por: Antonio Francisco da Silva
A primeira bomba de gás lacrimogêneo não demorou a explodir. Corre-corre de gente e cavalos. A quase manchete anunciara mais uma apresentação do Centro Popular de Cultura – o CPC da UNE. De novo, seria ouvida aquela música gravada pela Nora Ney – “João da Silva/ Cidadão sem compromisso/ Não manja disso/ Que o francês chama l’argent” (…). Outra vez, seria visto aquele bocejar do Vianninha, corpo contorcido, representando o despertar do gigante adormecido. Mas antes do grupo teatral, entrou em cena a polícia em nome da “moral, dos bons costumes, da família”.
No palco improvisado nas escadarias do Palácio Pedro Ernesto, enquanto políticos e lideranças estudantis tentam parlamentar, alguns são empurrados pela truculência. Embaixo, do Palácio à Biblioteca Nacional, do Teatro Municipal ao Amarelinho, a platéia agita, protesta, defende o direito de expressão. A cavalaria, pronta para a repressão.
O CPC da UNE é impedido de levar a peça. Os discursos ficam tolerados. Pronunciamentos se sucedem. Como aquele de episódio pitoresco, envolvendo um orador e relaxando um pouco a tensão do ambiente, com um “oh” ecoando por toda a Cinelândia. Afinal, quase todos conheciam aquela máxima do Machado de Assis, pois sempre vinha como epígrafe da coluna muito lida do escritor Marques Rebelo, no jornal Última Hora. Quando enunciada, pensou-se no renomado criador da Capitu. Mas o orador – representante da União Metropolitana dos Estudantes – UME, antes de citar o autor, achou por bem acentuar o efeito e repetir, pausada e solenemente: “Não há viiinho… que embriaaague… como a verdade!…”. E concluindo: “já dizia… Castro Alves”.
Corria o ano de 1963. Sindicatos de trabalhadores e organizações estudantis intensificavam suas participações como agentes propulsores de mudanças reclamadas pelos segmentos politicamente mais conscientes da população. O centro da cidade do Rio de Janeiro era palco de manifestações lideradas pelos universitários do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira – CACO, da Praça da República, a Engenharia do Largo de São Francisco e a Faculdade Nacional de Filosofia – FNFi que tornou referência seu endereço na Antonio Carlos 40, vizinho à Maison de France e ao Bar Filosofia. O Calabouço era o reduto maior dos secundaristas. De tão freqüentemente reprimidas pela polícia e quase sempre realizadas no final da tarde, a tais manifestações a irreverência dos participantes referia-se como o “gás das 5”. Tudo, antes do confinamento imposto aos universitários no Fundão e da literal demolição do Calabouço, em prejuízo do aprendizado extracurricular.
Cada vez mais, crescia no meio estudantil o amadurecimento dos envolvidos no processo de luta. O avanço do processo até produzia mudanças de comportamento, de postura, de uma razoável parcela. Não era maioria. Certamente, não. Mas evidência de algum narcisismo era considerável, quando alguns militantes procuravam posições destacadas em passeatas, com atitudes e olhos atentos às máquinas fotográficas. No dia seguinte, acotovelavam-se diante do mural de jornais, no Diretório Acadêmico. Buscavam em cada fotografia uma possível publicação de seus rostos. Estranha conduta festiva. Mas nada de generalização! Pelo contrário. Cada vez mais, o processo de luta aprofundava a conscientização de que a seriedade de um se refletiria no desempenho de todos. Cada vez mais, o engajamento de todos, na execução de tarefas envolvendo ações que apoiassem mudanças de base requeridas, determinaria caminhos comuns a seguir, na consecução de objetivos para o alcance do desenvolvimento da sociedade como um todo.
E só com muita seriedade foi possível evitar, no final de dezembro de 1963, que a FNFi fosse palco e lastro de provocações comprometidas com a repressão em curso ao avanço das forças progressistas da sociedade. Um novo confronto se dá entre forças representativas de mudanças e aquelas resistentes ao futuro.
Na FNFi, pelos formandos do ano, haviam sido eleitos patrono e paraninfo os professores Alceu de Amoroso Lima e Anísio Teixeira. No entanto, minoria reacionária conspirou e tentou o golpe, programando solenidade paralela, tendo como paraninfo o então governador Carlos Lacerda. Mas a mobilização geral, em repúdio ao procedimento golpista, evitaria a leviandade. Sofás, cadeiras, mesas tornam-se material indispensável na montagem de barricada. A porta principal é fechada. Como no samba, quem está fora não entra, quem está dentro não sai.
No quarteirão do trecho da Antonio Carlos entre as avenidas Beira-Mar e Franklin Roosevelt, o combate entre as tropas opostas parece iminente. O governador chega à porta. Exige que seja aberta. Não é atendido. Chega ao auge da irritação com a colocação de faixa com endereço certo e efeito direto: SÓ ENTRA COM VESTIBULAR.
Chega o reitor. Mais esbaforido do que nunca. Certamente, preocupado com a audácia de “meninos” a colocar em cheque a quase vitaliciedade do cargo. Ao reitor e ao comandante aliado, defensor da Legalidade, a entrada é permitida.
– Vocês pensem melhor! Vocês poderiam provocar um confronto, de conseqüências imprevisíveis, entre tropas do Estado e da União. Provocar sérios riscos a populares inocentes.
Mas o reitor Pedro Calmon é retrucado pelo comandante:
– Nós jamais marcharíamos contra aqueles que estão do lado do povo e, portanto, são povo.
Cessados os aplausos ao comandante Boaventura, segue-se discurso inflamado de representante do Diretório Acadêmico. A defesa contundente pelo orador daquela manifestação é interrompida com um tapinha no joelho e a reprimenda:
– Tira o pé do sofá!
Um sofá já poeirento e usado como peça de barricada. O orador retoma a eloqüência interrompida. Instintivamente, recoloca o pé no sofá. De novo, o reitor interrompe, repetindo o tapinha e, estratégico, mais uma vez cortando o raciocínio:
– Já disse para tirar o pé do sofá!
Outros discursos se seguiram. A formatura paralela é cancelada. No quarteirão apenas alguns carros de capot amassado. Sinais até leve da batalha que não houve.
Um dia de batalha. Outro dia de festa. Também um outro de esperança. Esperança tremulando nas tochas de fogo trazidas pelos trabalhadores da Petrobrás. Na Central do Brasil, o povo se concentrara desde cedo. À noite, Jango anunciaria encampações. E, iniciando a efetiva implantação de reformas de base, os trabalhadores da terra teriam finalmente uma opção de vida, de viver, produzindo a independência em faixas de dez quilômetros ao longo de ferrovias e rodovias abertas no meio rural. Tarde da noite, naquele 13 de março de 1964, voltávamos ao nosso subúrbio para um breve pernoite. De volta para casa, fomos do primeiro ao último vagão do trem. Os passageiros iam em acalorada discussão política. O silêncio não havia sido imposto e a participação era conseqüência de processo político dinâmico e aberto.
Veio o 1º de abril. Os estudantes se mobilizam em defesa da Legalidade. Na FNFi, a seriedade era a tônica. A esperança, a palavra de ordem. Muitos talvez houvessem ouvido, pela manhã, o radialista Paulo Roberto, em seu “Bom dia, compadre!”, pela Rádio Nacional, conclamar em defesa da Legalidade. Mas as notícias do Sul eram desencontradas. As de Juiz de Fora, desalentadoras. Versões de iminente invasão da FNFi se avolumavam. Na Cinelândia, tiras infiltrados incitavam ao confronto desigual, inconseqüente. E numa época em que, nos meios universitários, o homossexualismo já era aceito em suas opções afetivas, aquele respeitável militante, sempre combativo e atuante, enunciou a palavra de ordem. Voz firme e incisiva:
– Companheiros, vamos em direção ao CACO! Evitem a Cinelândia. Vejam bem: é necessário evitar a Cinelândia! Sigam pela Presidente Antonio Carlos. Dobrem na Assembléia, no sentido da Praça Tiradentes. Daí sigam pela Constituição (!) até a Praça da República. Os estudantes se concentrarão no CACO, em defesa da Legalidade. A palavra de ordem deve ser cumprida ri-go-ro-sa-men-te. Tudo pela Legalidade! E… – (pausa e suspira) – Bola pra frente…
Chegamos ao CACO. Na entrada, fomos saudados pela tropa em prontidão. O tempo passando, passando. Orienta-se para que todos se afastem das janelas. Explode uma bomba. Os efeitos do gás lacrimogêneo são amenizados pela ação da amônia em lenços encharcados de urina. Vem a ordem de retirada. Saímos dois a dois.
À porta, os soldados continuavam de prontidão. Mas, agora, metralhadora à mão, faziam um ameaçador movimento com a arma. Sem saudações. Carrancudos. Sem sorrisos. O Presidente fora deposto. O País mudava a expressão do rosto.
Lá fora, acima da praça, o céu nublado e choroso, instável de frente fria, trazia a noite mais cedo. Os pássaros se confinavam na folhagem verde-brilhante do Campo de Santana. O gigante continuaria adormecido. Noite longa sobre a Praça.