por:Valério Arrcary
Foi em 1883, há 134 anos. Já celebraram incontáveis vezes a morte do marxismo até hoje. Sempre em vão. O que nos provoca duas boas perguntas: por que o marxismo mantém suas posições? E por que há tanta resistência ao marxismo? A primeira resposta é simples: enquanto o capitalismo existir, o marxismo continuará sendo o vocabulário da luta dos trabalhadores em defesa de seus interesses. Será um marxismo aberto e renovado, porque assim deve ser a sua vocação científica. A segunda resposta é mais complexa. claro que é fácil compreender por que aqueles que têm interesses materiais na preservação do capitalismo odeiam o marxismo. Mas, e a maioria, aqueles que não têm esses interesses? Por que são hostis?
Vejamos em grande perspectiva. A esmagadora maioria dos seres humanos vai dormir todos os dias sem perder o sono com a nossa solidão cósmica. Eu também, é claro. A citação que escolhi para ilustrar o tema é de Stephen Jay Gould, paleontólogo e divulgador científico, e contém uma interessante observação sobre as resistências enormes que todas as grandes revoluções científicas enfrentam. É natural que a ênfase esteja colocada nas reservas imensas que uma parcela bastante significativa da humanidade mantém em relação à teoria da evolução. Até hoje resistem à ideia simples, porém, perturbadora de um ancestral comum aos símios.
Mas ele talvez se engane quando conclui que se trata da revolução científica que teve o mais radical impacto sobre a finalidade de nossa existência. Tanto a revolução freudiana quanto a marxista, em minha opinião, tocam em tecidos mais sensíveis e nervos mais expostos. É certo que na escala colossal das durações da seleção natural, os acidentes bizarros da evolução, as dizimações em massa, os abismos genéticos em que espécies mais duradouras que a nossa sucumbiram, enfim a completa ausência de moralidade na natureza, é uma vertigem desesperadora para a consciência humana, porque coloca sob uma nova perspectiva a possibilidade da extinção. o medo dos atavismos do subconsciente, a angústia com as pulsões mais elementares da condição humana, o pavor da morte, fazem estremecer os alicerces mesmos de uma sociedade que tem enormes dificuldades em aceitar a indivisibilidade de uma inteligência que é racional sendo emocional e é emocional sendo racional. Por último, os medos sociais estão de tal forma enraizados sob camadas de preconceitos de classe, raça e nação, que a idéia mesmo da indivisibilidade da liberdade e igualdade, fundamento filosófico essencial do marxismo, desperta ódios e fúrias irredutíveis:
“Não precisamos de nenhuma grande sagacidade filosófica ou cul¬tural para reconhecer por que a revolução darwiniana é tão difícil de aceitar e por que ainda está longe de ser concluida na acepção freu¬diana do termo. Creio que nenhuma outra revolução ideológica na his¬tória da ciência teve um impacto tão forte e direto sobre como concebe¬mos o sentido e a finalidade da nossa existência. (Algumas revoluções científicas, embora igualmente portentosas e inovadoras quanto à reconstrução física, simplesmente não têm o mesmo impacto sobre a alma humana. Por exemplo, a geotectônica modificou completamente nossa maneira de encarar a história e a dinâmica da Terra, mas o fato de a Europa e as Américas terem formado outrora um só continente ou de os continentes situarem-se sobre finas placas que flutuam sobre o magma terrestre pouco afetou a forma de as pessoas encararem o senti¬do de suas vidas. Gosto de resumir o significado da destruição de pedestais da revo¬lução darwiniana, tal como eu o interpreto, na seguinte frase (que pode¬ria ser entoada várias vezes ao dia, como um mantra Hare Krishna, para ajudar a penetrar na alma): os seres humanos não são o resultado final de um progresso(…), e sim um pormenor cósmico for¬tuito, um pequenino ramo da espantosa arborescência da vida; se a semente fosse replantada, é quase certo que não voltaria a produzir o mesmo ramo e, possivelmente, nenhum outro galho com uma proprie¬dade que pudéssemos chamar de consciência” (GOULD, Stephen Jay. Dinossauro no Palheiro. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 395)