por: Sérgio Servulo da Cunha
Theo, meu neto de quinze anos que mora em São Paulo, como tarefa escolar fez comigo uma entrevista, sobre as minhas memórias.
Quando apareceu com um gravador, e começou a fazer as perguntas que tinha preparado, vi que a entrevista seria sobre minhas memórias pessoais da ditadura.
Ele queria detalhes da passeata que os estudantes santistas, capitaneados pela AUBS de João Moreira Sampaio Neto, fizeram no dia 5 de julho de 1968, da qual participaram Esmeraldo Tarquínio, Osvaldo Justo, Gastone Righi, Francisco Prado de Oliveira Ribeiro, Nelson Antunes Mattos. Queria saber o que aconteceu quando fui obrigado a fugir, poucos dias depois. Sobre o dia em que fui preso, e como fui preso. E sobre a detenção, no DOI-CODI, no Ibirapuera, de minha irmã, que era estudante universitária e tinha um colega filiado a organização da resistência armada. Por último, queria saber sobre os reflexos da ditadura na vida pessoal e familiar, e se alguma vez eu pensara em deixar o Brasil.
Porque, então, energúmenos gostavam de colar no vidro dos automóveis: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Conhecidos meus, entrevistos de longe, atravessavam a rua para não cruzar comigo. Eles iam salvar o Brasil da corrupção, e ainda não sabiam que anos depois, no governo Figueiredo, apoiariam Paulo Maluf para presidente. Meu amigo Sérgio Paolozzi gosta de dizer: o homem se acostuma facilmente com a servidão, mas dificilmente com a liberdade.
A entrevista foi curta, meia hora. Tratamos, como se vê, do que está no nível das coisas comuns, superficiais, sem adentrar o plano das confidências, das intimidades, ou do que fica dentro da alma.
Mas doeu como um nervo exposto. Não desconfiei de que, ao seu fim, estaria tão exausto.
Às vezes, na vida, para sobreviver, outras vezes por dignidade, as pessoas precisam aparentar uma coragem que não têm. E só mais tarde ganham consciência do que experimentaram, quando as lembranças trazem à tona o sofrimento reprimido.
Eu era um jovem advogado e professor universitário. Estava iniciando minha vida profissional, e era filiado ao MDB, o partido da oposição consentida ao governo ditatorial. Só durante o serviço militar tinha visto um revólver.
Mas foi com dois deles, um de cada lado da barriga, que me levaram num jipe, para destino incerto.
Era 13, sexta feira. Um dia que acordara cheio de presságios. Comentávamos a situação, em mesa de bar, e quando deu meia noite alguém disse: pronto, o dia acabou e não aconteceu nada. Mas Roberto Inácio, que era presidente do Centro Acadêmico Frei Gaspar, da Faculdade de Jornalismo, ponderou sabiamente: pode ser que tenha acontecido, e ainda não saibamos.
De madrugada, acordei com pancadas na porta. Olhei da varanda, e a rua estava verde oliva, coalhada de viaturas militares. Disseram que o coronel fulano queria falar comigo. Arrombaram, com um pé de cabra, a porta de casa. Vasculharam os cômodos, acordaram meus cinco filhos pequenos, circularam entre eles com metralhadoras. Nenhuma janela, na vizinhança, se entreabriu.
Fui trancafiado com outros numa cela grande, no quartel do 2º BCCL, em São Vicente, interrogado. Queriam saber se eu era comunista, se conhecia a letra do hino nacional. Mas o coronel, que tanto queria falar comigo, sequer apareceu. Dois dias depois fui solto, sem um pedido de desculpas. Deviam ao menos ter-me dado uma carona de volta a Santos, pago o conserto da minha porta. A educação, realmente, não é a maior virtude dos militares. Mas se até hoje não pediram desculpas à nação, como pediriam a este pobre marquês?
Outros sofreram mais, bem mais.
Com pessoas idosas acontece isso. Se emocionam facilmente, e suas memórias, às vezes, se vestem de lágrimas.