por: Sérgio Sérvulo
Dia desses, uma corte venezuelana de justiça suspendeu a imunidade parlamentar de noventa deputados. Alegou-se que, em caso de traição à pátria, não se aplica essa figura que protege a independência do poder legislativo.
Ora, essa alegação é claramente um sofisma. A imunidade parlamentar existe justamente para isso: para proteger o parlamento contra intromissões do executivo ou do judiciário.
Uma das primeiras características do Estado democrático de Direito é a tripartição e independência dos poderes. É impensável, por exemplo, em regime republicano, que o judiciário impeça o chefe do poder executivo de nomear um ministro, ou que destitua o presidente da Câmara dos Deputados.
Quando aconteceu isso em Caracas, os jornais brasileiros deitaram e rolaram, dizendo coisas como: “sem a imunidade, os deputados poderão ser processados civil e criminalmente por qualquer ato visto como irregular por promotores alinhados com o governo, assim como o judiciário”. Talvez estivessem pensando que, a partir daí, esses deputados ficam impedidos de praticar os mais comezinhos atos da vida civil, como, por exemplo, comprar um apartamento.
Poucos dias após, o judiciário venezuelano deu outro passo, absolutamente impensável numa democracia: assumiu, ele próprio, o poder legislativo.
A oposição venezuelana denunciou essa medida como um golpe. O mesmo foi dito pela OEA, e por vários governos sulamericanos: é golpe.
Diante desses múltiplos testemunhos, com a objetividade que nos confere o desinteresse, somos obrigados a admitir a existência desse novo tipo de golpe, dado sem violência e sem a participação das forças armadas. Nenhum militar invadiu o Congresso venezuelano, nenhum deputado foi preso: acontece, apenas, que suas deliberações, agora, não têm mais eficácia legal.
Golpes assim são terríveis para a democracia. Sendo o judiciário o poder encarregado de controlar justamente a legalidade e a constitucionalidade dos atos do governo, o povo fica sem defesa quando o golpe é dado pelo próprio judiciário.
É fácil imaginar o que está acontecendo na mídia venezuelana, que é contra o governo chavista: toda ela denuncia o golpe, enquanto as agências governamentais afirmam que se trata de uma decisão judicial, e que, de acordo com a Constituição, o judiciário tem a última palavra nos litígios entre os poderes: decisões judiciais devem ser cumpridas.
Que providências tomar, em tal caso? Sabemos que o remédio, aí, é cercear o abuso de poder judiciário, mas como fazê-lo? Inexiste, na Constituição, qualquer previsão a respeito. Alguns pensam que basta aperfeiçoar as normas, já existentes, sobre abuso de poder. Isso, porém, é infantil, visto caber, ao judiciário, a aplicação das normas legais.
Creio ao menos que, daqui para a frente, ressalvados a excelsa memória de Simon Bolívar e o respeito devido ao povo venezuelano, poderemos designar como “bolivariano” todo poder judiciário que, deixando de lado suas elevadíssimas funções constitucionais, passe a atuar como partido político.