A reedição de “Significado do Protesto Negro” serve de alerta para os movimentos incorporarem a luta contra o racismo aos protestos de hoje

O ex-engraxate e garçom Florestan entrou na USP em 1941

Não passou despercebida a forma racista com que o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, se referiu ao ex-ministro e ex-colega de Corte Joaquim Barbosa. A expressão “negro de primeira linha” oculta, como o próprio ministro admitiu depois, um viés racista presente no “nosso inconsciente”.

Uma antiga reflexão do sociólogo Florestan Fernandes lança um diagnóstico mais aprofundado do que os pretensos debates nas redes sociais sobre o problema: “A democracia só será uma realidade quando houver, de fato, igualdade racial no Brasil e o negro não sofrer nenhuma espécie de discriminação, de preconceito, de estigmatização e de segregação, seja em termos de classe, seja em termos de raça”.

Escrita há 30 anos, essa frase está no livroSignificado do Protesto Negro, relançado agora pela Editora Expressão Popular (iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e de outros movimentos sociais), em coedição com a Fundação Perseu Abramo. Ela é lapidar para mostrar como o pensamento do pai da sociologia crítica permanece atualíssimo: “O negro vem a ser a pedra de toque da revolução democrática na sociedade brasileira”.

Florestan via um potencial revolucionário se e quando os brasileiros percebessem a força da combinação das lutas de raça e de classes. Ou, em outras palavras, enquanto não surgir uma consciência coletiva de que é preciso superar o “dilema racial brasileiro”, o País estará fadado a perder cada uma das batalhas (raciais, classistas, feministas, secundaristas etc.) contra a ordem burguesa do capitalismo.

É por essa razão que continuamos a ver negros sofrendo dos problemas seculares herdados de uma abolição dos escravos que abandonou à própria sorte uma massa de trabalhadores, assim como pobres brancos que, embora passem longe dos problemas de preconceito, discriminação ou racismo, não têm poder para enfrentar as relações desiguais entre patrões e empregados. “Proletários de todas as raças do mundo, uni-vos”, conclamava o sociólogo, para que negros e brancos pudessem forjar a sua sociedade, e não a dos capitalistas.

Significado do Protesto Negro foi publicado pela Editora Cortez/Autores Associados, em 1989, e contém ensaios sobre a questão do negro produzidos por Florestan Fernandes. Nesta reedição, que será a primeira a ser entregue no Clube do Livro da Editora Expressão Popular, foram reproduzidos os textos da primeira versão e mais três outros, publicados separadamente, como a íntegra da emenda constitucional em que ele defendia uma proposta de reparação ao povo negro.

Em lugar de uma visão paternalista, o sociólogo buscava engajar os movimentos negros numa luta mais radical para combater as desigualdades sociais. Entendia que “a revolução dentro da ordem é insuficiente para eliminar as equidades econômicas, educacionais, culturais e políticas”. 

A relação de Florestan com a militância do movimento negro brasileiro surgiu a partir de fins da década de 1940. Foi quando ele recebeu convite do antropólogo francês Roger Bastide, um estudioso das religiões africanas no Brasil, para participar de um projeto de pesquisa da Unesco em São Paulo.

O resultado desse estudo, contudo, foi diverso do pretendido pela Unesco, que procurava mapear as distinções do preconceito existente nos Estados Unidos e no Brasil. A pesquisa de Bastide e Florestan mostrou que o preconceito não só existia como também “guardava profundas raízes com a escravidão e, o que é muito significativo, também o seu fim”, anotou o jornalista e editor Haroldo Ceravolo Sereza, autor de uma biografia do sociólogo (Florestan, a Inteligência Militante, Boitempo, 2005).

Aquela pesquisa resultou no livro Brancos e Negros em São Paulo, de 1971, e marcou o início da formação de um grupo intelectual de peso na Universidade de São Paulo. E Florestan ficou “muito mais confortável com o trato de questões contemporâneas e com a autoidentificação como um sociólogo que faz suas escolhas com base na própria experiência e em suas posições políticas, ou seja, mais próximo do sociólogo ‘crítico e militante’”, afirmou Sereza.

Filho de uma empregada doméstica, que aos 6 anos limpava as roupas dos clientes de uma barbearia e depois virou engraxate e garçom, Florestan entrou na USP em 1941, quando a instituição criada pela e para a elite paulista crescia a ponto de ter de ceder espaço para estudantes de famílias pobres.

“Sociólogo mais completo de sua geração”, nas palavras do amigo Antonio Candido, Florestan Fernandes liderou a chamada “escola paulista de sociologia”, da qual fizeram parte Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni.

O primeiro defendeu a tese de doutorado Formação e Desintegração da Sociedade de Castas: O negro na ordem escravocrata no Rio Grande do Sul, e o segundo, O Negro na Sociedade de Castas. Florestan foi o orientador de ambos.

Em Significado do Protesto Negro, enaltece a organização do movimento negro nos anos 1930 e 1940 em São Paulo e no Rio de Janeiro, rapidamente reprimida pelo Estado Novo, de Getúlio Vargas.

Um dos grandes nomes lembrados pelo sociólogo é o de José Correia Leite, que publicou O Clarim d’Alvorada, um jornal feito por negros para a comunidade negra. Para Florestan, a ascensão de vozes como a de Leite permitiu o surgimento de uma forte contraideologia racial, um desejo por uma “segunda abolição”.

Nos anos 1960 e 1970, sobretudo com o Movimento Negro Unificado, o negro ativista voltava a realizar protestos, já tendo a consciência de que a luta seria contra oracismo institucional. O problema, apontava Florestan, era como sair dessa armadilha.

“O desafio consiste em opor um racismo institucional branco a um racismo libertário negro. Ele se apresenta na necessidade de forjar uma sociedade igualitária inclusiva, na qual nenhum racismo ou forma de opressão possa substituir e florescer”, dizia. 

Filiado ao PT e deputado federal (1987 a 1995), Florestan não hesitava em contrariar o partido, como fez ao participar da revisão da Constituição, em 1994. O sociólogo queria que os líderes petistas assumissem uma postura de defesa clara e inquestionável em favor da causa negra.

“Não basta recorrer ao ‘movimento popular’ como terapêutica de assistência social e de ‘cura’ na opção pelos excluídos. O dilema social (…) exige uma contraviolência que remova a concentração racial da riqueza, da cultura e do poder”, afirmou. Em tempos de golpe, ler ou reler Florestan é uma boa forma de iluminar os reaisproblemas brasileiros e evitar a institucionalização eterna de construções como “um negro de primeiro linha”. 

O MOVIMENTO DOS SEM-EDITORA

A Editora Expressão Popular nasceu em 1999 da iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), do Movimento dos Atingidos pelas Barragens e de pastorais sociais, entre outras organizações da sociedade civil.

O objetivo era produzir livros baratos e acessíveis para a militância. Isso tem sido possível com escritores que cedem os direitos autorais, diagramadores, tradutores e revisores que aceitam fazer trabalhos voluntários de edição e buscando formas alternativas de distribuição. Uma versão de bolso do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, é vendida por 4 reais.

“No início, os títulos eram mais para a formação da militância na política, mas isso foi se ampliando para outras áreas, como no campo da agroecologia”, explica o editor-assistente da Expressão Popular, Miguel Yoshida. A partir de 2010, o siteexpressaopopular.com.br virou também uma livraria de outras editoras que comungam da mesma matriz ideológica.

O novo passo a ser dado é a criação do Clube do Livro Expressão Popular. Por um custo mensal a partir de 35 reais, já incluídas as despesas de correio, os simpatizantes da editora terão acesso mensal a um ou mais livros do acervo, que já ultrapassa os 500 títulos publicados. O primeiro a ser entregue aos leitores é o livro de Florestan Fernandes.