por: Manuel Domingos Neto
Cientista político e pesquisador do Observatório das Nacionalidades
Das numerosas imagens difundidas desde 13 de novembro, a que mais me impregnou foi a da multidão saindo do campo de futebol francês cantando “avante, filhos da pátria, chegou o dia da glória… às armas cidadãos… que o sangue impuro adube nossa terra”.
A Marselhesa foi composta por um oficial, em 1792, para animar os defensores da Revolução ameaçada pela nobreza, que contava com o apoio de austríacos e prussianos. Seu título original era “Canto de Guerra do Exército do Reno”.
Reza a lenda que os marselheses cantaram o hino enquanto marchavam inebriados até Paris, dispostos a matar e morrer. Nada a ver com a cara aparvalhada dos que saíam do campo de futebol, ansiosos em voltar para casa.
Por seu conteúdo revolucionário, o canto guerreiro foi proibido por Napoleão, mas tornar-se-ia hino nacional francês em 1879, quando o Estado francês sonhava em adubar o solo com o impuro sangue germânico.
Não faltou oportunidade à França para chamar à luta os filhos da pátria. Disputando espaços em todos os continentes com outras potências imperialistas, o país esteve sempre em guerra nos últimos séculos. Como é sabido, nenhum Estado mantém domínio sobre sociedades sem derramar sangue.
Que o digam os haitianos, senegaleses, egípcios, tunisianos, argelinos, vietnamitas… Apenas na África, as possessões francesas chegaram a mais vinte. Na Ásia, o imperialismo francês inventou uma “Indochina” e de lá voltaram vergastados e humilhados. O caso ficou nas mãos dos estadunidenses, que depois de matar muita gente também voltaram cabisbaixos para casa.
Contabilizando direito, é fácil concluir que milhões de portadores de sangue impuro adubaram o solo francês desde Napoleão. Nas lutas no continente europeu, nem se fale. Hoje, especialistas discutem as razões pelas quais a França insiste em manter sua agressividade enquanto a Alemanha logra um crescimento econômico superior sem ostentar igual disposição guerreira. Por que Sarkozy e Hollande adotaram o neoconservadorismo norte-americano exatamente quando este passou a ser relativizado por Obama?
A França, como qualquer potência imperialista, não pode viver sem guerrear. Trata-se do terceiro maior fabricante de armamento do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e a China. Sem derramamento de sangue, a economia francesa estaria em sérios apuros. Teria na verdade que se reinventar, posto que o avanço tecnológico de sua indústria esteve vinculado aos investimentos na pesquisa de interesse militar. Já a Alemanha, em decorrência da derrota de 1945, não ostenta a mesma vinculação.
Os franceses parecem incomodados com a condição de mercadores de armas. A capa do “Charlie Hebdo” de quarta-feira, dia 18, mentia: “Eles têm as armas, nós, o champanhe”. A França tem as armas e as vende, inclusive aos de sangue impuro, muitos deles bebedores de champanhe.
O Estado francês, nas negociações do Tratado de Versalhes, em 1918, acostumou-se a cobrar caro a deposição de governantes estrangeiros. As sociedades “salvas de déspotas” com armas francesas são posteriormente obrigadas a encomendar à Paris a reconstrução de suas infraestruturas arrasadas, abrir seus mercados e ceder direitos de exploração de suas riquezas naturais.
A declaração do “socialista” François Hollande após os atentados do dia 13 foi patética: “A França está em guerra”. Quem não sabia disso? Os canhões franceses funcionaram sistematicamente nos últimos anos, secundando as armas norte-americanas.
Na verdade, o presidente francês, batendo recordes de impopularidade, vê nos atentados sua derradeira chance de soerguimento, faltando apenas um ano e meio para a conclusão de seu mandato. Hollande quer os poderes excepcionais conferidos pela situação de emergência; quer ser o braço vingador de uma sociedade acuada. Sua proposta de expulsar ativistas com dupla nacionalidade é uma retroação de décadas em matéria de direitos humanos. Tenta roubar bandeiras de Marine Le Pen, que surfa na onda xenofóbica.
Outro ponto em discussão é o da possível falha da inteligência francesa ao não abortar os atentados. Na guerra assimétrica, os líderes religiosos incentivam iniciativas solitárias ou articuladas por pequenos grupos em todos os países ocidentais com histórico de agressão ao mundo islâmico. O governo francês estava, portanto, bem informado de que, ao adubar o solo pátrio jogando bombas sobre mulçumanos, exporia a sociedade francesa a esse tipo de ataque.