Créditos: Wilton Junior/AE
A coletânea dos tempos da magistratura ainda abriga uma cena no Pelourinho quando, ao descer de um carro num sábado pela manhã, foi cercado pela mais fina flor do lumpesinato, de bêbados a mendigos, que, na descrição de uma testemunha da cena, o trataram como a um parente. No dia seguinte à decretação das prisões do mensalão, 16 de novembro de 2013, foi a Belém para uma reunião. O clima pesado justificava a presença de dois PMs, postados à porta do seu quarto no hotel. Na hora em que o ministro se dirigia para a base aérea, os dois policiais entraram com ele no elevador, se identificaram como evangélicos, tiraram uma Bíblia do paletó e pediram para fazer uma oração para si.
Barbosa não ignora a movimentação dos partidos, o assédio de populares e as pesquisas, mas se diz alheio aos seus objetivos. “Não sei como são feitas essas pesquisas em que colocam meu nome, mas não sou hipócrita. Ando nas ruas, nos aeroportos e por onde vou as pessoas me abordam. Percebo que há esse potencial, mas não incentivo nem tomo qualquer iniciativa para alimentar isso.”
Pesquisas indicam que sua uma imagem está mais preservada do que a de Sérgio Moro, o juiz da Lava-Jato trincado pela condução coercitiva do ex-presidente Lula e pela quebra do sigilo telefônica da ex-presidente Dilma Rousseff. Gente que ganha a vida há décadas decifrando pesquisas atribui a ascensão do deputado Jair Bolsonaro à inexistência, na pré-disputa eleitoral, de um nome identificado à lei e à ordem.
Barbosa passou a ver alguma réstia de sentido nessa conversa quando, no fim do ano passado, um marqueteiro com acesso à campanha de Barack Obama lhe disse que ele, Joaquim, seria o único candidato no país em condição de arrecadar contribuição de pessoa física.
A origem social lhe permitiria ocupar o espaço que um dia foi de Lula, sem a rejeição que este enfrenta na classe média. A imagem projetada por quem quer vê-lo nas ruas em 2018 é a do candidato da trégua, aquele para quem a bandidagem vai colocar o fuzil no chão para recebê-lo no Complexo do Alemão. Barbosa nega candidatura, mas não a possibilidade, em tese, do seu nome ter potencial para ocupar o ethos lulista.
“Talvez sim, apesar do ódio que os petistas têm de mim, né?”
Não acredita que o ódio seja extensivo a Lula, mas de ouvir dizer porque, na verdade, nunca trocou com o ex-presidente mais do que cumprimentos protocolares. Sondado pelo então ministro da Justiça Marcio Thomaz Bastos, durante temporada em que foi professor visitante na Califórnia, Barbosa apenas encontraria o ex-presidente por ocasião de sua nomeação, em 2003, e, eventualmente, em jantares formais no Itamaraty. Juiz implacável do mensalão, o ex-ministro era considerado, até a ascensão de Moro, o principal algoz do PT.
Barbosa não acredita que o partido abriria mão de lançar um candidato. “O PT é bem isso, né? São eles e mais ninguém, então acho que vão ter um candidato.” Na semana anterior, o presidente do Tribunal Regional Federal da 4º Região, Carlos Eduardo Lenz, havia dito ao jornalista Luiz Maklouf Carvalho (“O Estado de S.Paulo”), antes de ler os autos das provas, que a sentença do juiz Sérgio Moro condenando o ex-presidente era “irretocável”. O ex-ministro estranhou os termos, mas não se surpreendeu. Diz que a sentença, em condições regulares de tramitação, não impediria o ex-presidente de disputar, porque não haveria tempo hábil para condená-lo, mas vê a turma de Curitiba motivada a adiantar o relógio para pegá-lo: “Acho que ele não deveria ser candidato. Vai rachar o país ainda mais. Já está em idade de usufruir da vida e do dinheiro que ganhou com suas palestras. Só que o estão empurrando para ser candidato, com essa cruzada que o coloca contra a parede. É um ódio irracional esse que apareceu no país”.
Ao PT, Rede e PSB somam-se no assédio lideranças evangélicas de todos os credos. Pastores da política o procuram desde 2014, quando ainda estava no Supremo. Para todos eles, Barbosa repete a toada de que ficou 11 anos sob os holofotes e está satisfeito com a vida que lhe possibilita por em dia a leitura e a releitura de Francis Fukuyama, Machado de Assis, Philip Roth, Balzac, Lima Barreto e a recém-descoberta Svetlana Aleksiévitch.
Quando está para convencer de que, de fato, quer se manter na advocacia, surge, ao citar os únicos homens públicos da história brasileira a lhe despertar admiração (José Bonifácio e Getúlio Vargas), a menção a um terceiro, contemporâneo, o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB): “Ele me chamou atenção no pouco contato que tivemos. Foram, no máximo, três encontros no Supremo. Era o único que me procurava para falar de temas que interessavam ao Estado dele, como a organização da defensoria pública. A maioria só ia em busca de aval para burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal”.
Depois de se submeter a um longo tratamento de um agressivo câncer na bexiga, o governador foi dado como curado em abril. Joaquim Barbosa não voltaria a encontrá-lo, mas a menção sugere um interesse de parceria que o ex-ministro não desautoriza: “Se eu entrasse nisso, iria chamá-lo”.
O perfil de gestor de seu pretenso companheiro de chapa sugere a via Joaquim Barbosa. O ex-ministro defende um Estado “desengajado” de atividades econômicas e de empresas. Menciona bancos públicos, como a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil, mas não avança sobre a Petrobras: “É uma empresa complexa, de um setor estratégico, com um imenso ‘savoir-faire’ que não pode ser desprezado nem tratado com ligeireza”.
Essa gente é tão sem escrúpulo que vai tentar impor o parlamentarismo para se perpetuar no poder e se proteger das investigações. Seria mais um golpe
Defende ainda a saída do Estado da condição de sócio majoritário de empresas. E diz que o paulatino desengajamento deve se pautar pela existência de grupos econômicos que possam adquirir ativos com cacife próprio: “Adquirir ativos públicos com recursos do Estado é algo inaceitável hoje. O Brasil precisa de uma dose de capitalismo de verdade, não esse capitalismo de Estado, à base de subsídio. É uma deformação, um componente do nosso patrimonialismo do qual precisamos nos livrar para que o Estado possa se dedicar às questões sociais. O Brasil, como diz a Constituição, é um país capitalista com preocupação social”.
Barbosa subscreve a necessidade de reformas trabalhista e previdenciária, ainda que questione a legitimidade do atual presidente para conduzi-las: “São reformas importantes, talvez não com essa visão ultraliberal que se quer implantar, que mexem no cerne do pacto social, mas é muito grave que estejam sendo conduzidas por um governo que não foi respaldado pelo voto”.
É favorável, por exemplo, à extinção do imposto sindical obrigatório, mas se queixa de que a proposta aprovada não trata com isonomia a contribuição patronal, que passou incólume no texto aprovado: “Tem muita velharia na CLT, mas há um certo desequilíbrio na ordem gerada. A democracia está baseada na ideia, sugerida por [Jean-Jacques] Rousseau de pacto entre as forças do trabalho e do capital. Esses dois polos têm suas instituições representativas. Não pode acabar com uma só”.
Foi convencido da necessidade de se reformar a Previdência ao longo dos 41 anos que passou no setor público. Teve colegas que trabalharam como advogados a vida inteira e, nos últimos anos de carreira, ingressaram no serviço público em busca de uma aposentadoria integral. Esse benefício já foi extinto, mas Joaquim Barbosa diz que a mentalidade dos servidores do Estado ainda precisa, em grande parte, ser mudada. É favorável também ao estabelecimento de uma idade mínima para os trabalhadores do INSS, desde que uma transição resguarde os benefícios daqueles que começaram a trabalhar na adolescência. Como enfrentar as corporações, a começar daquelas do Judiciário?
“Com liderança política, um presidente forte, legítimo, fortalecido pelo voto popular. O Judiciário é a bola da vez, mas é apenas uma pequena parcela disso. Seus gastos não têm comparação com os excessos de subsídios.”
Não acredita que 2018 será uma disputa entre aqueles que querem retirar direitos dos brasileiros e aqueles que pretendem restabelecê-los. Vê maior centralidade no debate sobre o tamanho do Estado e o compromisso com o combate à corrupção.
Das reformas em curso, aquela que mais teme é a política, particularmente pela possibilidade de vir a ser restabelecido o financiamento privado de campanhas, cuja proibição é um dos principais motivos de orgulho de sua passagem pelo Supremo. O ministro que conduziu o primeiro grande julgamento por corrupção da história brasileira reconhece a sobrevida de seu alvo ao resumir as razões pelas quais vê o país à deriva: “A principal causa é a corrupção, é a motivação número um para as vocações políticas no Brasil. O que motiva boa parte dos líderes é o acesso ao dinheiro. Por isso estão sedentos para reinstituir o financiamento privado”.
É favorável a um financiamento público moderado e à redução do tempo de campanha a não mais que meia hora por dia de TV gratuita durante, no máximo, um mês. Diz que as redes sociais e a internet tornaram desnecessária a dispendiosa parafernália televisiva. Para um nome com o grau de conhecimento como o seu, a mudança parece inócua, mas não para novos atores que queiram ingressar na política. Na visão do ex-ministro, porém, a oxigenação da política não virá do dinheiro, mas do sistema eleitoral.
Se deixar, ele fala o resto do dia sobre virtudes e pecados de sistemas políticos além-mar. Manifesta-se favoravelmente ao voto distrital, puro ou misto, afeito à ideia de uma maior proximidade entre eleito e eleitor. Rechaça os argumentos contrários, um por um. Não haveria o risco de o desenho dos distritos ser manipulado para favorecer este ou aquele candidato? Cita, com intimidade, os casos judiciais nos Estados Unidos que contestam distritos, especialmente no Sul, cujo desenho teria sido feito para evitar uma concentração de eleitores negros suficiente para eleger representantes: “No Brasil, esta é uma falsa questão, um pretexto para deixar tudo como está. Era só botar o IBGE para trabalhar e montar esses distritos, mas eles não querem porque ameaça sua sobrevivência política”.
Barbosa tem a convicção de que o experimento do voto majoritário no Brasil sacolejaria as oligarquias. Atribui ao voto proporcional a sub-representação urbana na Câmara dos Deputados e o poder excessivo de áreas menos dinâmicas do país sobre o conjunto da população. Aposta que as grandes metrópoles, divididas em distritos, aumentariam o multiculturalismo da representação.
Não parece desconhecer os riscos de se alterar uma cultura sedimentada de 70 anos de sistema proporcional, mas importa da França alternativas para mitigá-los, como o segundo turno que, naquele país, também vale para as eleições legislativas. A nova eleição é realizada entre tantos quantos obtiverem pelo menos 12,5% dos votos, o que, não raro, leva a uma segunda rodada triangular, que tende a fortalecer o eleito.
Joaquim Barbosa acompanhou de perto a eleição de Emmanuel Macron, a quem atribui a tentativa de mimetizar o primeiro dos presidentes socialistas da França: “François Mitterrand tinha um estilo extraordinário. Falava pouquíssimo, três vezes por ano: numa gruta, no interior do país, no 14 de julho [feriado da queda da Bastilha] e no fim do ano. Cumpria um ritual”.
Ruy Baron / Valor”Não sei como são feitas essas pesquisas em que colocam meu nome […] Ando nas ruas e por onde vou me abordam. Percebo que há esse potencial, mas não incentivo”, diz o ex-ministro
Rejeita a França como modelo do semi-presidencialismo que Temer e Gilmar propagam: “Foi um balão de ensaio que lançaram. Em 60 anos de 5ª República, a França só teve três experiências semi-presidencialistas. Lá é o presidente que manda mesmo”. A despeito da admiração pelo feito eleitoral, tampouco vê chances, no Brasil, de se repetir o fenômeno que rendeu ao jejuno em campanhas não apenas a Presidência da República como também uma maioria na Assembleia: “A chave é a plasticidade do sistema, que não tem as mesmas camisas de força do Brasil. Lá se permite a candidatura avulsa e o presidente, que acabou de ser eleito, pode apresentar um candidato duas semanas antes da disputa legislativa para formar maioria”.
Toda a plasticidade do sistema francês não evitou que o novo presidente derrapasse, na largada, ao tentar dar curso a um governo “de direita e de esquerda”. Joaquim Barbosa ainda prevê mais recuos no governo Macron, a começar da proposta de se conferir um pouco mais de proporcionalidade ao sistema eleitoral, promessa de campanha: “Ele vai introduzir um elemento de instabilidade da qual o país está livre há 60 anos. De 1879 até 1958 a França trocava de gabinete a cada oito meses. Foi o voto majoritário que interrompeu isso”.
A intimidade com a política francesa vem dos quatro anos e meio vividos no país durante os anos 90, quando doutorou-se na Universidade Panthéon-Assas. Foi o único período de sua vida em que pôde se dedicar inteiramente aos estudos. Mais velho dos homens de uma família de nove filhos, Joaquim Benedito Barbosa Gomes nasceu em Pacaratu, cidade na divisa de Minas com Goiás, em 7 de outubro de 1954. O pai, Joaquim, foi pedreiro ao longo de sua primeira infância. Quando o filho mais velho entrou na adolescência, já tinha um caminhão e depois, mais outro. Chegou a empregar umas dez pessoas, na lembrança do primogênito, um dos arregimentados para o serviço.
O primeiro emprego de carteira assinada do ex-ministro veio aos 17 anos, já em Brasília. Era uma empresa que prestava serviços terceirizados de limpeza ao Tribunal Regional do Trabalho. De lá foi para o “Correio Braziliense” e, depois, para o “Jornal de Brasília”, onde trabalhou na composição. Pegou a transição do linotipo para o offset. A experiência serviu de passaporte para a gráfica do Senado: “Foi como ganhar na loteria. O salário era três vezes maior”.
Não se importa que a biografia, corrigida, mitigue o apelo eleitoral do juiz que veio da pobreza. “É uma bobagem isso. Meu pai foi um microempresário que se ferrou na crise do milagre, mas eu entrei na classe média aos 19 anos, quando fui trabalhar no Senado.” Trouxe toda a família para Brasília e dela virou arrimo. O pai morreu em 2010, mas os oito irmãos e a mãe ainda moram lá.
Trabalhava no Senado das 11 da noite às 6 da manhã. Saía direto para a UnB, onde cursou direito. Dormia à tarde e, no início da noite, ia para a biblioteca da universidade onde estudava enquanto aguardava a hora de entrar no serviço. Sua introdução à política foi a leitura dos discursos dos senadores Paulo Brossard, Franco Montoro e Itamar Franco.
Da gráfica do Senado, migrou para o Itamaraty, onde prestou concurso para oficial de chancelaria, emprego que lhe proporcionou a primeira temporada no exterior, Finlândia. A Escandinávia dos anos 70, para um rapaz do Brasil central que nunca tinha ido além do Rio de Janeiro, despertou a vontade de manter uma janela aberta para o exterior. Prestou concurso para diplomata, mas foi barrado na entrevista. Atribui a reprovação ao racismo, mas não se alonga nem volta ao tema ao longo da conversa.
O diploma de direito lhe trouxe o emprego de advogado do Serpro, empresa pública de informática, onde ficou quatro anos até o concurso para o Ministério Público Federal. Com a UnB, a chancelaria do Itamaraty e o MPF percorreria a mesma trajetória daquele que viria a se transformar no seu principal antagonista no Supremo. Além de Gilmar Mendes, sua turma ainda era formada pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, hoje o maior rival do hiper-ministro.
De volta da França, estabeleceu-se no Rio. Passou a lecionar na Uerj, onde foi colega de Luiz Fux e Luís Roberto Barroso. O primeiro é o ex-colega do Supremo de quem se manteve mais próximo. O segundo, com quem chegou a ter embates no julgamento dos embargos declaratórios do mensalão, chegou a chorar, meses atrás, ao pedir desculpas ao ex-ministro no plenário do Supremo quando a ele se referiu como “negro de primeira linha”. A expressão, disse Barroso, tinha por objetivo “celebrar uma pessoa que havia rompido o cerco da subalternidade chegando ao topo da vida acadêmica”, mas revelou um racismo que “se esconde no inconsciente”.
O episódio, logo minimizado, mostrou o quanto muitas das arestas criadas em torno do ministro durante o julgamento da Ação Penal 470, se dissiparam. O mensalão produziu mais convergências entre Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa do que deste com Barroso. Longe da toga, o ex-ministro se manteve na militância anticorrupção, no que converge com Barroso, um dos ministros que mais tem se insurgido contra a operação-abafa Lava-Jato. Quem mudou de lado com o avanço da operação para além dos limites do PT foi Gilmar. Não por acaso ele e Barbosa ocupam o extremo na escala de popularidade de personalidades do mundo jurídico.
Ao deixar o Supremo precocemente, Joaquim Barbosa preservou-se do desgaste que o Judiciário hoje enfrenta pelos impasses da Lava-Jato e pelas vantagens extrateto acumuladas pela corporação. Como advogado, já não poderá mais ser acusado de jogar para a plateia se resolver arriscar a sorte nas urnas para completar com a primazia do negro a trilogia de um país que já passou pelos primeiros operário e mulher.
O implacável Antonio di Pietro, da operação Mãos Limpas, é o precedente mais próximo de magistrado que não foi capaz de levar para a política o romantismo da toga. Mas a hesitação de Joaquim Barbosa parece ter moto próprio. O filho, surpreendido há 14 anos quando o pai resolveu ir para o Supremo, já lhe pediu que não seja o último a saber se ele resolver entrar na parada. As pesquisas sugerem que Felipe não é o único a esperar pela definição.
No seu romance mais político (“Numa e a Ninfa”), o escritor brasileiro da predileção do ex-ministro, Lima Barreto, constrói no personagem de um deputado arrivista a síntese do que chama de “pavor nacional do dia de amanhã”. É este o clima que invade a pré-campanha de 2018 num país bestializado pelo governo Michel Temer e pelo arregaço de suas instituições. Há mais de dez anos, a magistratura comanda o espetáculo com o qual a política tem um encontro marcado em 2018. Lima Barreto foi um dos melhores intérpretes de um país que transitou para a alforria e para a República, sem liberdade ou cidadania. Dizia que o Brasil não tem povo, tem público. É entre um e outro que Joaquim Barbosa parece hesitar.