por: Mauro Santayana
(RBA – Revista do Brasil)- O STF, por meio do ministro Ricardo Lewandowski, suspendeu, no mês passado, a proibição, que durou algumas horas, decretada por uma juíza do Rio de Janeiro, de funcionamento do WhatsApp em todo o território nacional.
Espera-se que a sábia decisão regulamente definitivamente a questão, não apenas com relação ao aplicativo em questão, mas também a outros semelhantes, e evite que parte da Justiça continue procurando chifre em cabeça de cavalo e passando ridículo aos olhos do mundo.
A decisão da juíza e sua suspensão pelo STF se desenvolvem no âmbito da contradição entre indivíduo e sistema descrita por George Orwell, em seu profético livro 1984.
A obra do escritor britânico – publicada em 1949 –, que deu origem ao termo Big Brother, tão nefastamente apropriado por uma produtora de vídeo holandesa para servir de título ao programa de televisão homônimo, é a representação de um líder autoritário e onipresente, por meio de aparelhos de televisão, instalados em todas as casas e ruas de uma hipotética nação do futuro.
Por meio dessas telas, esse líder prega a ideologia de um regime político opressivo e brutal, com as mentiras cunhadas pelo Miniver – o Ministério da Verdade.
E opera, ao mesmo tempo, um sistema de monitoramento que vigia a cada passo tudo que é feito pelo indivíduo, a cada momento, esteja ele nas ruas, no trabalho ou fechado em sua própria casa.
Desde, pelo menos, o uso do recenseamento pelos romanos – o que, segundo Lucas, levou a família de Jesus a Belém – e o mito do massacre ordenado por Herodes para matar, ainda bebê, o “rei” dos judeus, que a informação é utilizada pelo sistema para vigiar, localizar e eliminar seus inimigos.
Da mesma forma que o anonimato na internet pode facilitar a comunicação entre criminosos, ele protege a vida de pessoas perseguidas por suas convicções políticas ou religiosas, tentando escapar, com suas famílias, da prisão, da tortura, do assassinato, em mãos de regimes ou governos ilegítimos e autoritários.
Desse ponto de vista, mesmo que apenas uma vida fosse salva em qualquer lugar do mundo, por meio do WhatsApp ou de outros aplicativos semelhantes, já estaria plenamente justificada a proteção do sigilo de suas mensagens, mesmo que outras vidas pudessem vir a ser eventualmente ameaçadas por esse mesmo segredo, em outras circunstâncias.
Segundo divulgado pela mídia, o ministro da Justiça do governo ainda interino, Alexandre de Moraes, pretende enviar ao Congresso projetos de lei que levem empresas estrangeiras a instalar suas sedes no Brasil, e a utilizar tecnologia que possibilite a decriptação (decodificação de dados criptografados) das informações trocadas pelos usuários. A não ser que se trate de discurso para a plateia, essa é uma hipótese absurda e descolada da realidade.
Primeiro, porque a decisão de instalar ou não aqui uma sede ou representação é estritamente mercadológica e, para muitas empresas internacionais de internet, o Brasil ainda é um mercado secundário e periférico.
Segundo, porque a internet não tem fronteiras. Google, Facebook, Telegram, WhatsApp não precisam instalar uma unidade em cada país para atender consumidores do mundo todo da mesma forma.
E em terceiro lugar, porque seus produtos foram desenvolvidos exatamente para, tecnológica e deliberadamente, por meio de criptografia automática e avançada – e a não gravação de dados – impedir que qualquer um, principalmente as autoridades, possa ter acesso às informações trocadas entre os usuários.
Ao contrário do que os governos pensam, muita gente escolhe usar um programa como o Telegram e o WhatsApp não para trocar informações, simplesmente, ou por uma questão de “popularidade”, mas para assegurar que suas mensagens se mantenham em sigilo.
Isso, porque coloca a sua privacidade em nível tão prioritário quanto o da facilidade no acesso ou agilidade de utilização.
E não apenas com relação a alguém que possa eventualmente ter acesso físico ao seu computador, tablet ou telefone móvel, mas principalmente no contexto de que essa informação não possa ser interceptada, quando está circulando entre um ponto e outro da rede, pelos numerosos braços do Big Brother de governos cada vez mais autoritários.
As empresas que fornecem esses programas e aplicativos não fazem isso apenas porque sabem que esse apelo à privacidade é um importante, imprescindível, ponto de venda na conquista de novos usuários, em um ambiente empresarial extremamente complexo e altamente competitivo.
Mas também porque ficaria tremendamente caro registrar e guardar os dados relativos à troca de bilhões de mensagens por dia, tornando proibitivo o preço do serviço para consumidores.
Mas mesmo que, eventualmente, fosse possível proibir e bloquear, por lei, no Brasil, o uso de certos aplicativos para impedir a comunicação entre bandidos ou “terroristas”, por exemplo, isso seria ainda, absolutamente inócuo.
Não há um, mas centenas de programas, até mesmo na Deep Web (internet “invisível”, cujo conteúdo não é indexado a mecanismo de busca) – e surgem novos todos os dias – que permitem a comunicação criptografada e sem monitoramento.
E centenas de outros programas que custam pouco mais de R$ 1 por dia e possibilitam ao usuário acessar a internet e todo tipo de aplicativos como se estivesse, virtualmente, em outro país – logo, fora do alcance da jurisdição das autoridades brasileiras.
E, finalmente, porque há, neste momento, dezenas de fundações e associações e milhares de cientistas e hackers trabalhando de graça, de modo voluntário e colaborativo, 24 horas por dia.
Denodados, criativos, eles aplicam tempo e esforços ao desenvolvimento de softwares gratuitos, voltados para assegurar e facilitar o anonimato e a privacidade na internet.
E se dedicam à defesa de ideais como liberdade de pensamento, de expressão, política e de comunicação, cada vez mais ameaçadas pelo avanço, em muitos lugares do planeta, do sistema representado pelo imenso Big Brother midiático-governamental do fascismo, da manipulação, da vigilância, do controle e do autoritarismo.