por: Sérgio Sérvulo da Cunha

Desde o término da Inquisição sabemos o que é matéria da jurisdição estatal. Em outras palavras, que tipos de comportamento o Estado pode impor às pessoas. Custou muito, causou muito sofrimento, descobrir que a pessoa humana tem fins próprios, para cuja proteção se erige o Estado; que ela está, por sua transcendência, acima do Estado, e que a essência da democracia consiste em pôr limites ao poder do Estado. Ou seja: descobrir a diferença entre a dimensão da moral e a dimensão do Direito.

A moral diz respeito às opções fundamentais, aos fins que a pessoa escolhe por si mesma, concernentes à sua concepção de vida, ao seu aperfeiçoamento e realização como ser humano. Resumindo: ela diz respeito à esfera da liberdade. A uma esfera impenetrável pelo Estado, na qual a pessoa responde perante sua própria consciência.

A distinção já estava lá quando Jesus, salvando a adúltera da lapidação, lhe diz: “vai e não peques mais”. E aos lapidadores (no que se incluem os incineradores do próximo): “aquele que não tiver pecado, atire a primeira pedra”.

Se fosse possível assinalar a data em que essa esfera de liberdade começou a ser reconhecida, precisaríamos recuar talvez a Spinoza (1632-1677) e a Beccaria (1738-1794), isto é, à institucionalização do liberalismo (a doutrina das liberdades). Especificamente, a partir de quando se generalizou o entendimento de que não há crime sem um dano concreto (isto é, aferível) a outrem (aí incluídos os crimes de perigo, em que se assume o risco de causar o dano).

Entretanto, nem todo ato danoso é criminalizável. Nem todo ilícito é um crime, e na decisão que criminaliza ressaltam elementos de conveniência e oportunidade, sobretudo quanto à eficácia da sanção aplicável. Shakespeare tangencia esse tema no “Conto de uma noite de verão”: Shylock, como credor, via-se no direito de arrancar um naco de carne da perna do seu devedor.

Se me perguntarem se sou contra o aborto, responderei sim. Somos responsáveis pelo futuro, não só pelo meio ambiente e pelos conhecimentos que deixaremos às gerações futuras, mas pela própria existência das gerações futuras.

Entretanto, se me perguntarem se sou contra a criminalização do aborto também responderei sim. Porque ela é inútil para o seu alegado propósito. Em outras palavras: criminalizar o aborto não é a proteção adequada, necessária e suficiente à vida do nascituro. Exemplo: em Portugal, onde a interrupção da gravidez é permitida nas dez primeiras semanas (conforme referendo de 2007), diminuiu expressivamente o número de abortos, e cessaram as mortes de mulheres durante o procedimento. Os dados existentes quanto ao aborto no Brasil, bem diferentes e impactantes, são acessíveis na internet.

Também sou contra a criminalização do aborto porque atira sobre a mulher – potencialmente sobre todas as mulheres, mas particularmente sobre esta mulher, na solidão de sua dramática opção – a responsabilidade, que todos temos, de proteger a maternidade.

Mas antes de perguntar às pessoas se elas são favoráveis à descriminalização, importa perguntar se elas querem mandar, para a cadeia, as mulheres que, postas na difícil contingência de abortar, tomaram essa decisão. Porque o aborto foi criminalizado sem que nos tenham feito essa pergunta.