No 1º dia do julgamento que está sendo realizado no Rio de Janeiro, depoimentos e provas revelam que o afastamento de Dilma Rousseff fere a democracia
No primeiro dia de funcionamento do Tribunal Internacional da Democracia, iniciado nesta terça-feira (19) no Rio de Janeiro, o conjunto de depoimentos e provas apresentados pelos participantes apontam para um processo de impeachment que tenta ocultar um golpe. Um golpe marcado por ser parlamentar, misógino, elitista e midiático.
Iniciativa da Via Campesina Internacional, da Frente Brasil Popular e da Frente Brasil Juristas pela Democracia, o Tribunal Internacional analisa —do ponto de vista jurídico, político, sociológico, cultural e histórico— o processo de impeachment instaurado contra a presidente eleita, Dilma Rousseff, que caminha atualmente para a decisão final no Senado. Até agora, o conjunto de provas traz razões irrefutáveis para o arquivamento do impeachment pelos senadores.
Montado como um julgamento simbólico, contendo juiz-presidente, advogados e testemunhas de defesa e acusação, jurados e assistentes, o tribunal se encerra nesta quarta-feira (20) com um veredito e uma entrevista coletiva. O formato foi inspirado no Tribunal Russel, que, nos anos 1960, julgou crimes dos EUA na Guerra do Vietnã. O júri é formado por sete personalidades vindas do México, da França, da Itália, da Espanha, da Costa Rica e dos EUA.
No primeiro dia, foram ouvidas as testemunhas, apresentadas as provas e realizadas as falas da acusação e da defesa, em condução do jurista Juarez Tavares como presidente da corte simbólica. Em mais de um momento, as pessoas que compareceram ao julgamento se manifestaram com gritos de #ForaTemer, além de vaiar a advogada Janaína Paschoal, uma das autoras do pedido de impeachment, e o relator do processo no Senado, Antonio Anastasia (PSDB-MG).
Falando pela acusação, o professor Geraldo Prado ressaltou que o tribunal não estava julgando no lugar do Senado se houve crime de responsabilidade de Dilma. “Mas [o tribunal] está julgando o Senado”, afirmou. “E está julgando as elites deste país. O que os jurados sabem de questões orçamentárias? Mas sabem muito de manipulação de legalidade. Entendem de uso de estruturas políticas para derrubar governos legitimamente eleitos.”
A intervenção da defesa foi realizada pela professora Margarida Lacombe, que apontou o atual processo histórico como um teste para a Constituição brasileira de 1988. Ela fez uma comparação com o modelo de impeachment dos EUA, que inspira o adotado no Brasil, que prevê ser um processo jurídico-político. “É um juízo político feito por parlamentares, mas que pressupõe um julgamento jurídico”, esclareceu. “O julgamento político não se dá afastado de um jultamento jurídico.”
A professora citou o jurista argentino Aníbal Pérez-Liñán, que identificou nos recentes golpes na América Latina o uso de instrumentos legalmente previstos para retirar ou forçar a saída de governantes —como é o caso de Dilma. E mostrou preocupação com a flexibilidade no uso do instituto do impeachment no país.
“Está-se constituindo uma doutrina do impeachment inteiramente permissível, com o agravante que o Supremo Tribunal Federal tem entendido que ele não deve se pronunciar sobre o processo, ele se limita apenas a garantir o devido processo legal”, concluiu.
Os depoimentos das testemunhas apontaram para as características misógenas, elitistas e midiáticas do processo parlamentar do impeachment, que tem sido conduzido à margem dos preceitos constitucionais e legais brasileiros.
Golpe misógeno
Uma das intervenções mais contundentes foi realizada pela filósofa Márcia Tiburi, que enumerou as diversas razões que caracterizam esse golpe como um produto da mentalidade machista brasileira.
Na avaliação da filósofa, um dos erros que Dilma cometeu foi se autodenominar presidenta. “E insistiu que as pessoas a chamassem de presidenta. Vi muitas vezes as pessoas reclamarem de ela quase ter colocado um presidentA, com “a” maiúsculo”, afirmou Márcia Tiburi. “Vai contra o jogo de linguagem machista. E Dilma rompeu com toda essa liguagem machista e provocou a ira de muita gente”, completou.
De acordo com Tiburi, é preciso tomar cuidado com o discurso de ódio que está se disseminando no país, um “ódio contra o PT, os que defendem direitos humanos, os negros, os quilombolas”. E, por outro lado, identificar que a resistência ao golpe tem a marca das mulheres.
“A luta é feminina”, disse a filósofa. “Não precisa ser bela, recatada e do lar. A luta contra o golpe é também a luta contra a misoginia. E é de todos aqueles que querem construir um novo país.”
O golpe parlamentar é resultado também de uma visão de mundo neoliberal. A avaliação foi feita por Magda Biavaschi, desembargadora aposentada do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4). Ela fez um apanhado dos argumentos contidos no relatório do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), para concluir que ele se pauta exclusivamente por uma única maneira de se conceber as políticas econômicas, a de que só é permitido o Estado mínimo. Por isso, uma das razões para o impeachment refere-se a créditos para pagamentos de benefícios sociais.
Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ), analisou o argumento da violação da meta fiscal pelos créditos suplementares e a possibilidade de constituirem-se em operação de crédito os atrasos ao Banco do Brasil de repasses para o Plano Safra. Ele frisou que tais entendimentos surgem somente com o processo contra Dilma.
“Nunca antes se confundiu inadimplemento de obrigações legais com operações de crédito. Em nenhum manual de direito financeiro encontra-se isso”, afirmou.
Lodi lembrou que o Ministério Público Federal no Distrito Federal arquivou procedimentos por chegar à mesma conclusão: as pedaladas fiscais não são crime. Além disso, os créditos suplementares abertos pela presidenta Dilma foram aprovados pelo Congresso Nacional. “O que me parece absolutamente surreal é que esse mesmo Congresso considere a abertura de crédito suplementar crime de responsabilidade”, concluiu.
Para o professor de direito Luiz Moreira, o que se revela por trás do golpe é uma disputa de narrativas, uma tentativa de “revestir de legalidade um processo que desrespeita a Constituição”. E esse processo passa pelo uso da imprensa como porta-voz de visões distorcidas do direito, da economia, da sociedade e da democracia.
Por essa razão, conforme pontuou o professor José Carlos Moreira da Silva Filho, “a qualidade e a intensidade da nossa resistência é que vai determinar os rumos desse golpe contra o país”.
Na abertura dos trabalhos, Roberto Amaral, da Frente Brasil Popular, pontuou que o que está em jogo é o desenvolvimento do país. “A nossa independência, o futuro das crianças, dos pobres, dos índios e quilombolas”, afirmou. “O Senado não vai apenas decidir, e isso é muito, se a Constituição é válida. Mas ele vai decidir se o passado vai voltar. E não é no Senado que a questão será resolvida. Vai ser resolvida nos milhares de teatros que enchermos, nas ruas.
Conheça abaixo a composição do Tribunal Internacional pela Democracia no Brasil:
Testemunhas da acusação
1) Ricardo Lodi Ribeiro
2) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho
3) Tânia Oliveira
4) Marcia Tiburi
Testemunhas da defesa
1) João Ricardo Dornelles
2) Magda Biavaschi
3) José Carlos Moreira da Silva Filho
4) Luiz Moreira
Corpo de jurados
1) Almudema Barnabeu (ESTADOS UNIDOS)
Advogada internacional, escritora e diretora do Programa de Justiça de Transição do Centro de Justiça e Responsabilidade (CJA). Vencedor do Prêmio Letelier-Moffitt de Direitos Humanos de 2015).
2) Azadeh N. Shahshahani (ESTADOS UNIDOS/IRAQUE)
Proeminente advogada de direitos humanos dos Estados Unidos, especializada na defesa de direitos humanos de imigrantes muçulmanos, do Oriente Médio e em comunidades do Sul da Ásia. Autora de diversos livro de impacto internacional.
3) Bispo Raul Veras – (MÉXICO)
Frei dominicano e bispo mexicano, desde 2000 está à frente da diocese de Saltillo, México. Em 2012 Candidato ao Prêmio Nobel da Paz pelo seu trabalho a favor dos direitos humanos no México.
4) Giovanni Tognoni (ITÁLIA)
Membro do Tribunale permanente dei Popoli (TPP) inspirado pelo Tribunal Russell, composto por juristas, escritores e outros intelectuais e que se expressa sobre questões de violação dos direitos humanos e os direitos dos povos de todo o planeta. Foi criado pela Fundação Internacional Lelio Basso pelos Direitos e pela Libertação dos Povos (FILB), fundada em 1976, e na sequência da Declaração Universal dos Direitos dos Povos (também conhecido como a Carta de Argel).
5) Jaime Cárdenas Gracia (MÉXICO)
Advogado, político e acadêmico mexicano, ex deputado federal pelo Partido Trabalhista , doutor em Direito pela Universidade Nacional Autônoma do México,e da Universidade Complutense de Madrid. Professor convidado em varias universidades (Visiting Fellow na Universidade de Yale e Pesquisador Visitante na Universidade de Georgetown. Recebeu vários prêmios e reconhecimentos e foi convidado como um perito na instalação da Assembleia Constituinte na Bolívia em 2006.
6) Laurence Cohen (FRANÇA)
Senadora francesa, membro do Partido Comunista Francês, trabalha temas ligados ao feminismo e aos direitos das mulheres.
7) Maria José Farinas Dulce (ESPANHA)
Professora catedrática em filosofia do direito na Universidade Carlos III em Madrid, especialista em temas de globalização econômica e direitos humanos, autora de diversos livros e uma das grandes especialistas em sociologia jurídica ibero-americana.
8) Walter Antillón Montealegre (COSTA RICA)
Jurista e académico costarricense, Co-fundador da Escola de Ciência Política da Universidade da Costa Rica, onde ele trabalhou como professor de direito e ciência política e que detém benemeritazgo.1 foi eleito candidato à vice-presidência pelo partido Frente Ampla nas eleições de 2014.
9) Carlos Augusto Galvez Argote (COLOMBIA)
Ex Magistrado de la Sala de Casación Penal de la Corte Suprema de Justicia; actualmente, Profesor de la Universidad del Rosario. Autor de diversos artículos en el ámbito del Derecho penal.
10) Alberto Filippi (ARGENTINA)
Professor aposentado da Università di Camerino (Itália) e professor na Escuela de Serviço Judicial na Argentina. Doutor em Filosofia na Universidade de Roma “La Sapienza”. Doutor Honoris Causa em Ciência Política pela Universidad Ricardo Palma, em Lima (Peru).
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Fonte: PT