvida”, conclui.
A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) também se posicionou nesse sentido, assim que Fux cancelou os efeitos da decisão de Lewandowski. “A Abraji vê com extrema preocupação o fato de ter saído do Supremo Tribunal Federal, guardião máximo dos direitos estabelecidos na Constituição, uma ordem de censura à imprensa e de restrição à atividade jornalística”, disse a entidade em nota.
Para especialistas em Direito, a ciranda de decisões do Supremo traz forte instabilidade num momento em que o país precisa de clareza. “O Judiciário só está contribuindo para gerar mais dúvidas e tornar as eleições mais tumultuadas”, avalia Gilson Dipp, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O magistrado afirma ainda que não há previsão normativa para que um ministro do Supremo casse uma decisão de um colega que tem hierarquicamente a mesma posição, como Fux fez com Lewandowski. Para Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a Corte não está cumprindo um princípio básico do Direito. “O Judiciário tem o ônus de não deixar nenhuma dúvida sobre a imparcialidade da sua ação. Esse ônus não está sendo cumprido”, avalia Mafei.
O episódio trouxe de volta à memória outro caso envolvendo o ex-presidente, o atabalhoado tiroteio de liminares em 7 de julho entre o desembargador Rogério Favreto, o juiz Sergio Moro e magistrados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em torno de uma ordem de liberdade em favor do petista. A sucessão de fatos foi estranhamente familiar: um despacho de Favreto concedendo liberdade à Lula que logo depois foi cassada por Moro; o desembargador reafirmou sua decisão, novamente ignorada, e o ex-presidente permaneceu detido por determinação do presidente do TRF-4, Thompson Flores. Para os especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, as semelhanças entre os episódios não param por aí: ambos retratam um Poder Judiciário desgastado e com cada vez mais dificuldades de se apresentar como um árbitro imparcial neste período eleitoral.
Politização no Judiciário
Para piorar a sensação de que o Judiciário se rende a ser partícipe do xadrez político, no mesmo dia em que os membros do Supremo optaram por censurar a entrevista com Lula, o juiz Sergio Moro liberou a delação do ex-ministro Antonio Palocci, que foi feita em abril. Um movimento questionável depois de a entrevista com o ex-presidente ter sido proibida por um membro do Supremo alegando que “há elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições”. A decisão também afirmava que, caso a entrevista já tivesse sido feita, não poderia ser publicada — isto é, ordenou sua censura prévia. Fux lembrou ainda que TSE proibiu Lula de praticar atos de campanha. “Todavia, a determinação foi reiteradamente descumprida, sendo que a Corte Superior Eleitoral deferiu cinco liminares para a suspensão de propagandas contendo referências ao requerido. Dessa maneira, resta evidente a recalcitrância deste na observância da decisão judicial que lhe vedou a prática de atos de campanha, configurando-se o periculum in mora pelo fato de que a pretendida entrevista encerraria confusão no eleitorado, sugerindo que o requerido estivesse se apresentando como candidato ou praticando atos que lhe foram interditados”.
O argumento do ministro é criticado por Dipp. “Pode gerar confusão [na decisão do eleitor]? O que não pode é derrubar uma decisão judicial no facão pelo simples fato que pode gerar confusão”, reage. “Liberaram a delação do Palocciseis dias antes do pleito quando o candidato do Lula está num posição absolutamente confortável nas eleições. Isso é a politização clara e evidente do Judiciário”, diz.
Desde julho, quando Lula era pré-candidato do PT, a Vara de Execuções Penais do Paraná, responsável pelo caso de Lula, proibiu que o ex-presidente conceda entrevistas. Os advogados da Folha argumentaram que esse veto estava desrespeitando o resultado de um julgamento do STF que, em 2009, derrubou a antiga Lei de Imprensa no Brasil e reforçou o princípio de liberdade de expressão. A tese foi acatada por Lewandowski quando liberou as entrevistas na semana passada.
Tanto Dipp quanto Mafei apontam controvérsias pelo fato de Lewandowski ter utilizado o precedente criado pelo julgamento da Lei de Imprensa —algo de caráter genérico— para decidir sobre um caso concreto. Mas foi o despacho seguinte, do ministro Luiz Fux, o que gerou mais críticas dos especialistas. Mafei, por exemplo, classificou a tese levantada por Fux de “absolutamente equivocada”. “No mundo inteiro todo mundo reconhece que o antídoto contra notícias que enganam pessoas, as fake news, é o trabalho da imprensa profissional e do jornalismo. Chega a ser constrangedor de tão autoritário o argumento de que um juiz pode proibir um artigo de ser publicado num veículo profissional de imprensa para proteger um eleitor que não saberia se informar sozinho”, ressalta o professor.
Crise na Corte
O embate entre os dois ministros abriu uma crise na Suprema Corte. Tanto Lewandowski quanto o presidente do STF, Dias Toffoli, discutiram o tema num evento realizado em São Paulo na segunda-feira. Lewandowski disse, segundo relatos publicados na imprensa, que reafirmaria a sua decisão, o que de fato fez. Cezar Brito, advogado que representa o jornalista Florestan Fernandes Jr., diz que Fux não deveria ter suspendido a decisão de um ministro, algo que só poderia ter sido feito pela turma à qual pertence. Brito chama a atenção, ainda, para o fato de que a decisão de Fux acatou um pedido do Partido Novo para que a liminar de Lewandowski liberando a entrevista fosse suspensa. Segundo ele, isso não cabia, uma vez que se tratava de uma decisão de mérito, e não provisória. Além disso, a legenda não teria a prerrogativa de fazer esse pedido à Corte. “O Partido Novo é um órgão privado, e a legislação prevê que liminares só podem ser solicitadas por órgãos públicos [como o Ministério Público, por exemplo]”, diz ele.
Há outros pontos controversos na decisão, diz Brito. “Quando Lula é impedido de dar entrevista ferem-se o pacto San José da Costa Rica [convenção dos Direitos Humanos] e a reiterada jurisprudência do Supremo. Assim, ele é o único cidadão brasileiro proibido de exercer seu direito de expressão e de conceder entrevista”, afirma.
Gilson Dipp, que já esteve também à frente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), avalia por sua vez que a discussão sobre se Lula poderia ou não dar entrevistas durante o processo eleitoral é complexa e que há margem de interpretação. “Outras entrevistas com presos ocorreram, mas não num período eleitoral e num contexto que poderia sensibilizar o voto das pessoas. Mas isso não e diz respeito às eleições. Porque eleições são vontade popular e não podem ser influenciadas indevidamente”, diz.
No entanto, ele considera que o atropelo das decisões de um ministro pelo outro só contribui para aumentar a instabilidade e para inflar um protagonismo da Justiça no processo eleitoral que não é positivo. “Não se sabe se o relator [Lewandowski] inicialmente poderia decidir daquela maneira; certamente o ministro Fux não poderia decidir daquela maneira e o presidente [Toffoli] que queria apaziguar cria uma situação em que ele pode até apagar o fogo agora, mas esse fogo que vai crescer logo depois”, conclui.