Em “Caminhos da Esquerda”, o professor investe contra que chama de “neototalitarismo” para abrir mão de uma das críticas mais agudas e atuais de Marx – a que fustiga o fetichismo e a alienação

Por Eleutério F S Prado | Imagem: Ernest Neuschul, Desempregados (1931)


Texto publicado originalmente na revista
O Olho da História, dirigida por Jorge Novoa
Parceira de Outras Palavras
Título original: “Dialética bloqueada”

Ruy Fausto está provocando certa agitação intelectual como o seu Caminhos da Esquerda – Elementos para uma reconstrução(publicado pela Companhia das Letras, 2017). Nesse livro, o autor de Marx – Lógica e Política (obra clássica do marxismo brasileiro, em três volumes, publicada a partir de 1983), discute os trajetos passados e os rumos futuros da esquerda, especialmente no Brasil.

De seu projeto crítico consta, em primeiro lugar, um exame do que chama de “patologias da esquerda”. Assim, sob o rótulo de “neototalitarismo”, recusa a via de esquerda que passa não só pelo stalinismo, mas também pelo leninismo, pelo trotskismo e pelo castrismo. Eis que essa rota sonha com a emancipação, mas pratica, segundo ele, o autoritarismo em variados graus.

Sob o título de “reformismo adesista”, rejeita o caminho fácil que leva certas forças, que ainda se pensam como de esquerda, a fazerem concessões ao neoliberalismo. Eis que esse rumo passa a ser trilhado porque essas forças, no fundo do coração, encaram o “liberalismo econômico” como o fim da história.

Finalmente, Fausto se põe também contra o “populismo” – entendido como o acesso ao poder que se vale de uma liderança carismática e que meramente visa, a partir dele, redistribuir a renda gerada no sistema para os estratos mais pobres. Essa via acolhe as práticas da oligarquia corrupta, perverte os recursos públicos, em nome de uma repartição um pouco mais justa da riqueza.

Ora, o seu discurso negativo apresentado nos três primeiros capítulos (e acima, grosso modo, resumida), condiciona fortemente o seu discurso positivo que está posto nos três últimos. E ele se configura – e, em consequência, não poderia mesmo deixar de se configurar – como uma posição política que fica entre a socialdemocracia e o socialismo democrático de Karl Marx. Vai além da primeira porque não se limita a apoiar as intervenções do Estado visando promover a justiça social no interior do sistema capitalista; ademais, não preconiza apenas a manutenção de uma regulação econômica que estabilize o funcionamento econômico próximo ao pleno-emprego.

Não, a proposta de Ruy Fausto não é socialdemocrata nem mesmo no plano político. Mesmo se anseia pela conservação da democracia representativa, julga que esta pode ser aperfeiçoada por meio de uma ampla abertura às opiniões e decisões populares, seja de maneira participativa seja diretamente. Segundo ele, a seguinte disjunção estaria no fundo da insuficiência do sistema político realmente existente: a democracia enquanto tal pressupõe a igualdade, mas o capitalismo como modo de produção pressupõe a desigualdade.

Sim, a proposta de Ruy Fausto é anticapitalista mesmo no plano das relações sociais de produção. Mas se trata – como ele mesmo adverte – de algo sui generis:

Ser anticapitalista não é ser contra o Estado, ainda que todo projeto legitimo de esquerda passe por uma crítica do Estado na sua forma atual. Também não se trata de visar à liquidação de toda propriedade privada. Poder-se-ia dizer também que não se pretende eliminar toda propriedade privada dos meios de produção, o que implica validar a existência de alguma forma de capital. No meu entender, o objetivo da política de esquerda deve ser a neutralização do capital, tanto extensiva quando intensivamente (…). É o grande capital que se tem em mira. Mas não se pense que esse projeto é simplesmente “reformista”. O capitalismo não existe sem o grande capital.

Na verdade, Ruy Fausto preconiza um “socialismo democrático e ecológico que promova uma economia solidária e cooperativista”. Esse novo modo de produção, portanto, não poderia também se basear ou estar centrado na propriedade estatal, já que esta costuma originar uma tecnoburocracia, no fundo, igualmente antidemocrática como a burguesia gerencial e financeira que domina atualmente no capitalismo. Nesse socialismo, a propriedade dos meios de produção poderia subsistir apenas nas pequenas, mas não nas médias e grandes empresas. E estas, então, organizar-se-iam necessariamente – e isto está implícito – com base na propriedade coletiva e na auto-gestão. Subsistiria, entretanto, a regulação do dinheiro, assim como a própria economia mercantil.

Como para o autor de Caminhos da esquerda, Karl Marx é ainda a grande referência na compreensão e na crítica do capitalismo, ele pode ser questionado com base nas teses desse autor. Segundo Fausto, “o comunismo e a sociedade transparente” – preconizados pelo velho mestre – “é que passaram a ser utópicos. E, pior do que utópicos, perigosos, já que o projeto contém germes totalitários”. E aqui, é bom observar logo de início, ele está empregando um termo do léxico neoliberal já que o totalitarismo, enquanto um sistema político caracterizado pela total subsunção das pessoas ao Estado, sendo este comandado por uma pessoa e/ou por um partido único, é encarado por essa corrente doutrinária como o contrário absoluto da “economia de mercado”, onde certamente viceja a liberdade comercial, a concorrência industrial e o “espírito animal” dos capitalistas.

Ora, como se sabe, na terceira seção do primeiro capítulo de O Capital, Marx mostra que o dinheiro é a forma de aparecimento do valor no modo de produção capitalista e, no capitulo IV, ainda, que ele é também forma autônoma do valor que se valoriza, isto é, do capital. Ademais, na quarta seção ainda do primeiro capítulo dessa obra, Marx apresenta o fetichismo das mercadorias e do dinheiro. Pois, na economia mercantil generalizada, o caráter social do trabalho não se mostra à luz do sol, mas se encontra objetivamente obscurecido, revelando-se apenas como caráter misterioso dos produtos do trabalho: os bens transformados em mercadorias pelo processo social capitalista figuram como coisas metafísicas, coisas que têm valor. E este valor aparece na superfície da sociedade como valor de troca, como preço.

Para Marx, como se sabe, o fetiche das mercadorias e do dinheiro é a contrapartida “objetiva” da alienação “subjetiva” que acomete quase inexoravelmente os agentes econômicos em geral, assim como os economistas vulgares, tais como os neoclássicos. E essa alienação é um requisito essencial da subsunção dos seres humanos possíveis aos imperativos sistêmicos do modo de produção, os quais, por isso mesmo, encontram-se ainda, historicamente, num estágio de baixa humanização. A crítica do fetichismo é, portanto, crítica – fazendo aqui um mero contraponto – do totalitarismo do mercado, isto é, da subsunção das pessoas à lógica de reprodução do capital e, assim, do modo de produção capitalista.

Ora, a aspiração por uma sociabilidade transparente figura precisamente na continuidade da crítica ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro, ainda na quarta seção do primeiro capítulo de O capital: “o reflexo religioso do mundo real somente pode desaparecer quando as circunstâncias da vida cotidiana, da vida prática, representarem para os homens relações transparentes e racionais entre si e com a natureza”. Marx clama aqui – é bem evidente – por uma transformação histórica capaz de substituir as atuais relações de produção indiretas por possíveis relações de produção diretas, isto é, associativas e comunitárias – relações mediadas pela linguagem comum e por convenções construídas democraticamente. Logo, sustentar que essa aspiração contém germes totalitários é, para usar um termo do gosto do autor, uma enormidade.

Assim como é uma enormidade empregar essa expressão do léxico neoliberal para caracterizar certas correntes da esquerda. Faz sentido – pensa este resenhista – criticar o centralismo democrático como um oximoro real, a má religião do curso inexorável da história, a manipulação autoritária das “massas”, mas apenas na justa medida, sem cair numa diabolização que, em última análise, serve à propaganda das correntes de direita.

Note-se, agora, que o socialismo é delineado nessa seção de O capitalpor meio de negações determinadas – e não por meio de um grande voo de imaginação. E ele é essencialmente democrático porque implica na libertação do ser humano tanto de sua subsunção à relação de capital quanto de sua subsunção à relação de Estado: “a figura do processo social da vida, isto é, do processo da produção material, apenas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando, como produto de homens livremente socializados, ela ficar sob o seu controle consciente e planejado” (citação da mesma parte de O capital).

Nesse novo modo de produção não há dinheiro, mas pode haver – na verdade, tem de haver – trocas mediadas por senhas, as quais expressam de algum modo o dispêndio de trabalho e a alocação de trabalho entre os bens que devem ser produzidos. Eis que o dinheiro, tal como existe no capitalismo, não é apenas meio de circulação, mas antes de tudo – pelo menos de acordo com a ciência do capital – manifestação do valor e, como tal, forma que dá suporte ao capital. Trata-se de “uma associação de homens livres, que trabalham como meios de produção comunais, e despendem suas numerosas forças de trabalho individuais conscientemente como uma única força social de trabalho” (citação da mesma parte de O capital). Ademais, esse modo de produção pode requerer a existência de instâncias superiores de coordenação – mas elas seriam democráticas e não poderiam formar propriamente um Estado.

Ruy Fausto parece acreditar que tudo isso é má utopia. Ora, como se trata de uma antecipação, um esboço de futuro possível, o delineamento dos contornos dessa nova sociedade não pode deixar de figurar como questão em aberto – passível, aliás, de crítica. Note-se, entretanto, que o anticapitalismo aqui resenhado, ao contrário daquele proposto por Marx, está, pelo menos por enquanto, mal fundamentado – o que, aliás, o seu próprio formulador mostra ter boa consciência.

Numa seção curta do capítulo “reconstruir a esquerda”, Ruy Fausto indica claramente que aspira por uma nova crítica da economia política, a qual, segundo ele, “é longa, técnica e está em elaboração”. O foco de sua investida contra Marx é a teoria da mais-valia porque esta, entre outros efeitos, torna ilegítima a posse do capital. Em consequência, ela impediria em geral a possibilidade de justificar a propriedade privada dos meios de produção pelo trabalho do capitalista. Ele parece crer que ela, indo assim do focinho ao rabo, vai longe demais. A nova crítica quer mostrar que ela continuaria valendo para os grandes capitais (para o corpo do animal), mas não se justificaria para os pequenos (isto é, para os pelos).

É sabido que esse elemento da crítica de Marx ao capitalismo, a teoria da mais-valia, incendiou redutiva e amplamente o imaginário da esquerda anticapitalista. Note-se, entretanto, que a exploração não diz respeito a uma mera questão de repartição do valor gerado pelo trabalhador. Não, não, ela está subordinada a uma crítica maior que vem do fetichismo e da alienação, isto é, do famoso “não o sabem, mas o fazem”. Pois, o fantasmagórico valor não é mais, segundo Marx, do que uma relação entre pessoas que assume a forma de uma relação entre coisas. Assim, se o trabalhador, que pensa vender simplesmente o seu trabalho, soubesse com clareza que vende a sua força de trabalho e que esta, quando ativada, produz mais valor do que ele precisa para viver, essa venda – e o contrato que a realiza – ganharia certamente legitimidade.

Na verdade, difundida a tese especialmente na sua versão mais tosca, esse ganho de legitimidade ocorreu em parte com o advento da socialdemocracia – que, aliás, agora sucumbe por toda parte sob os golpes mortais do neoliberalismo. De qualquer modo, pode-se dizer com segurança que o tamanho do capital não é central para Marx, pois o que importa é a própria relação de capital e o sistema totalizante que essa relação cria. No plano qualitativo, ela é uma relação social não transparente de dominação que acomoda, lado a lado, imenso progresso e miséria humana colossal; no plano quantitativo, ela é uma relação social que tende à desmedida, que produz crises homéricas e que, agora, quase ao fim de seu trajeto histórico, está se tornando genocida.

Para finalizar, é preciso lembrar junto com outro crítico de Caminhos da Esquerda, que apenas diante de uma perspectiva histórica catastrófica cientificamente demostrada, seja para aqueles que labutam pela sobrevivência no chão da sociedade seja para a própria humanidade, incluindo agora aqueles que se deleitam nos pisos superiores, pode justificar a luta sem tréguas para a superação do capitalismo. Sem uma dialética rigorosa – para chover no molhado – não há caminho para o socialismo.