por: Tarso Genro

TarsoPesquisa apresentada pelo professor Luciano Da Ros (Ufrgs), noticiada por este jornal no dia 13 de janeiro, ofereceu dados relevantes para uma reflexão sobre os órgãos de controle e sobre o funcionamento do Sistema de Justiça do País. Tanto no que refere à questão da crise da representação, como no que se refere à “midiatização” da Justiça Penal, questões que não são exclusivamente nacionais. A pesquisa versou, exclusivamente, sobre os prefeitos, mas é uma boa amostragem dos problemas enfrentados pelos gestores políticos e técnicos, de todos os Poderes e entes da União.

Entre 1988 e 2012, 1.459 denúncias – aqui no nosso Estado – resultaram em 340 condenações. Na Bahia, 568 denúncias resultaram em 142 condenações, mas somente 14 delas ocorreram até 2004. É óbvio que os prefeitos gaúchos não são mais corruptos que os baianos e que o reinado de governos oligárquicos – até recentemente naquele estado – bloquearam a efetividade dos órgãos de controle e inibiram o funcionamento da Justiça. Tracemos uma hipótese: se estas 1.459 denúncias, aqui no RS, tivessem uma repercussão midiática tão forte, sobre os prefeitos, como a Operação “Lava Jato” exerce sobre políticos de âmbito nacional, qual seria a consequência? Ora, os prefeitos absolvidos teriam sido penalizados com uma condenação pública generalizada, que não só suplantaria os efeitos das condenações pela Justiça, mas formaria um conceito sobre eles, na sociedade, que lhes colocaria sobre os ombros uma carga moral que eles carregariam, injustamente, por toda a vida.

É sabido, hoje, que a “midiatização da Justiça Penal, no País, já é uma normalidade perversa. Ela pode comprometer tanto a legitimidade das informações dos órgãos de controle, que levantam irregularidades que se tornam notícias “criminis”, para a ação do Ministério Público, como comprometer o reconhecimento ético-político dos órgãos jurisdicionais, quando estes não seguem a “orientação” das sentenças privadas, proferidas “in limine” pela grande mídia. Um exemplo dos efeitos negativos desta “midiatização” é o vazamento seletivo e interessado de informações sobre investigações policiais ou do Ministério Público. Ele pode ter dois efeitos: ou criar um convencimento na sociedade, da culpa ou dolo dos investigados – promovendo uma condenação antecipada – ou pode permitir a anulação de sentenças materialmente justas, em instâncias superiores, porque o vazamento vulnerou as formalidades do direito à ampla defesa.

Estes dados, diretos e irrefutáveis, provam que a espetacularização das investigações e a “midiatização” da Justiça Penal só serve para prestigiar ou desprestigiar pessoas envolvidas nas lutas políticas, segundo os interesses de momento das grandes empresas de comunicação. A espetacularização “midiática” não ajuda em nada a realização da Justiça. É totalmente diferente a cobertura de fatos e a informação objetiva sobre eles, quando se referem à honra e à dignidade das pessoas, da antecipação de condenações pela espetacularização. Esta envolve, em abstrato, a comunidade política como um todo e protege os delinquentes, que se favorecem com esta generalização. A informação objetiva ajuda a compor a legitimação das decisões judiciais.

A “Operação Mãos Limpas”, processos judiciais-midiáticos que desmontaram esquemas de corrupção na Itália, deflagrados em 1992 pelo procurador Antonio Di Pietro, foi importante para avançar na luta pela moralização do setor público e do setor privado naquele país. Não reduziu, porém, significativamente a corrupção sistêmica – o resultado na política foram os corruptos governos Berlusconi – e os seus méritos estão assentados, menos no trabalho também meritório feito por Di Pietro com apoio da mídia, e mais no pioneirismo, discreto e eficiente dos juízes Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, no seu combate contra a máfia, iniciado já na década de 80. Cumpre salientar, ainda, que esta “Operação Mãos Limpas”, diferentemente do que ocorre no Brasil, não estava contaminada por disputas políticas entre oposição e governo, mas buscava esclarecer delitos e cumplicidades de todos, sem exceção, que estiveram no governo da Itália com ajuda ou sustentação mafiosa.

Mesmo aqui no Rio Grande do Sul, porém, já existem reflexos – ainda bem que secundários – do protagonismo midiático de membros do Sistema de Justiça, neste contexto de espetacularização. Se ele for radicalizado – falo isso sobre o País – pode transformar os órgãos de Justiça e de Controle em servos da disputa política. A busca de protagonismos junto à mídia, porém, é menos uma deformidade profissional específica e mais uma decorrência da “sociedade-espetáculo” que vivemos. Esta decorrência é, às vezes, impulsionada por falta de preparo de determinados agentes públicos, mas principalmente por disputas internas que existem nas corporações, em busca de um brilho público fácil. Brilho, porém, muito mais no sentido de Di Pietro do que na tradição de Borsellino e Falcone.

A transformação do Sistema de Justiça em lastro de espetáculos reforça o preconceito fascista de que o espaço da política e da gestão são lugares exclusivos de aventureirismo e proveito pessoal. É um método que não separa o que é erro, culpa, dolo, do que é gestão política de um Estado, cercado por brutais limites financeiros e enormes necessidades públicas, sob assédio de um processo de judicialização da política, que pode transformar o Sistema de Justiça numa tutela que não ousa dizer seu nome. Um exemplo hipotético: qualquer gestor do Poder Executivo estadual, hoje, no Brasil, pode estar sujeito a ser réu de uma ação civil pública por usar os depósitos judiciais para completar os 12% destinados à Saúde, bem como ser réu de uma outra ação civil pública por não ter alcançado os ditos 12%, portanto por não ter ousado usar os depósitos com esta destinação.

A solução de impasses como estes só pode ser produzida por um amplo debate público que envolva, sem preconceitos, todos os que defendem que a democracia não funciona sem política digna deste nome e sem um Sistema de Justiça que corresponda, plenamente, ao Estado de Direito que dignificou as suas funções.

O Rio Grande do Sul, pela qualidade dos seus juízes e do seu Ministério Público, pode ser um palco privilegiado deste debate.

Fonte: artigo Notícia da edição impressa de 15/01/2016 do Jornal do Comércio – RS