por: Maria Cristina Fernandes
“Vossa Excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro… Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas do Mato Grosso.” Por premonitório, o libelo dirigido contra o ministro Gilmar Mendes ecoa hoje ainda mais do que ao ser proferido, em 2009. Por isso, a condição imposta por Joaquim Barbosa para a entrevista soou como a ir a Roma sem ver o papa. O ex-ministro, finalmente, tinha resolvido falar, mas o roteiro teria que se desviar de três temas: Judiciário, Supremo e Lava-Jato. A espera de seis meses pela entrevista desmobilizou a resistência, e as condições foram aceitas pelo valor de face. A ausência das eleições de 2018 do índex acabaria por abrir uma avenida à estreita margem de manobra.
Faz três anos que Joaquim Barbosa deixou o STF, período que coincidiu com a escalada de poderes do ministro que havia se tornado seu principal antagonista no tribunal. A Corte não voltaria a protagonizar cenas como aquela. Arregimentado por Gilmar a apoiá-lo em nota, o colegiado começaria ali a alargar a avenida, sem lombada ou pedágio, para o desmesurado poder exercido por aquele que hoje lidera o ranking dos ministros com o maior número de pedidos de impeachment e suspeição e é alvo de abaixo-assinado que contabilizava 866 mil assinaturas até a quarta-feira.
Barbosa foi o primeiro ministro a deixar o Supremo no exercício de sua presidência. Quando se aposentou, em julho de 2014, faltavam quatro meses para entregar o comando de uma das cortes mais poderosas do mundo e 15 anos para findar seu mandato. O desapego fez bem à saúde. Não se livrou completamente das dores na coluna que haviam levado o ministro orgulhoso de uma condição física de atleta a um andar arrastado, em busca de anteparos, e a despachos em pé. As dores começaram no quarto dos seus 11 anos de tribunal. Ignoradas, tomaram conta. Hoje faz fisioterapia três vezes por semana e foi capaz de, em duas horas e meia de conversa, não mostrar desconforto.
Joaquim Barbosa recebeu o Valor na sala de seu escritório brasiliense, uma casa no Lago Sul, cujo aluguel é partilhado com outro advogado e onde se dedica a pareceres na área do direito público, principalmente em temas regulatórios e tributários. Tem mais um escritório e apartamento nos Jardins, em São Paulo. É de lá a foto em preto e branco no fundo da página (desatualizada) na internet, em que divulga sua empresa de cursos e palestras. Quando está em Brasília, fica com a mãe. Mas é no Leblon que está em casa. Também mora no Rio seu filho, um jornalista de 32 anos que trabalha no Museu da Imagem e do Som (MIS). Separado de sua mãe, uma ex-funcionária do Banco do Brasil, quando Felipe ainda era criança, Barbosa hoje mantém relação estável com uma pesquisadora brasileira que vive no exterior e de quem não declina o nome.
Não foram as dores que o levaram a deixar o colegiado. Como margeia terreno minado, abrevia as razões: “Já tinha feito muita coisa ali, chegado à presidência e vivido talvez os anos mais fecundos do tribunal”. Quando deixou o STF, estava prestes a completar 60 anos. Saiu depois do prazo de desincompatibilização para a disputa presidencial, frustrando a aposta de que trocaria a toga pelas urnas.
A Lava-Jato, que explodiria menos de um ano depois, faria da ação penal 470 um libelo do garantismo. Não apenas na primeira instância, com a multiplicação de prisões preventivas, ausentes do mensalão, como na própria Corte, com a detenção de senador no exercício do cargo (Delcídio do Amaral) e a destituição do cargo daquele que era o primeiro na linha sucessória da Presidência da República (Eduardo Cunha).
Sem fulanizar, Joaquim Barbosa pinça o tema da conjuntura encabeçado por Gilmar Mendes e pelo presidente Michel Temer como alvo do seu primeiro petardo: “Essa gente é tão sem escrúpulo que vai tentar impor o parlamentarismo para angariar a perpetuação no poder e se proteger das investigações. Esse é o plano. Seria mais um golpe brutal nas instituições”.
Teme que os parlamentares, de olho na renovação de seus mandatos, chancelem a mudança: “O Brasil já fez, nos últimos 50 anos, dois plebiscitos. Em ambos, a votação contrária foi avassaladora. Em 1993, o parlamentarismo não obteve, se não estou enganado, mais de 25% dos votos [foram 30,8%]. É uma ideia absolutamente exótica à organização institucional brasileira. O país vive há quase 130 anos sob um regime presidencialista. Seria uma irresponsabilidade absurda testar um experimento exótico desse, como se fosse um brinquedinho, um ioiô”.
Barbosa não mantém as costas, nem a contundência, no espaldar da cadeira. Faz movimentos pendulares, debruça-se com as mãos apoiadas no joelho, gesticula e volta a se recostar. Uma hora depois, a conversa se mantinha regada a água. O café chegaria junto com o fotógrafo Ruy Baron para compor a cena. A agenda do ministro imporia um “À Mesa com o Valor” minimalista.
Barbosa decretou a moratória de entrevistas, mas não deixou de opinar sobre a conjuntura. O veículo escolhido foi o Twitter, rede em que tem 561 mil seguidores e acumula 504 manifestações desde julho de 2014, quando, ao deixar o Supremo, postou: “Alívio, finalmente”. De lá para cá, migrou, paulatinamente, de comentários sobre futebol, cinema e teatro para postagens sobre Judiciário e política, nacional e internacional. A lista de personagens por quem declina admiração vai do historiador José Murilo de Carvalho ao ex-presidente do Uruguai José Mujica, passando pelo ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro e pelo ex-chanceler Celso Amorim (“o melhor em cem anos de Itamaraty”).
Ocupou-se ainda em defender seu mandato como ministro. Acusado de não receber advogados, disse que o fazia, sim, desde que a outra parte, se assim o desejasse, pudesse comparecer. Mas nenhum tema mobilizou tanto o novo tuiteiro quanto o impeachment de Dilma Rousseff. Focou na banalização do instrumento pela guerra de facções. Valeu-se do parâmetro do presidente americano Andrew Johnson (1868), cujo impeachment foi recusado pelo Congresso americano pelo risco de “mexicanização” do país, para advertir sobre os riscos da aventura.
A partir de maio, limitou-se a retuitar textos da imprensa. De viva voz, intensifica a acidez contra o atual governo, a começar pela política externa: “O Brasil passa por um retrocesso institucional que se reflete em sua imagem externa. É um país incontornável, mas que está impedido de exercer seu papel internacional por força da conjuntura triste pela qual passamos. É triste ver os grandes líderes mundiais evitarem o Brasil”.
Desde a posse de Michel Temer, de fato, o país foi ignorado por líderes que passaram pela região, como os primeiros-ministros alemão, canadense e israelense, Angela Merkel, Justin Trudeau e Benjamin Netanyahu. Este último, que fazia sua primeira visita à região, desviou-se do país de maior comunidade judaica do continente.
– A que atribui o desvio de rota?
– A essa balbúrdia institucional que se instalou no Brasil. Nosso país foi sequestrado por um bando de políticos inescrupulosos que reduziram nossas instituições a frangalhos. Em nenhum país do mundo um chefe de governo permaneceria um dia sequer no cargo depois de acusações tão graves quanto aquelas que foram feitas contra Temer. O Brasil entrou numa fase de instabilidade crônica, da qual talvez só saia em 2018.
Na semana seguinte, o ministro Alexandre de Moraes, o único da Corte indicado pelo atual presidente, negaria o prosseguimento de dois mandados de segurança, da oposição e da OAB, para que Rodrigo Maia (DEM-RJ) pusesse em votação os pedidos de impeachment de Temer. Sem mencionar nenhum de seus colegas, o ministro antecipou o engavetamento das ações e soltou o verbo contra os pesos e medidas da Câmara dos Deputados: “Eles instauraram no Brasil a ordem jurídica deles, e não a das nossas instituições. O Brasil teve um processo de impeachment controverso e patético e o mundo inteiro assistiu. A sequência daquele impeachment é o que estamos vendo hoje. Não há parâmetro de comparação entre a gravidade dos fatos. Michel Temer deveria ter tido a honradez de deixar a Presidência”.
– Por que as pessoas se mobilizaram para derrubar Dilma e não se mexem para tirar Temer?
– Acho que os brasileiros estão cansados de tudo isso, da instabilidade e dessas manipulações indecentes que são feitas. As pessoas estão na luta pela sobrevivência. Afinal de contas, são 13 milhões de desempregados. A prioridade é sobreviver.
O homem tem discurso de candidato, intenção de voto de candidato e biografia de candidato.
– O senhor é candidato?
– Não, não sou.
A negativa, curta e sem demora, era previsível. Se Joaquim Barbosa vier a ser candidato, não tem motivos para se antecipar ao calendário. Graças à janela partidária de abril, sobre a qual mostra pleno conhecimento, o quadro de candidaturas apenas será conhecido a seis meses da disputa presidencial, a começar da mais definidora de todas elas, a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Em pesquisas de intenção de voto, Joaquim Barbosa chega a se equiparar à pontuação de Marina Silva, frequentemente apontada como sua referência mais próxima na política. Ele diz ter tido, no ano passado, dois encontros com a ex-candidata à Presidência. Foi ainda procurado por um emissário de Lula e por dirigentes do PSB, que tentaram convencê-lo, sem sucesso, a ir aos festejos dos 70 anos do partido. É ainda acossado por lideranças evangélicas com mandato político, que se fiam na filiação religiosa de dona Benedita, mãe do ex-ministro, para tentar atraí-lo para a política.
Educado no catolicismo por uma mãe posteriormente convertida à Assembleia de Deus, Joaquim Barbosa não professa religião. Orgulha-se, em sua passagem pelo CNJ, de ter feito prevalecer a união homoafetiva, que enfrentava a resistência de juízes e cartórios. Mas a campanha idealizada por quem sonha em vê-lo candidato colhe naqueles anos do Conselho uma prévia conceitual.
Um dia, quando visitava uma cadeia no Amazonas, ouviu um grito lá de dentro: “Negão, tu foi o primeiro que botou branco rico na cadeia”. A cena dos presos estirando os braços para fora das grades para tocá-lo se repetiria em Porto Alegre, Guarulhos e nas unidades para jovens e adolescentes infratores em Salvador e Maceió.
Barbosa não reivindica holofotes para sua passagem pelo CNJ. Concede a primazia dos trabalhos lá conduzidos ao ministro Gilmar Mendes, que o antecedeu no cargo. E resiste à politização da trajetória: “É um problema estrutural, que tem a ver com a resistência da sociedade brasileira em aceitar que o preso não deve ser privado de seus direitos de cidadão. Apenas tentei fazer com que essa pauta avançassse”.