por: Wanderley Guilherme dos Santos

Sou um brasileiro dissidente; um, entre centenas de milhares. Fui de oposição a governos conservadores e a favor de governos de inclinação popular. Tudo em vão. Apoiar executivos simpáticos às reclamações de pobres e miseráveis resultou em medíocre progresso desses agregados sociais, e fruto quase sempre de efeitos secundários e inevitáveis de políticas beneficiando investidores, empresários e grandes proprietários rurais, produtivos ou improdutivos. Iludido por versão caridosa do passado recente, tenho aplaudido o desempenho dos revolucionários de 1930, bem como o denominado Segundo Governo Vargas. Mas, sem menosprezar a violência reacionária dos que constrangeram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, urge reconhecer o gigantesco atraso de um país que, em meados do século XX, ainda contava com 52% de habitantes analfabetos, 64% da população vivendo em áreas rurais e 60% da mão de obra empregada no setor primário da economia. A servidão imposta à população agrícola não proprietária, sem direitos de amparo ao trabalho ou proteção legal ao montante e fluxo da renda, e sem acesso a elementares cuidados de saúde, saneamento e educação, redundava em rudimentares condições de existência, inaceitáveis taxas de mortalidade infantil e de expectativa de vida adulta. Inaceitáveis, sim, mas as tolerei; tolerei e ratifiquei meu apoio aos cúmplices daquela barbaridade, os políticos progressistas. A servidão compulsória no campo brasileiro estruturou-se durante os ciclos econômicos de exportação de bens primários, mineração e alimentos, com a escravidão dos séculos XVIII e XIX, e mantida por coação física e econômica a seus herdeiros brancos, pretos, mulatos, cafuzos, homens e mulheres. A servidão rural passara intocável pelos revolucionários de 30, como passaria ignorada pelo retumbante quinquênio de Juscelino Kubitschek. Getúlio Vargas abandonou os trabalhadores rurais para obter a fidelidade dos operários urbanos; JK manteve-se alheio aos dramas do mundo agrário e seus coronéis, que lhe deram os votos para presidente, votos que planejava remerecer em 1965, quando se proporia como candidato a nova temporada presidencial. Obtendo ridícula votação em São Paulo, na eleição de 1955, aprofundou as disparidades regionais direcionando os investimentos fundamentais de seu mandato presidencial para Minas Gerais, berço natal, e São Paulo, na mais escandalosa tentativa de compra de votos, por meios legais. Calculista, e dotado de extraordinária simpatia, JK permitiu exacerbada repressão aos nascentes movimentos de agricultores e trabalhadores sem terra, muitos associados às nascentes Ligas Camponesas. Não obstante, Vargas e JK sempre foram alternativas de escolhas menos perversas a que o eleitorado brasileiro, parcela ainda reduzida da população, foi tangido. Os brasileiros que não eram eleitores não tinham voz ou respeito, aí incluidos os analfabetos.

Do fugaz período Jânio Quadros nada restou senão a antessala do fatídico governo de João Goulart, odiado pela direita, achincalhado e abandonado pela esquerda oficial. A ditadura foi a ditadura. Seguem-se os anos civis de José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso: acintoso serviço ao máximo de acumulação capitalista que a suburbana competência nativa assegurasse. Então, modesta deferência ao trabalho, mediante redução de miséria, revelou que políticas públicas distributivas, se cercadas por crônica e imperturbável hierarquia de distinções sociais, tendem a fracassar. O desconforto dos proprietários do capital, acumpliciado à intolerância dos consumidores de status, promoveu o recente episódio de violência constitucional, assentado em instável coalizão entre maiorias reacionárias no Executivo, Legislativo e Judiciário, além do prático monopólio familiar de eficazes meios de comunicação. Instalou-se a ilegalidade.

A ilegalidade se manterá enquanto durar o acordo entre as máfias competitivas, incrustadas de beligerantes grupos de interesse. Nem se omita que entre os apêndices, viróticos e oportunistas, escondem-se tradicionais legendas de fachada esquerdista, contrabandistas de apoio a soldo de empregos e migalhas, biombos de trapaças a título de frentes. Negocia-se hoje, como sempre, menos a ascensão dos assalariados do que as fronteiras de sua exclusão. É provável que obtenham sucesso.

Estou inclinado a acreditar não se tratar de um complexo: o Brasil é vira-lata.