À direita e à esquerda, prevalece a tese de que a culpa é da política e do Estado, enquanto os interesses organizados do mercado sequer são percebidos
Assisti há poucos dias a um dos capítulos da série “Alegorias do Brasil”, do cineasta Murilo Salles, sobre o tema do patrimonialismo como ideia central para a compreensão do Brasil. Muitos intelectuais foram convidados a participar, inclusive eu. É incrível a penetração e a continuidade desta ideia, falsa, frágil e insidiosa como ela é, em todos os espectros, da direita a esquerda, da nossa inteligência.
Raymundo Faoro continua a ser a referência principal da imensa maioria, dando razão à inclusão de seu nome na “santíssima trindade” do liberalismo conservador brasileiro, juntamente com Sérgio Buarque de Hollanda e Fernando Henrique Cardoso.
O mais curioso para mim foi o fato de que as categorias abstratas da ideologia liberal são a referência da análise de todos os entrevistados. Todos partem de uma oposição abstrata entre o “privado” e o “público” e imaginam sinceramente que falam de coisas reais e palpáveis.
Toma-se as ficções jurídicas mais abstratas que se referem às especificidades dos contratos no mercado e no Estado moderno e, sem nenhuma mediação e sem nenhuma reflexão empiricamente informada, imaginam que estão se apropriando do mundo social pela mera referência a essas categorias vazias de qualquer conteúdo concreto.
Para o intelectual, ao mesmo tempo preguiçoso e pretensioso, esse tipo de dedução fácil e abstrata de uma realidade complexa é um bálsamo. Todas as dúvidas e todo trabalho de investigação estão resolvidos com a ajuda conveniente de um palavrório inútil que nada explica, mas que mantém, todavia, a aparência de erudição e inteligência. É isso que parece realmente importar.
A noção abstrata de “público” refere-se ao Estado republicano, ou seja, segundo a ideologia liberal, um Estado neutro e acima dos conflitos de interesses da sociedade. Ninguém atenta ao fato de que tal Estado não existe nem nunca existiu em lugar algum, sendo em todo lugar uma ideologia, ou seja, uma ideia destinada a distorcer a percepção da realidade para a legitimação de interesses específicos.
O “privado” por sua vez é pensado também como uma categoria abstrata que se oporia ao “público”. Para a imensa maioria, esse “privado” é percebido como a representação de interesses de “pessoas privadas” no Estado como fator que inibe a realização do interesse “público”.
Aqui, a baboseira ideológica do liberalismo adquire ares de interpretação profunda da realidade concreta. Nada mais enganoso. O que está por trás dessa fraude é a percepção da existência de “interesses organizados” apenas no Estado e na política. A qual se contraporia à ação deletéria de “indivíduos” privados.
Nesta fraude intelectual o mundo fica simplesmente de ponta cabeça. Primeiro os interesses organizados mais fortes e importantes, ou seja, os interesses da classe dos proprietários do mercado, se torna completamente invisível.
O mercado como lógica institucionalizada da acumulação infinita e como dinâmica que sepulta a livre competição e que leva a monopólios e oligopólios de preços e de todos os recursos sociais é tornado literalmente invisível, substituído pela ação de indivíduos privados egoístas.
O mercado e a sociedade perdem, portanto, qualquer estrutura organizada e são substituídos pela ideia fácil de senso comum de que representam mera soma arbitrária de indivíduos. A ideia pré-cientifica do contrato social como mera adição de indivíduos soltos no mundo é generalizada para toda a sociedade e muito especialmente para o mercado.
Como sempre, o mais irritante é que essas ideias, que não valem um vintém furado e só servem para legitimar interesses injustos e elitistas, são proferidas como se fosse conhecimento profundo e crítico. Procurei demonstrar em diversos livros que essa ideia dominante entre nós é prova da hegemonia de um liberalismo rastaquera e elitista que apenas torna invisível o saque e a rapina real da sociedade e do Estado pela classe dos proprietários.
Como o mercado sequer é percebido como interesses organizados para o saque que pratica, por meio de instrumentos privados e de Estado, também é invisível. E quem defende essa tolice ainda imagina que alerta a sociedade contra a injustiça social cometida, claro, apenas pela política quando eleita pelo sufrágio universal.
Na verdade, servem para legitimar ações como o serviço sujo da Lava Jato, que protege o mercado, sua mídia e o próprio judiciário, e transforma unicamente o Estado e a politica, quando eleita pelo voto, em bode expiatório para o saque real dos proprietários e rentistas do mercado.
O curioso também é que para alguns dos poucos entrevistados de esquerda, a ideia de que é o mercado que se assenhora do Estado e não o contrario é até percebida. Mas logo em seguida joga-se tudo na vala comum do patrimonialismo. O conceito de patrimonialismo passa ser uma única confusão, indicando coisas contrárias na realidade concreta.
A balela do patrimonialismo só serve para confundir as hierarquias entre ideias que permitem separar o essencial do secundário, que é a grande missão da ciência verdadeira, e para que que as riquezas continuem rumo ao bolso de uma meia dúzia.
por: Jessé Souza