por: Álvaro Augusto Ribeiro Costa

Carta a personagens imaginários

Em primeiro lugar, por favor, ninguém pense que estou falando com seres reais, nem se considere ofendido em sua honra.

É que, como meros e ocasionais personagens de uma extraordinária farsa que se desenrola num lugar também imaginário, não poderiam ter existência própria nem honra que se lhes pudesse atribuir.

Quem seria o autor de tão assombrosa tragicomédia?

É difícil saber, até mesmo porque os atores trocam de papéis a cada momento, numa volúpia que uma única mente, por mais delirantemente criativa, não poderia conceber.

De cúmplices ou co-autores de supostos delitos, passam de repente a acusadores, transmudam-se em seguida em juízes ou jurados, sob a fantasia da isenção ou integrando a claque dos que se aplaudem uns aos outros, cada um mais convencido da excelência de suas múltiplas e medíocres representações.

Um de cada vez ou em grupos, todos muito cientes dos torpes proveitos que almejam.

Cabe, porém, oportuna advertência.

Quando as buscas e apreensões invadirem de surpresa seus lares e as conduções coercitivas os expuserem com ou sem razão à volúpia sádica das multidões insufladas pela mesma mídia que hoje os incensa e amanhã os vilipendiarão, não invoquem a presunção de inocência nem o direito de saber do que são acusados; não peçam que lhes seja assegurado o direito de defesa e do contraditório, nem supliquem pela presença de um juiz imparcial.

Mas antes que isso ocorra, não percam tempo nem gastem dinheiro promovendo a operação lava-memória.

A História não esquecerá nem apagará o nome de vocês do rol das iniqüidades e das vergonhas.

E não adianta fingir que não há golpe; todo mundo já sabe.

Penitencio-me por não haver percebido antes quão distante me acho de vocês.

A rotina das chamadas boas maneiras esconde a essência das pessoas.

De uma coisa, porém, não tenham medo.

Não cuspirei em vocês.

Não é que não lhes tenha nojo.

Compartilho, quanto a isso, do mesmo sentimento que Ulisses Guimarães pronunciou e prenunciou em relação àqueles a quem se dirigiu em mensagem que as ondas do Atlântico ainda hoje – e com mais força agora – repercutem.

Contudo, diante da inominável deterioração moral em que estão mergulhados, o meu cuspe seria inócuo; não lavaria nada.

Devo admitir, entretanto, que me fizeram um grande favor: o de me propiciarem vê-los e ouvi-los como realmente são: preconceituosos, convencidos ou convincentes propagadores do ódio e da mentira.

Em suma, cúmplices entusiasmados do que há de pior no lastimável cenário escancarado ao mundo desde a tragicômica encenação do último 17 de abril e na farsa que dali para frente cada vez mais se desenvolveu como uma enxurrada de iniqüidades.

Caiu a máscara dessa gente que lhes faz companhia, cujos rostos não conseguem ocultar a mais repugnante feiúra moral.

Juntando-se ao painel de mentecaptos que a televisão sem qualquer sombra de pudor ou recato revelou para assombro, vergonha ou riso de brasileiros e outros povos do mundo, vocês estarão para sempre ligados.

E dessa memória pegajosa nada os livrará.

Não me digam que estão surpresos com os termos desta carta.

Posso até imaginar a cena em que estarão diante de seus queridos familiares, tentando justificar a própria conduta.

Por isso, explico: não se pode ser tolerante com o delito e o delinqüente quando o crime é permanente e flagrante.

Seria como dialogar com o ladrão que invade a nossa casa, rouba nossa liberdade, se apossa do nosso patrimônio e quer se fazer passar por mera visita, com direito a impor o que chama de ordem.

A hipocrisia se mostra com sua mais indecente nudez.

Não!

O diálogo e a compreensão são naturais e necessários entre pessoas que se respeitam no ambiente democrático; não, entre o predador da democracia e sua presa, entre o ofensor e a vítima.

As regras de civilidade, próprias da democracia, não socorrem quem contra elas atenta.

Contra esses, todas as formas de resistência são necessárias e legitimas.

Não há diálogo possível.

Não importa se o arrombador dos pilares da ordem democrática possa eventualmente se valer de uma maioria parlamentar corrompida e mal-cheirosa ou de juízes parciais e desacreditados.

Quando a injustiça e a corrupção se fantasiam de direito e moralidade, a justa indignação e a resistência se tornam obrigação.

Por fim, uma brevíssima oração: que Deus não os perdoe; vocês sabem muito bem o que fazem!

Mas os mantenha vivos e com saúde pelo tempo suficiente para a reflexão e o mais avergonhado arrependimento.

(Álvaro A. R. Costa foi Advogado Geral da União, Ex-Procurador Federal dos Direitos do Cidadão e Ex-Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República).