Tenho a “A Marcha” de E. L. Doctorow – vencedor do Prêmio PEN-Faulkner de 2006 – como um dos mais poderosos romances americanos de língua inglesa das últimas décadas. O grande autor de “Ragtime” narra a caminhada de guerra do General William Sherman, com seus 60 mil homens, saqueando plantações sulistas, “pondo abaixo cidades e vilarejos”, com negros emancipados e brancos fugitivos do sul, cujo desfecho é a vitória do humanismo portado das tropas da União. Mas também é a saga dos vencedores e derrotados, tanto como espoliados como vencedores – sem rumo e sem destino – naquele futuro americano em direção à derrota do racismo e da opressão do escravismo.
O que Doctorow critica não é a guerra ou a revolução em abstrato, mas a dor concreta dos atingidos pelo que é fatal na História. Para Doctorow, o rumo pessoal dos indivíduos não pertence à escolha deles, mas a milhares de circunstâncias não escolhidas, que se derramam como uma dor infinita, compondo o mundo real. Nele, o presente é o centro de tudo: não a narrativa, não o futuro, não utopia desejada pela consciência. A dor é o significado presente, tanto dos vencidos sem razão, como dos vencedores inocentes. Ambos são apenas peças do fluxo da história soprado pela ideia.
Albion Simms, numa das muitas batalhas, com seus olhos arregalados, diz que estão atirando nele, mas não lembra o próprio nome. Nem porque está ali, nem porque esqueceu de ontem, mas simplesmente sabe que a sua “cabeça dói”. Ao ser lembrado do seu nome Simms diz “não saber lembrar”, pois tudo o que ocorre “é sempre agora”. É “por isso que está chorando ?”, pergunta-lhe Albion, seu companheiro de batalha: “Sim. Porque é sempre agora (…) É sempre agora”.
As pessoas não vivem na História, mas no cotidiano, parece dizer Simms, pois seu agora é um presente perpétuo.
Não para o grupo ou para classe, mas para o indivíduo concreto que embarca numa determinada narrativa e faz dela o seu destino de dor ou de glória efêmera. A narrativa é um coletivo em guerra, em marcha, com a dor de cada um transformada em dor épica despersonalizada. Sua aparência é de apenas um parêntese sem cor definida, mas a dor do indivíduos soma-se por encanto – em determinados episódios – para se tornar destino de todos.
Para Temer, para os fascistas do MBL, para a Globo e seus partidários, o presente é a própria Historia, que se tornou destino de todos. É preciso reiterar sempre – e eles o fazem – que só existe o “agora”: que a dor de viver esta infinita canalhice do golpismo e da reformas sem povo e sem diálogo, é a História perpétua, que jamais será rompida.
É o “destino final”, o fim da História, o paraíso que fez da violência privada a violência estatal, no universo dos ricos e famosos, cujo Macron é João Dória, cujo Trump é Bolsonaro e cujo Mussolini – sem discurso emocional e sem coragem de fazer uma marcha sobre Roma – é Michel Temer. Até o fascismo eles tornaram caricato.
As mentiras que estão pregando, a miséria que estão semeando e a dor que consolidam – com as suas reformas sem quaisquer sacrifícios dos ricos e com sua lavagem cerebral destinada a colocar os corruptos em posições de mando – como reféns das reformas, não garantem este presente como perpétuo. Garantem apenas o seu bem-estar momentâneo, pois o ódio dos enganados é sempre mais potente e rebelde do que a repulsa dos derrotados. Não é agora que veremos este estouro de inconformidade, mas ele virá. Nesta ou noutra geração. E será muito mais duro, forte e impiedoso, do que “A Marcha” de Doctorow.