por: Jânio Freitas
Todos os dias são de assassinato de batalhadores por sobrevivência, direitos humanos e justiça
Um país comovido é de uma beleza dramática que a história não é pródiga em oferecer. Marielle Franco era um nome pouco menos que desconhecido no país. Centenas de milhares, no entanto, em inúmeras cidades, uniram o pesar e a indignação pelo assassinato de uma batalhadora. E sem que os transbordassem em qualquer momento de desatino. Apenas conscientes e determinados.
Não por acaso, isso acontece nos 50 anos do assassinato em março de 1968, pela bala de um oficial da PM, do estudante Edson Luís de Lima Souto aos 18 anos, em um protesto contra a comida repulsiva no Restaurante dos Estudantes, Rio. Sem desordem alguma, seu corpo foi levado nos braços de centenas de colegas para a Câmara de Vereadores. De onde foi levado até o distante cemitério, mais do que uma centena de milhares em marcha, sem um só ato bruto para indicar o sentimento geral de revolta.
A coincidência no calendário não foi ocasional: todos os dias são de assassinato de batalhadores pela justiça, por direitos humanos, pela sobrevivência, e em qualquer mês Marielle coincidiria com vítimas das forças homicidas.
Nos dois Mato Grosso, índios que defendem o pequeno restante de suas terras são mortos, desaparecem ou, em número crescente, se suicidam em último apelo à paz. Lavradores em luta contra as tentativas de condições escravistas são mortos sem sequer valer um inquérito criminal. Sindicalistas pagam com a vida o interesse por leis trabalhistas. Nem tomamos conhecimento dessa realidade, submetidos a noticiário restrito e condicionado.
Se houvesse dúvida sobre a leviana inutilidade do Ministério da Segurança Pública, que apenas reúne no organograma do governo os setores ditos de segurança, o seu primeiro mês já daria a resposta conveniente. No Pará, por exemplo, está retomado o extermínio de lideranças dos movimentos sociais. Nas últimas semanas, dois atentados fatais. Mas, ainda que possa ser ativo e bem intencionado, o ministro Raul Jungmann só mostrou interesse pelo Rio. Sua principal atividade parece ser a de falar com repórteres, sem constar uma só palavra sobre o que ocorre no Pará. Ou em outro estado, à sua escolha.
O Rio é a vitrine. Sobretudo para político. Mesmo que em gafes, como Jungmann impressionado porque o “Rio reclama de dia contra o que consome de noite”. Curiosa maneira de dizer, embora sem desejar, que em seu estado e nos demais o consumo é de dia e de noite. O que, na verdade, é também o que faz o Rio.
Agora, outra novidade: os (bons) resultados da intervenção vão aparecer em três a quatro meses. Típico de políticos: venda e fatura do otimismo, com improvisação de culpa alheia para o resultado real. E a mais recente oferta das enganações: “o crime no Rio tem 5.000 fuzis”. Não há como saber quantos são. Nem sequer por aproximação. As correntes do crime nem precisariam de tanto para manter seus domínios, de difícil acesso.
A comoção com um assassinato tão brutal quanto perceptível como eliminação é informativa na medida em que reproduz duas comoções em massa. A da morte de Getúlio mostrou aos comandos militares menos passionais e mais lúcidos, em torno do ministro Lott, que um golpe do lacerdismo contra a posse de Juscelino lançaria o país no desconhecido. Deram eles o golpe contra os golpistas.
A comoção com o assassinato de Edson Luís e com a decorrente passeata chamada dos Cem Mil, de fato muito mais, abriu as portas para a frustração com a ditadura, que dali até cair não teve mais o sono fácil.
Não é sem razões muito profundas, como podem ser a saturação e uma consciência definitiva, que um país vive a sua comoção com a maturidade vista na celebração por Marielle. O que isso nos diz, ainda não sabemos.
Edson Luís nasceu em Belém, em 24 de fevereiro de 1950, e morreu no Rio de Janeiro, em 28 de março de 1968, aos 18 anos, assassinado pela Polícia Militar durante uma manifestação estudantil no Restaurante Calabouço, no centro da cidade.
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