por: Maria Cristina Fernandes
Difícil falar mal de uma instituição que tem como principal inimigo público o presidente afastado da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), mas o Ministério Público parece inebriado com a fama e o poder adquiridos em Curitiba.
Os sinais foram captados por Daniela Lima, da ‘Folha de S.Paulo’, ao revelar que o MP achou por bem abocanhar uma fatia de até 20% dos acordos de leniência celebrados pela força-tarefa. Em resposta, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que calculou uma arrecadação de R$ 300 milhões a partir dos atuais acordos de colaboração e leniência, disse que os “órgãos de persecução se beneficiariam muito do aporte de recursos para a aquisição de equipamentos e softwares sofisticados, essenciais em investigações modernas e eficientes”.
Lima, um dos mais frequentes porta-vozes da força-tarefa, já havia sido informado de que o ministro Teori Zavascki impedira a Procuradoria-Geral da República de replicar cláusula semelhante. A despeito da decisão do ministro do Supremo, os procuradores de Curitiba se veem protegidos pela lei da lavagem de dinheiro e pelo Código Penal que preveem a restituição do butim recuperado à União.
A mesma Constituição que definiu os poderes da República e abrilhantou o Ministério Público preservou o Legislativo como a instância deliberativa do Orçamento da União. É no exercício deste poder que o Congresso, em resposta a uma iniciativa do Executivo, está para chancelar um aumento salarial que premia a casta do funcionalismo, encabeçada pelo Judiciário, num país afundado em desemprego recorde.
Como agem com o termômetro das ruas e nenhuma delas se encheu em protesto contra este reajuste, os procuradores devem ter concluído que os brasileiros concordam em premiá-los pelos bons serviços prestados. Como não se ouviram panelas contra essa apropriação dos recursos devidos à União, é possível que a autonomia da força-tarefa seja vista como o preço a pagar para que o Brasil se livre da chaga da corrupção.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, José Robalinho Cavalcanti, reconhece a não previsão legal da cláusula adotada em Curitiba, diz ser bem-vinda a aprovação de uma lei que regulamente o repasse, comum em outras instituições, como Ibama ou Detran, mas, em cumprimento de seu dever, sai em defesa dos colegas. A decisão, argumenta, foi homologada pelo juiz Sergio Moro, um dos primeiros, no país, a autorizar que carros apreendidos em operações de combate à lavagem de dinheiro fossem vendidos antes de virarem sucata. O procedimento, depois autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça, permitiu que uma parte dos recursos, depositados em contas, fossem destinados à infraestrutura das operações.
Em artigo publicado no ano passado, Wanderley Guilherme dos Santos lembrou que quando as instituições falham, é o caráter que prevalece. Ex-colaborador de governos petistas, na secretaria de Comunicação Social e no BNDES, o pesquisador da Fundação Casa Rui Barbosa, Fábio Kerche se vale da inspiração do cientista político carioca para resgatar a singularidade de um ministério público brasileiro cuja autonomia moldou o caráter de procuradores que hoje só respondem a ruas e panelas.
Autor de “Virtudes e limites: atribuições e autonomia do Ministério Público” (Edusp, 2009), Kerche custou a encontrar em outro lugar uma instituição tão poderosa. Ainda que integre a estrutura do Judiciário, o ministério público na Alemanha, na Espanha e na Holanda tem seu orçamento subordinado ao Ministério da Justiça. Não por acaso, os modelos mais próximos estão nas pátrias inspiradoras da Lava-jato. Na Itália a carreira se confunde com a de juiz, e nos distritos americanos os procuradores são escolhidos diretamente pelo voto, o que leva a uma inflação de ações judiciais em anos eleitorais e a carreiras políticas, como a de Bill Clinton.
Kerche questiona a vigilância exercida pelo Conselho Nacional do Ministério Público, formado majoritariamente por integrantes da carreira, e o modelo de escolha do procurador-geral da República. A Constituição prevê a escolha pelo presidente da República, mandato de dois anos e recondução ilimitada. O último a exercer mais de dois mandatos sem nominação a partir de lista tríplice foi Geraldo Brindeiro, no governo Fernando Henrique Cardoso.
A previsão constitucional, diz Kerche, tanto permite que o procurador aja de olho em seu principal eleitor (o presidente), quanto no seu eleitorado (os pares que elegem a lista tríplice). Advoga que o modelo da lista tenha algum filtro de participação popular para evitar que as promessas corporativas se sobreponham às do interesse público.
O precedente aberto pelo bônus reivindicado pela força-tarefa de Curitiba, exacerba um modelo em que a legitimidade ao Ministério Público se dá em detrimento dos poderes eleitos. Todos os poderes enfrentam restrições orçamentárias, mas aquelas impostas ao Legislativo e ao Executivo limitam o alcance de políticas públicas sem as quais seus representantes não conseguem renovar seus mandatos. O procurador apoia-se na Constituição para determinar, sob aplausos, que um município aumente seus leitos de hospital, enquanto o prefeito é obrigado a cumprir a decisão judicial a despeito de restrições orçamentária para cumprir a decisão judiciais. A definição de prioridades pelo ministério público judicializa a essência da política.
É possível reconhecer a discricionaridade do MP frente a poderes eleitos atados por uma crise fiscal — e moral — sem concordar com retrocessos no combate à corrupção. Em discurso no início da semana, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot comparou os “grilhões do patrimonialismo” àqueles que há 130 anos foram rompidos nas senzalas. Citou Isaac Newton, que viu mais longe porque subiu nos ombros de gigantes. Kerche lhe contrapõe um contemporâneo de Newton, do outro lado do canal da Mancha. É de Charles-Louis de Secondat, que passaria à história como o barão de Montesquieu, o lembrete de que até a virtude precisa de limites.