por: Sérgio Sérvulo
A Constituição da República, em seu art. 2°, proclama que são “poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Na prática, porém, o judiciário parece mais independente. O Legislativo, é verdade, faz a lei. Mas o judiciário, além de julgar atos do legislativo, é quem aplica a lei, segundo seu critério. Há de ser, portanto, criterioso, a fim de que não se consagre, na República, o desequilíbrio entre os poderes. E o critério reside na obediência à lei feita pelo Legislativo, segundo os princípios da interpretação jurídica.
Costuma-se chamar de ditadura ao regime em que o poder executivo coloca-se acima dos outros poderes, usurpando sua competência.
Na história brasileira há alguns exemplos marcantes de desrespeito ao judiciário, por parte do executivo. Os mais lembrados são a) a petulância de Floriano Peixoto, ao assumir ilegalmente a presidência da República, e prender seus detratores; a ele Rui Barbosa se opôs, sem êxito, perante o próprio Supremo Tribunal Federal, que se curvou ao arbítrio; e b) a reiteração, por parte de Getúlio Vargas, de norma declarada inconstitucional pela Suprema Corte.
Durante a ditadura de 1964, o poder executivo prendeu e cassou parlamentares, e, por mais de uma vez fechou “manu militari” as portas do Congresso. Mesmo assim, quando, por um arroubo de legalidade, solicitou licença, ao legislativo, para processar um deputado, teve negada essa licença, com fundamento na imunidade parlamentar. Esta é prerrogativa que, nos momentos de turbulência política, protege o parlamentar contra incursões dos outros poderes. A imunidade não é meio de defesa, conjuntural, do parlamentar culpado: é a proclamação de que, competente para ajuizar de sua conduta, nessas circunstâncias, é o próprio Parlamento. A não ser assim, este se despe, perante os demais poderes, de suas prerrogativas republicanas.
Chamo a atenção do leitor para um editorial publicado pelo jornal “O Estado de São Paulo”, no último dia 20 (20.11.2015), denominado “Uma nova arquitetura jurídica”. Ele se abre com uma referência ao ministro Teori Zavascki, segundo o qual “o sistema jurídico brasileiro está caminhando, a passos largos, para o ‘common law’.”
O “common law”, explico para os menos afeitos à terminologia jurídica, é o sistema, vigente nos países anglo-saxãos, em que a base da jurisdição não é a lei, mas a jurisprudência. Nos países que adotam aquele sistema, na aplicação do Direito não prevalece a lei, tal como acontece nos países de tradição romana, mas o entendimento dos tribunais.
O que vem acontecendo no Brasil é que o poder judiciário – a princípio pelo Supremo Tribunal Federal, e agora em todas as suas instâncias – se entende livre para decidir como entender melhor, e não segundo a lei.
Veja-se, por exemplo, o que acaba de acontecer com as escolas ocupadas por estudantes. Pessoalmente, entendo justa essa ocupação; entendo que o Direito positivo deveria prever essa hipótese e oferecer proteção aos usuários das escolas, em tais casos; e entendo que, um dia, o fará. Todavia, ainda não o faz: perante a lei, a ocupação caracteriza esbulho possessório, e o governo tem direito à reintegração. Compare-se essa decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo com as proferidas em caso de ocupação de terrenos nas periferias das grandes cidades; os ocupantes são amparados pelo direito à moradia, mas os juízes decretam: pau em cima deles.
Voltemos ao fio da meada. O que eu quero dizer é que, a começar da Constituição de 1988, que lhe deu competência para julgar a lei em tese, o Supremo Tribunal Federal viu-se estimulado a ampliar desmesuradamente sua competência. Isso começou com a súmula vinculante – contra a qual me opus quando era chefe de gabinete do Ministério da Justiça – e prosseguiu com aberrações semelhantes, tais como a repercussão geral. A partir daí o judiciário, a começar do Supremo, sepultou a segurança jurídica, e garantias tais como a presunção de inocência, o devido processo legal, o princípio do juiz natural e a independência dos poderes.
Todas os ditadores se parecem num ponto: eles se dizem defensores da moral, tal como acontecia com Hitler, e contrários à corrupção. Lembremo-nos de Pontes de Miranda: são os invisíveis fios do Direito que sustentam as civilizações. Não se combate a corrupção destruindo o Direito.
Em escritos técnicos, tenho denunciado essas graves agressões à Constituição e à democracia. Em países do “common law”, os poderes políticos e a cidadania contam com mecanismos – que aqui não temos – necessários à sua proteção.
Estamos vivendo, portanto, um caso singular: superamos a ditadura militar, mas pusemos, no lugar dela, a ditadura do judiciário.