Em novo livro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso conclama o país a buscar a luz sem dar a lição de como deixar para trás o túnel escuro. Leia o artigo de Mario Sergio Conti.

Há algo de tocante em Crise e reinvenção da política no Brasil, de Fernando Henrique Cardoso. Aos 86 anos, o ex-presidente tem a pachorra de acrescentar outro livro a sua bibliografia, que ultrapassa os 30 títulos. Esse último não se limita a transcrever o que fez e pensou no passado, como nos três volumes lançados dos Diários da Presidência. O registro da história, ainda que essencial, não o satisfaz. Seu interesse imediato é compreender o charco no qual o Brasil atolou. E mesmo ajudar a desatolar o país não lhe basta. O crucial, para ele, é acender os faróis para enfrentar o futuro tempestuoso que vem aí. Daí sua impaciência com a pasmaceira dos políticos. É dirigida a eles a irritada conclamação: “Há que olhar para a frente em todos os sentidos. Lanterna na proa e não na popa”.

A sensação de urgência, o inconformismo em ver o Brasil marcar passo, perpassa o livro. O afã em responder à crise e oferecer ideias abrangentes é um trunfo de Crise e reinvenção. Ainda mais nestes dias em que o pensamento dos chefes dos partidos é de curtíssimo prazo e tem uma ambição dupla e exclusiva: salvar a própria pele e eleger o próximo presidente. A velocidade em lançar o debate, contudo, cobrou um preço: a exposição atabalhoada da crise e desleixo na argumentação. Como nasceu de entrevistas com dois amigos — o diplomata Miguel Darcy de Oliveira e o cientista político Sergio Fausto —, o livro tem uma oralidade desagradável. O registro falado é bom para contar casos, mas não para destrinchar uma realidade esgarçada e confusa. A catadupa de opiniões, determinada pela dinâmica da conversa, às vezes se sobrepõe à concatenação de dados econômicos e sociológicos. A ausência de notas de rodapé e de indicações bibliográficas reforça a impressão de passeio ao acaso.

Quando analisa a oposição entre modernidade e contemporaneidade, por exemplo, o ex-presidente saca assim, do nada, duas frases sobre o Uber. Em vez de iluminadora, a referência é uma concessão ao dernier cri metropolitano, já que ele mesmo reconhece que táxis desregulamentados não podem substituir o transporte de massa — metrôs, trens e ônibus. O mesmo vale para o emprego de termos novidadeiros. “Narrativa” aparece 16 vezes; “resiliência”, oito; “empoderar”, duas. Ele escreveu até, que Antonio Candido o perdoe, “compliance”. Essas expressões são equivalentes semânticos de tatuagens. Ficam bem na pele de gente jovem, mas não na calejada escrita de um vetusto acadêmico.

Mesmo no terreno que lhe deveria ser sólido, o da precisão histórica, o livro claudica. Tal e qual um comentarista sem ter o que dizer, o ex-presidente resume a crise assim: “Gramsci dizia que nesse tempo incerto da passagem do velho para o novo surgem muitos sintomas de desencanto. A desmoralização da política é um deles”. O revolucionário italiano escreveu a frase no final dos anos 1930. Não usou “desencanto”, e sim “sintomas mórbidos” e “monstros”. Eram imagens para o fascismo que avançava, ao qual contrapunha a aliança entre os trabalhadores do Norte industrializado e os camponeses do Sul retardatário, sob a liderança do Partido Comunista.

Retirada de seu contexto, emasculada e mal traduzida, a frase vira um chavão do tipo “sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere”. É evidente que o ex-presidente sabe isso de trás para diante — estudou o marxismo a fundo e militou no PCB de 1949 a 1954. Se optou pelo Gramsci light, foi para demonstrar que com Crise e reinvenção não se pretende Dependência e desenvolvimento na América Latina. É um livro para instigar e alargar o debate, e não para construir uma nova teoria da dependência. Tampouco presta para aprofundar ou reformular a tese antiga. O papel de agitador de ideias implicou que Fernando Henrique margeasse o brejo da crise — o sistema político — com o cuidado de não afundar o pé no lodo tucano.

A estratégia seletiva resultou numa torrente de censuras ao PT. O partido é citado 71 vezes, todas elas depreciativas. Lula é malquisto 58 vezes: é de “mestre do ilusionismo” para baixo. Já Dilma, cujo governo foi bem pior que o de Lula, e a quem cabe a parte do leão na crise, é citada apenas 28 vezes. Além de mostrar como é consistente a animosidade de FHC para com seu sucessor, as invectivas contrastam com o silêncio obsequioso em relação ao PSDB. O partido que ele fundou e liderou é citado apenas 30 vezes, e sempre com a cautela de isentá-lo da roubalheira. Dos três candidatos tucanos ao Planalto que vieram depois dele, não cita Aécio nem Alckmin; Serra recebe dois elogios tépidos.

No mais das vezes, suas críticas ao PT têm cabimento. Ao falar dos descalabros na Petrobras e na Eletrobras, ele tem razão quando diz: “Nunca antes na história deste país se lesou tão gravemente o patrimônio público sob o manto do interesse nacional e popular”. Tem menos credibilidade quando sustenta que em São Paulo, governado há duas décadas pelo PSDB, “não há indícios de corrupção sistêmica”. Mas, nesse período, as duas maiores obras, o metrô e o Rodoanel, foram capitaneadas por empreiteiras. As mesmas que corromperam dirigentes petistas e se assenhoraram da Petrobras e da Eletrobras. A tecnologia para desviar centenas de milhões de dólares do Erário foi desenvolvida por um prócer tucano das Alterosas. Se não é sinônimo de corrupção, o PSDB é parte do problema. É por isso que, investigados ou réus, seus dirigentes viraram rebotalhos. O alto tucanato se adaptou aos esquemas da burguesia pós-ditadura com a mesma cupidez vulgar do comissariado petista. Entretanto, só uma das castas recebe reprimendas de FHC.

É de praxe, no reino amoral da realpolitik, que políticos não admitam ter coonestado com a espoliação. Ou que foram ingênuos. Ou que estiveram ligeiramente cegos. Há que aguentar o tranco e não cuspir no prato em que se comeu, dizem eles. De um intelectual crítico, contudo, ainda que seja temerário esperar um mea-culpa explícito, aguarda-se ao menos que discuta o problema. Com boa-fé e em profundidade. A corrupção, todos concordam, é um problema. Para acabar com ela, não basta a tão decantada vontade política. Nem repetir até cansar que muita corrupa e pouca saúde os males do Brasil são: o sétimo mandamento existe desde que Charlton Heston desceu do Sinai com as Tábuas da Lei, e no entanto se continua a roubar. Sem estudar um problema nacional, sem entendê-lo e teorizá-lo, cai-se em preceitos peremptórios, mas genéricos e irrealistas: é preciso isso, é necessário aquilo, é imperioso melhorar a saúde, a educação, a segurança. Em seus piores momentos, felizmente infrequentes, Crise e reinvenção tem algo da litania da Oração aos moços, de Rui Barbosa. Compreende-se: um dos sintomas da crise é a crise de sua interpretação. São tantos os problemas, e tão cabeludos, que fica difícil hierarquizá-los. Por qual deles começar?

Salvo engano, os dois problemas centrais eleitos pelo ex-presidente dizem respeito à desigualdade social e ao financiamento do Estado. Ele escreve que a desigualdade brasileira é obscena — afirmação com a qual, como no caso da corrupção, todos estão concordes. Para minorá-la, advoga que o Estado supra as necessidades básicas do povo. Assim, quase que por si só, a desigualdade diminuiria. Ocorre que, em seu entender, os interesses corporativos permearam e dominam a máquina estatal. São interesses palpáveis, encarnados em milhões de pessoas: juízes, professores, parlamentares, militares, médicos, ministros, policiais, técnicos variados e funcionários públicos em geral. Proporcionalmente, eles têm melhores salários e se aposentam mais cedo que os trabalhadores de empresas privadas. O ex-presidente não esmiúça o assunto, mas dá a entender que os salários e benefícios de uns e outros devem ser equiparados — por baixo. Ou seja, aqueles que ganham mais serão equiparados aos que recebem uma merreca. Como o funcionalismo sabe disso, e está mais bem organizado, é remota a chance que eleja governantes que propugnem a redução em seus ganhos, mesmo em prol do hipotético bem da pátria. Daí a democracia não ser um ponto pacífico, sobretudo na elite: pelo voto, dificilmente tais medidas são aprovadas. É preciso que um governante sem votos, e em fim de linha (tudo bem, Temer?), tente empurrá-las goela abaixo dos prejudicados.

De um intelectual, se é temerário esperar um mea-culpa explícito, aguarda-se ao menos que discuta a corrupção com boa-fé e em profundidade. Todos concordam que ela é um problema, mas, para combatê-la, não basta vontade política

FHC fala en passant de reforma fiscal, de taxar para valer os ricos, de modo que tenham participação expressiva no financiamento do Estado. Mas coloca tantos óbices a essa reforma, e tanto condena o corporativismo dos barnabés, que fica óbvia sua antipatia à ideia de diminuir a desigualdade social de maneira direta. Ou seja, por meio do controle de capitais, de ressalvas à acumulação de patrimônio e de restrições ao direito de herança. Dá então uma no cravo (o Estado deve gastar o que tem) e outra na ferradura (o Estado deve dar educação, serviços médicos e coibir o banditismo), mas seu ponto de apoio é a diminuição dos ganhos do funcionalismo. Não parece que o “polo popular, democrático e progressista”, que ele advoga no início do livro, caso se efetive, venha a adotar tal visão do problema. Ao apostar na disputa entre trabalhadores do setor público e os do privado, parece adotar uma modalidade sui generis da luta de classes: a luta de assalariados contra assalariados, de maneira a não mexer nos interesses dos proprietários. Em contrapartida, a história nacional ensina que os proprietários, ao verem seus bens sob ameaça, prescindem da democracia e partem para o pau.

O problema existe, persiste, aumenta, se afigura intratável e caminha para um desenlace estrepitoso. É um problema novo, mas que recoloca questões irresolvidas ao longo de toda a República. Um Luciano Huck ou um João Doria Jr. — que Fernando Henrique identificou com “o novo” — parecem incapazes de dar conta dele. Porque ambos têm a estampa da República Velha, agora em versão janotinha. O conflito distributivo não é uma questão para o marketing. Ele coloca em xeque a organização e o mando da sociedade. O ex-presidente, otimista em tempo integral, repete 17 vezes a palavra “esperança”. Oxalá tenha razões para ela. Tomara que o polo democrático, popular e progressista vingue. E mude o Brasil.