por: Ailton Benedito de Sousa

*Reelaborado em alguns aspectos – abertura de parágrafos e colocação de subtítulos, o trabalho se constitui de duas partes, a serem publicadas em seqüência.  O autor teve militância política no período, principalmente nas décadas de 60,70e 80. O objetivo principal do artigo é provocar um brainstorm – cuja tradução para nós devia ser roda e não chuva de idéias, com o fito de esquentar o debate que por certo o Golpe está suscitando, assim criando clima para uma assimilação vivenciada, através de esforço rememorativo por parte do leitor. Que se veja como as palavras, os conceitos, instrumentos para o pensar, numa determinada época escondem, condicionam ou limitam a compreensão que se tem dessa época. É o que se pode entender por base epistemológica de uma era em seu processo de mudança ou transformação.

LEIA: OS GOLPES (64 e 2016) E A SOCIEDADE BRASILEIRA (parte 2)

1.Entrando na roda

Vejamos em alternância de parágrafos o que há  de diferente  entre os dois contextos – o do golpe de 1964 e o de 2016. De chofre, a base de conceitos com que nos anos 60 se concebia e descrevia a realidade apresenta em relação aos nossos dias diferenças marcantes. Ponhamos em oposição alguns conjuntos dessa base de conceitos, à época referidos por vários termos como  “a ideologia”, a teoria científica, a metodologia, a linha política, a mentalidade ou a cosmovisão, tudo isso que hoje  é referido com termos como o imaginário,  o discurso, os novos paradigmas, as narrativas estruturantes, as bases epistemológicas, os cânones de pensamento, as estruturas de conhecimento, enfim, os instrumentos conceptuais do sistema mundo-moderno-colonial etc.

Embora, em termos globais já fossem disponíveis, mesmo antes dos anos 50, os diferentes mananciais de onde provêm os conceitos usados hoje, ou seja, mananciais como a semiologia, a teoria da comunicação, os aportes da psicologia, da psicanálise e das correntes filosóficas de crítica à cultura e à história, pode-se dizer que do final do século XIX  até precisamente a derrubada (não queda) do muro de Berlim, as idéias de Marx e o que elas contra ou a favor mobilizavam, tinham  curso indisputado como acervo  de formação da opinião laica, não especializada, mas comprometida com a transformação da realidade, isto é, para a ação política. Um conjunto de conceitos-senhas  formatava e resumia a compreensão do mundo: economia capitalista; economia de trocas ou socialista; burguesia-classe operária-campesinato;  capitalismo-socialismo; colonialismo;  comunismo-fascismo-nazismo; classe média, alta, baixa; lumpen proletariado; posseiro-latifundiário; guerrilha-guerrilheiro; guerrilha urbana;  alinhados-não alinhados;  socialdemocracia; sindicalismo-anarquismo; anarco-sindicalismo; revolução-contra-revolução;  desenvolvido-subdesenvolvido;  Primeiro Mundo-Terceiro Mundo (o Segundo, supunha-se o socialismo, em muitos aspectos confundia-se com o Primeiro); corrida armamentista; explosão nuclear; exploração do homem pelo homem; encíclicas papais, a Pacem in terris, de Leão XIII, de 1891 (trata da questão operária na Europa); e a Rerum Novarum, de João XXIII, de 1963, o mundo do pós-guerras…

Assim, para o analista armado dos conceitos-senhas acima, e das respectivas contra-senhas, o Golpe de 64 aparentemente confirmava a compreensão geral que à época se tinha  ou devia ter do capitalismo e de sua rota de evolução como a penúltima etapa da configuração social do mundo, seu sistema de produção, seu padrão de  relações internacionais e linhas de competição com o bloco socialista. À emissão da senha: Colonialismo! – contra-senha: na América acabou no século XIX com a independência de nossos países… ou está acabando agora na África!.. Senha: Capitalismo! – contra-senha: Em marcha para a extinção! A propósito, Meio ambiente não era senha.

 

Hoje capitalismo tem mais a ver com a figura da hidra, que ao corte de uma cabeça, nasce outra. Compreensão impossível de então nascer, até mesmo porque os postulados evolucionistas da história confirmavam-se frente à pujança aparente  do imenso bloco socialista. Ninguém podia jamais pensar que nova experiência capitalista pudesse espontaneamente ser inaugurada como a chinesa a partir do fim da Revolução Cultural (http://www.dw.com/pt-br/1969-fim-formal-da-revolu%C3%A7%C3%A3o-cultural-na-china/a-310858), senão se patrocinada e promovida  pelo hegemônico. Hoje, à emissão dos conceitos-senhas acima, não mais há resposta através de específica contra-senha. Por exemplo, em 64 emitida a senha: Classe operária! – contra-senha: Conclusão de metas de proteção e organização planetária do trabalho. Hoje, com a Terceirização!, Privatização!, a contra-senha é muda ou: Precarização progressiva!; Escravidão!

O golpe em curso, enfatize-se,  só adquire compreensão se o analista armar-se  de nova base de conceitos que marquem nossa rendição, o reconhecimento dos erros cometidos, a nossa presunção e empáfia quanto à infalibilidade de qualquer instrumental teórico relativo à ação do ser humano. Para a mudança, cumpre voltar à História como quem dela não sabe nada, repudiando os compêndios e acervos do Prometeu hilário, a presunção de “cientificidade” em História, em especial comprometendo-se com a superação absoluta  de Descartes, e relativa de Marx, trazendo-lhe o  aporte de elementos por ele não vistos ou visitados, já que vedados pela época e metodologia criada. Cumpre abrir vias de estudo crítico do fenômeno da monetarização (que pode ter origem e curso popular, independente da oficial) e das finanças, onde a questão dos juros introduz o viés da irracionalidade de todo o sistema.  Em resumo, um novo quadro de conceitos-senhas. A crise no Brasil e no mundo mostra que não mais pode haver desenvolvimento espontâneo, autônomo e sem traumas de uma singular economia capitalista, como pensaram PT e empreiteiras. A tarefa exigiria ações impossíveis, como: a) acumulação inicial extra, em cima da que neste momento sustenta a operacionalidade e auto-renovação do sistema capitalista em curso; b) logística objetiva de base (indústria pesada e bélica a partir de tecnologia de ponta, um super poder de persuasão);  c) novos mercados que remunerem o novo capital imobilizado, a remuneração assimétrica de seus setores produtivos, a poupança e o acúmulo do específico capital financeiro  necessário  a essa fase de novo take-off); d) sem laissez faire no mundo moral (nada de condenação à corrupção – não se pode querer capitalismo e elevação de padrões morais); e  e) sem que sejam permitidas e incentivadas  “negociações de natureza bélica” (guerras)  que repactuem o quadro de fé – “fiduciário”, sobre aquilo que é valor, riqueza e sobre “aquele” que tem o poder de dizer “isso é riqueza”. Ou seja, sem guerra permanente! Hoje se vê que os “aliados capitalistas em crise” destruíram as cidades da Palestina, Síria, Líbia etc., visando reconstrução a partir de novos proprietários do acervo urbano (eles mesmos, ou seja, nova forma de roubo em escala).  E eis o erro da esquerda hoje, nesse 2016: acreditou na possibilidade de se introduzir novo pólo capitalista no mundo ao lado da China! Acreditou numa elevação pacífica, permitida, da economia brasileira a ponto de poder sair da órbita dos EUA.   

Nos séculos XIV, XV e XVI, etapa primitiva do processo de acumulação capitalista, a articulação dos elementos dessa logística (os recursos naturais, a massa trabalhadora e consumidora, ameríndios e africanos, ambos pela ideologia animalizados), os esquemas de segurança ou sustentabilidade financeira,  enfim,  a “invenção” do capitalismo  nesses três séculos pôde e foi conduzida pelos europeus, sob os aplausos de todos, até mesmo de muitas das vítimas.  Hoje, ao contrário,  na consciência das massas, os elementos dessa logística diabólica, a do capitalismo e do colonialismo, começam a ter todos os seus passos tipificados como crime contra a humanidade, como corrupção. O paradoxo é que hoje o hegemônico destrói qualquer economia que com a sua deseje competir, simplesmente levantando através da mídia a população do pretendente concorrente a partir de valores morais que ele desconhece e desrespeita, do mesmo modo como há cinco séculos desconheceu e  desrespeitou. Com acinte, ele parece nos dizer: “venha competir conosco, mas a partir de uma ação jurisdicionada, legalizada, virtuosa…” (ria-se à vontade). O modo de nascer, de ser e fazer capitalista não pode ser visto senão como  guerra de extermínio, assalto, roubo, butim, COLONIZAÇÃO e permanente CORRUPÇÃO.

E eis em simples palavras o grande serviço que o magistrado Moro está prestando ao sistema capitalista mundial, especificamente aos EUA: impedir o nascimento de mais um bloco de grandes capitalistas no mundo – o dos brasileiros, casualmente tendo à frente alguns baianos – caso das empreiteiras por ele desestruturadas.  Daí a radical “ambigüidade” com que é vista a tal Operação Lava-Jato, que pode tornar-se o primeiro passo em direção  à nossa iugoslavização.  Agora vejam a cabeça desse magistrado: 8 milhões de km2, 8 mil km de costas, mares subterrâneos de água doce de dimensão planetária; o Pré-sal, imensos tesouros a descobrir. Do lado humano, caminhando-se para os 250 milhões de habitantes, maioria jovem; herança colonial em todos os aspectos importantes das relações sociais; quadro institucional fragilíssimo agora, diante do desmantelamento dos pilares da coesão social: – ataque à seguridade social, especialmente às normas de aposentadoria, saúde, educação. Enfim, alienação dos ativos patrimoniais do estado e sua fragilização forçada para a gestão do seu próprio território…Pode ser patriota quem promove e pactua com esse tipo de ação?

  1. Ampliando o tema de discussão

Por falar em moral, avaliemos como o quadro epistemológico de 64 bem abrigava o “perdão” aos hegemônicos, quanto a seus crimes naquele particular presente e no passado em geral: Acompanhemos a argumentação: A História era a sua própria teleologia. As sociedades humanas marcavam seu curso no tempo e no espaço, evoluindo dos estágios mais atrasados aos mais avançados, através de sua práxis. A bem dizer, em princípio não havia essa insistência em culpar essa ou aquela formação social, de classe ou de raça pelo atraso do Terceiro Mundo. O colonialismo era coisa pretérita,  do século XIX. O último impulso pela auto-organização do povo negro fora na década anterior à chamada revolução constitucionalista de São Paulo, já que segundo o marxismo a consciência de classe superpunha-se a tudo. Vejam a coerência das coisas: parece haver mesmo um “imaginário público”, de uso comum e marcado pela coerência. Os EUA, juntos com (http://www.historyisaweapon.com/zinnapeopleshistory.html) o grupo de cinco ou seis  conhecidas nações européias eram aceitos como “o mais alto ponto” alcançado pela humanidade em evolução, a priori que justificava o racismo. E isso sem contestação. Nesse então era “vero”, indisputável, o fato  de se haver colocado o homem na Lua, a Humanidade dera e dava  passos à frente mesmo! A tecnologia operava milagres mesmo, a penicilina antecipava o fim de muitas doenças. Os foguetes espaciais já estavam tornando conhecidos os grandes cérebros eletrônicos à válvulas, primeiro nome para computador. 

Afinal de contas, os EUA saíam da última guerra mundial (a guerra que acabaria com todas as guerras!) como a hegemônica nação vencedora, logo, como aquele herói cujo manto imaculado não se podia manchar com essa ou aquela culpa inerente a falhas dessa nação ou daquele povo na sua própria evolução. No campo da história não cabiam culpas. A evolução  em marcha redimia tudo.  Do “atraso” africano, a culpa cabia à própria  África. A hipótese justificadora era a de que o conflito mundial de 39-45 fora a última guerra. A partir de então, que  todas as nações, vivendo em paz, marchassem, em harmonia com essa constelação de astros (os EUA e asteróides em zênite), a trilha do progresso. Não obstante a Cortina de Ferro e a Guerra-Fria, a Humanidade saudava unida, una, o aparecimento jubiloso do socialismo no Planeta, fruto da grande Revolução de Outubro de 1917, primeira revolução operária vitoriosa, o coveiro da etapa de exploração do homem pelo homem. A URSS, aliada na destruição do mal, do câncer, o nazi-fascismo,  então era vista como uma locomotiva à frente do expresso-socialista das nações antes retardatárias (ou subdesenvolvidas) agora todas  em direção a regiões inimagináveis de felicidade e bonança nessa passagem do homem sobre a Terra.

Hoje, descarrilado esse trem do futuro por sabotadores de dentro e de fora, a formulação de um futuro para a humanidade, de um fim da história,  é entendida por partes, em etapas: – o fim (término)  do capitalismo; ou da humanidade; ou do mundo; ou tudo junto de uma vez só, com implosão da Galáxia.  Para qualquer uma das alternativas, porém, há indícios comprobatórios suficientes, base para a atual compreensão pejorativa do termo Utopia.

Em 1964, a humanidade, não obstante o sempre recidivo racismo se sentia “una” quanto a um futuro “comum” (vide a Onu e sua Carta, jamais perdoando-a pelo erro irreparável, a criação do estado de Israel, hoje se vê diante de senhas como Isis! Supremacistas brancos!, Grande Israel!)  na medida em que nela se vislumbrava  pelo menos um projeto comum construído por vínculos de solidariedade: o socialismo, além de uma ação em curso planetário chamada Descolonização da África, essa sim, na época palco de  guerras que produziam Heróis… Jamais se esqueça que o bloco socialista, em termos de comércio internacional, operava a partir de trocas, de modo geral em igualdade de condições, base de sustentação da economia de Cuba até 1990 e de várias nações africanas recém-tornadas independentes.  Hoje opera-se  com uma única moeda, o dólar, cujo curso é obrigatório para a compra de certas mercadorias e serviços essenciais   (petróleo, diamantes, armas, conhecimento), mais ainda, moeda cujo valor em relação à maioria das demais  é sempre ascendente e o lastro, a objetiva garantia de seu valor,  é o próprio e impagável  somatório de todos os déficits orçamentários dos EUA… Absurdo! https://www.youtube.com/watch?v=6Y1TCzS6-iA

A propósito,  embora obtuso, não há mais lídimo exemplo da atual base epistemológica escatológica inerente ao mundo do “recolonializador”  (sua maneira de pensar e agir, construir a realidade vivida e sonhada a partir da dicotomia homem x sub-homem). Por essa epistemologia escatológica, naturaliza-se a Absurdidade  de vincular-se a finalidade última do viver a um bilhete  cuja aquisição exige trabalho e energia, e cujo “valor” decorre do medo do usuário do bilhete quanto à capacidade do seu emissor destruir o mundo a partir de seu poderio bélico! Mais ainda, é o usuário que paga e financia o projeto escatológico do emissor do bilhete! 

A constituição de lastros referenciais ao valor das moedas de maior curso (e por conseguinte de todas as demais e mercadorias), o ouro,  até o fim unilateral dos acordos de  Bretton Woods (1971), teria mais racional base para uma aceitação geral legitimada, já que pelo menos tinha atrás de si milhares de anos de existência. Não há aberração mais explícita a justificar a necessária presença de ramos da psicopatologia no estudo do homem sob o atual capitalismo. O bicho é louco, mesmo. Em termos figurativos, segundo uma metafísica cristã, o vigente sistema monetário é o equivalente de o crente (a propósito, moeda fiduciária = relativa à fé) viver e glorificar  o Diabo e suas obras, crendo ou fingindo crer que glorifica  Deus. A alienação é total.

A propósito, era em coerência com o anterior quadro monetário internacional, que, também, podia adquirir nexo a política industrial do bloco socialista, uma vez que em detrimento dos bens de consumo para sua sofrida população,  a URSS desenvolvia uma descomunal base industrial pesada porque, como fizera em Assuã, no Egito,   (http://www.anppas.org.br/encontro6/anais/ARQUIVOS/GT15-144-522-20120628212658.pdf)  construindo a grande hidrelétrica do Nilo, ela pensava o mesmo fazer em todo o mundo subdesenvolvido. E note-se que desde os mais remotos tempos da dita Antiguidade todos sabiam que as grandes reservas naturais de ouro estavam na África. Com o argumento supra não se quer diminuir os efeitos desagregadores da corrida armamentista sobre a economia soviética.

  1. Variações em torno do tema

Com a derrubada do muro de Berlim, que para a mídia simboliza “o fim do mundo pós-45”, em 2016 a luta pelo golpe insere-se na opção feita pós-1989 pela direita nacional e internacional: consolidação planetária e irreversível do modo de produção capitalista no seu formato paradoxal,  ‘nanotecnológico’  ou de quinta ou sexta revolução industrial, no que tange a máquinas, e “zoológico”, no que tange aos seres humanos. Maisuma vez, fazendo prestidigitação com as palavras,  seus articuladores chama-no de neoliberal. Vide Consenso de Washington. (https://pt.wikipedia.org/wiki/Consenso_de_Washington).   Assim, a primeira constatação é a de que hoje a luta contra o golpe carece de referência internacional sistêmica, vale dizer, um ente, uma consigna que aglutine a humanidade como um todo frente a objetivos que apresentem um mínimo de princípios éticos, a solidariedade, a fraternidade. A Igreja católica em crise. A Onu partidarizada e participando de guerra de agressão a estado-membro: a Costa do Marfim. Note-se ainda que hoje as guerras “capitalistas” sem disfarces e a partir de drones não mais produzem heróis, mas monstros, cães danados etc.  Fora da alternativa  presa-predador,  não há projeto comum para a humanidade. Não é, jamais foi da essência do modo de produção capitalista ter projeto comum para o humanidade que fuja do esquema presa-predador, colonizado-colonizador, escravo-senhor.

Os meios de comunicação que em países subdesenvolvidos antes de 64 ainda eram referidos e representados pela imprensa e pelo rádio (imprensa escrita  e falada), embora a síntese com o vídeo já existisse, pois como hoje a mesma concessionária  de tv já tenha sido o braço forte dos golpistas, esses meios, ou a mídia, ainda não tinham como meta se tornarem “arma principal na guerra ideológica do capitalismo para o embrutecimento das massas”, alterando padrões de pertencimento grupal e nacional, uniformizando  seu imaginário em torno de banalidades indutoras do consumo,  estimulantes à violência gratuita, à fuga ao pensamento racional e crítico, estimulantes enfim  à fruição via drogas de estados de percepção onírica ou alucinatória. É dos anos 70, fato histórico registrado, obra do FBI, a criação institucional do mercado das drogas alucinógenas e criadoras de dependência no âmbito das populações de baixa renda. Hoje elementos das cadeias produtivas desse mercado são atores na vida política nacional,  independentemente  do porte da unidade onde vivam essas comunidades pobres, se distrito, vila, grande cidade, município, cada núcleo em si mesmo  constituindo uma força armada, legislativa e jurisdicional. Pasmem se puderem: ora consentidas (justificam-se os gastos em segurança); ora reprimidas (justifica-se a supressão das garantias individuais e sociais e a existência de cada vez maiores contingentes policiais).

No entorno das décadas de 60/70, esplendor da Igreja católica de João XXIII eclode no país e em todo o mundo dito subdesenvolvido algo como um grande  revival,  antecipação ou aurora de novo mundo, movimento de catequização  oriundo da opção preferencial pelos pobres: os Evangelhos ou as boas-novas do Cristo reacendendo os corações na esperança de salvação neste e no outro mundo…Não se falava em padre bilionário, não se concebia poder existir milícias armadas ligadas a comunidades religiosas  (como hoje elas existem ligadas ao movimento evangélico) em ódio contra os praticantes de outras religiões (até mesmo porque podia haver, como alvos,  umas meias dúzias de protestantes que assim mesmo se autodenominavam: protestantes). As diversas ordens de movimentos sociais (inclusive a esquerda “fora da lei”) organizavam-se, em princípio, a partir de “associações sem fins lucrativos” (não existia nem ong nem oscip) e mantinham-se da contribuição voluntária dos associados, pré-requisito para  pertencer, votar e ser votado. As associações de moradores, de bairro e de favelas, como espaço de encontro de diversificadas ordens de militância política e social, eram entidades combativas que gozavam de grande simpatia. Elas, dos 80 para cá, quando as facções do tráfico começam a assassinar  seus diretores,  juntamente com o movimento hiphop e principalmente  os terreiros de candomblé (o culto não admite certas drogas, usa canto e percussão e perturba o tráfico, por ter ocorrência à noite), vão ser os alvos prioritários das milícias de toda a ordem em luta por hegemonia absoluta. Por outro lado, a crise do reajuste financeiro dos anos 80 e 90, com arrocho salarial e inflação galopante  naturalmente extingue a associação sem fins lucrativos. Só sobrevive hoje a ong/oscip ou  “igreja evangélica” que inserida no mercado, principalmente na lavagem de dinheiro,  fature como grande empresa, de preferência também via repasses do estado ou de grandes multinacionais…tremenda contradição.

A sociedade brasileira em 2016 não é marcada apenas pela abrangência de seu mercado de drogas, ela o é também pela dispersão de um evangelismo caracterizado por práticas e fins associativos de natureza político-assistencial (necessariamente a partir dos recursos públicos) e empresarial, dificilmente por qualquer vínculo que se refira a qualquer tipo de renascimento e redenção neste ou  num outro mundo. Sem refinamento nenhum, os pastores, pessoas do povo,  por um lado reelaboram as práticas rituais preexistentes: passes mágicos, invocações ligadas ao acervo índio-africano, sacrifícios (este necessariamente em moeda); por outro, os pastores sofisticados, reelaboram as teses das seitas supremacistas brancas… Em muitos e muitos casos, pertencer a uma igreja evangélica é para o pobre a mais efetiva garantia de acesso aos instrumentos das políticas de assistência social da união, dos estados e dos municípios. O que explica a completa inserção dos evangélicos como militantes políticos e candidatos  em todos os pontos da estrutura político-administrativa do estado, inclusas as forças armadas e policiais, o judiciário e o legislativo.

  1. Fechando a roda com a África

Cumpre dizer que é completamente diferente hoje o imaginário  de bom número de pessoas relativamente à África, à sua história, à sua Diáspora. Em 1964 jamais se sonharia, no país, poder alguém dizer que o Egito antigo tivesse sido não só uma civilização negra, mas uma inaugural civilização negra no centro de várias civilizações negras. A documentação levantada hoje não permite qualquer tipo de dúvida. Esse fato agora levanta significações de todas as ordens. Em primeiro lugar, confirma que com o início da mundialização (1492) passa a haver competição quanto a que tradição de conhecimento, que cultura, que discurso, vai falar pelos demais num mundo comercial e geograficamente unificado, ou seja, de que modo esse “demiurgo” vai subsumir os mundos encontrados. Assim, na perspectiva de encontro de várias epistemologias, hoje melhor se compreende como vai ocorrer o processo que leva à hegemonia o discurso  europeu, como ele vai poder batizar  e certificar a produção material e cultural dos povos (até mesmo recriando um “Renascimento” para si). Quem é homem, quem é escravo, que é História e como escaloná-la?  Vai dizer quem está nela, quem está fora dela, que critérios são necessários a uma obra cultural para almejar a…universalidade, termo que com Hegel passa a ter ácido e nauseabundo significado de natureza racista (https://lectures.revues.org/12451).  

Subsumindo os mundos encontrados, vão os europeus se apropriar da produção cultural do seres humanos em todo o Planeta, não só hierarquizando essa produção, como destruindo tudo que com a deles pudesse competir ou lhe roubar a primazia. Sem consultar a África, a China, a Índia, ou mesmo e principalmente a Austrália, com empáfia proclamam que as doze mínimas escalas musicais são gregas e universais (qua.qua.qua). De modo que após quinhentos anos de subsunção, resulta-nos um específico e uniforme  nível ou fazer epistemológico, a aceitação de  “um “saber” subsunsor,  e de um não-saber inferior “não-saber”subsumido, “um não-saber eterno, de natureza animal, se animal que não pereniza sua cultura pode ter saber”, enfim, uma narrativa épica frente a arremedos de “literatura de cordel”, a primeira  com o condão de,  diante das demais, com função dicotômica:  revelar/iluminar – recalcar/escurecer, arquivar/destruir/(re)interpretar/ensinar, gerando o clássico, o universal e o popular, o chulo. Em outras palavras, o acervo histórico, o arquivo de onde poderiam vir “as provas” que dão sustentação à interpretação do mundo por nós recebida e transferida desde os primeiros passos do Homo Sapiens  é não só destruído, mas recriado a partir do logro, da farsa,  por uma dinastia de Prometeus ou Demiurgos hilários.Recentemente, o Isis repetiu em Tombuctu, no Máli, o que o bárbaro fez na América e em África. O mundo como é/está não existe por acaso. É uma piada criada por facínoras.

Ainda quanto a nascente visão de mundo, em luta por merecer consideração e análise frente aos quase seis séculos de pensamento  colonizador eurocêntrico,  indicamos o artigo abaixo, cuja tradução  dada sua importância, elaboramos  https://pt.scribd.com/doc/296639866/A-ESTRUTURA-DO-CONHECIMENTO-NAS-UNIVERSIDADES-OCIDENTALIZADAS-EPISTEMICO-RACISMO-SEXISMO-E-OS-QUATRO-GENOCIDIOS-EPISTEMICIDIOS-DO-LONGO-SECULO-XVI-  ver também: http://scholarworks.umb.edu/humanarchitecture/vol11/iss1/8/ . O artigo supra-referenciado, de modo sintético,  dá a base de argumentos de apoio às novas linhas de interpretação e crítica aos postulados inerentes à visão de mundo, racista,  ainda certificada pela academia ocidental. De chofre o autor mostra não apenas as inconsistências do chamado cânone de pensamento ocidental, como ademais a arrogância implícita no “Penso, logo existo” de Descartes,  base de pretenso método científico, objetivo, tido como um ponto neutro, fora do mundo. Apresenta e discute seus postulados  idealistas, ou seja, seu dualismo e solipsismo auto-assumidos.  A mente, em coerência com Descartes é categoria fora do mundo e o Eu, portanto, elemento de sua estrutura, pode alcançar clareza  absoluta na representação e subsunção do mundo por meio do solilóquio, assim se comparando ao “justo, preciso, infalível”  e universal  olhar de Deus. Em sua argumentação o autor, com pontuações de Enrique Dussel  e de Boaventura de Sousa Santos, repete a famosa linha de perguntas que deixo como questões instigantes à curiosidade leitor: “Como é possível que o cânone do pensamento em todas as disciplinas das Ciências Sociais e Humanidades nas universidades ocidentalizadas (Grosfoguel, 2012) seja baseado no conhecimento produzido por um punhado de homens oriundos de cinco países da Europa ocidental (Itália, França, Inglaterra, Alemanha e EUA)? Como foi possível que homens desses cinco países realizassem um tal privilégio epistêmico ao ponto em que seu conhecimento hoje seja considerado superior ao do resto do mundo? Como vieram eles a monopolizar a autoridade do saber no mundo?  Por que é que o que conhecemos hoje como teoria social, histórica, filosófica ou como crítica teórica está baseado  na experiência sócio-histórica e visão de mundo procedentes dos cinco países?”