por: José Pascoal Vaz
Discuto aqui a possibilidade de desfazermos a massa de manobra que está nos conduzindo a uma crise econômica real.
A ideia de “crise” ganhou força a partir do 2º. turno das eleições, cujo resultado apertado levou a oposição a exagerar o tamanho do desajuste econômico. O maldito “petrolão”, por sua vez, fez-se em caldeirão que se mostrou perfeito para absorver, não só os corruptos,que merecem arder no inferno, mas todo e qualquer defeito, mesmo que levianamente aventado e/ou exacerbado: incompetência, descontrole, desarticulação política, falta de comando etc.Apaga-se propositalmente da memória da sociedade brasileira o imenso avanço social produzido nos governos do PT. Repete-se a todo instante que o país teria chegado quebrado ao final de 2014.E, assim, construiu-se enorme crise de confiança, que apavora capital e trabalho, petrificando investimentos e consumo.
Mas, quebrado como? Vejamos. Por um lado, o país possui R$ 1,5 trilhão de reservas internacionais(24% PIB) e dívida ativa recuperável de R$ 300 bilhões (23% da dívida ativa total). Soma: R$ 1,8 tri (29% PIB). Por outro lado, a necessidade a cobrir orçada para 2016 é de R$ 30,5 bi referente ao déficit primário e R$ 34,4 para fazer superávit de 0,7% PIB, somando R$ 64,9 bi. Ou seja, grosso modo, os R$ 1,8 tri cobrem 27 anos de nossas necessidades. O absurdo da pressa em fazer o ajuste fica claro quando se vê que, utilizando somente 10% dos recursos, teríamos 2,8 anos para redefinir politicamente as prioridades de despesas e as fontes das receitas, de modo a não sacrificar a população, especialmente os mais pobres. Por mais subavaliados que estejam os R$ 64,9 bi, parece evidente não ser necessário reagir como se estivéssemos com a corda no pescoço, como está sendo feito.
Outras fontes de recursos ressurgiriam. Uma, do fato de que, o acordar do pesadelo pessimista para a realidade de que o país não está quebrado, traria a confiança de volta aos investidores/empresários e aos trabalhadores/consumidores, fechando um novo círculo virtuoso, recuperando a perda de receita fiscal de mais de R$ 100 bi este ano, bem como a sinergia para reanimar a produtividade sistêmica. Outra fonte, na redução de uns R$ 200 bi da indecente montanha de juros da dívida pública(R$ 500 bi este ano, ou 8% PIB), que lambuza a avidez do sistema financeiro. Redução exequível dado que nossa inflação não é de demanda e depende muito de preços públicos, a maioria já ajustados; além de exequível, recomendável, porquê aliviaria muito os custos financeiros das empresas e dos consumidores. E temos ainda R$ 300 bi no exterior, repatriáveis a prazo médio, que podem gerar outros R$ 100 bi para a receita federal, referentes a IR e multa; os outros R$ 200 bi provavelmente reforçariam a taxa de poupança privada em significativos 3% PIB.
Como podia estar quebrado um país com dívida líquida (em % PIB) de apenas 34%, enquanto a dos EUA estava em 80%, a do Japão em 127%, a média da Zona do Euro em 70%(entre estas, a menor, a da Alemanha, com 50%)? Quebrado, ainda mais com reservas internacionais de 24% PIB?
Como podia estar quebrado um país com apenas 4,8% de desemprego, de uma PEA de 100 milhões de trabalhadores e população de 202 milhões, com persistente aumento da renda pessoal, formando boa demanda de consumo?
Como podia estar quebrado um país com instituições democráticas sólidas a ponto de se manter na cadeia,há meses, dezenas de pessoas, entre políticos de realce e executivos importantes de empresas entre as maiores do país, bem como de se investigar judicialmente o presidente da Câmara dos Deputados e colocar em cheque o presidente do Senado, fatos inimagináveis há poucos anos atrás?
Fala-se no desajuste como se os déficits fiscais dos governos do PT tivessem sido produzidos por despesas irresponsáveis, quando na verdade foram gastos no resgate de parte da secular e brutal dívida social, gastos que formaram um colchão social sobre o qual se pode finalmente construir uma sociedade não só mais justa, mas pronta para o aumento de sua produtividade sistêmica.Mesmo o descalabro dos gastos com juros se deve a um sistema financeiro poderoso e que joga pesado, como se viu no fracasso da tentativa de Mantega e Dilma de derrubar a taxa de juros em 2012. Coloca-se maldosamenteno mesmo saco toda uma equipe entusiasta por justiça social, junto a bandidos covardes, corruptos e corruptores.
Ajustes sempre são necessários, mormente quando se produz a quebra da espinha dorsal da desigualdade, como o PT fez. Um deles, para ajustar a transferência de renda dos mais ricos para os mais pobres, afetando a poupança que o processo transforma em consumo. Mas tal ajuste poderia e DEVERIA ser feito a médio e longo prazo COM CRESCIMENTO e não com RECESSÃO, pois esta torna impossível um ajuste decente, que preserve as conquistas sociais.Esta crise está sendo fabricada, levando a desconfiança ao futuro do Brasil que, num regime capitalista, empurra realmente para a recessão. Uma pena a ingenuidade de alguns, uma vergonha o oportunismo de outros.
Afirmações catastróficas, como a do Financial Times de que o Brasil estaria em “estado terminal”, e de brasileiros oportunistas ou ingênuos, está gerando um pavor de manada que conduz à recessão. O corte proposto em programas sociais é de constrangedora indiferença para com os mais pobres, pois são, além de tudo, absolutamente desnecessários.
Os desequilíbrios brasileiros são decorrentes da grande desigualdade social, cujo necessário combate implica em inevitável aumento da carga tributária e inversão em sua incidência, pois há décadas ela pesa muito mais sobre os pobres do que sobre os ricos.A solução justa passa pelo aumento de impostos diretos para as grandes rendas e os grandes patrimônios, e redução dos indiretos. Importante comparar a carga tributária brasileira com a de inúmeros países, a maioria com carga tributária maior do que a nossa. Sendo a carga tributária instrumento importante de combate à desigualdade (desde que progressiva, ao contrário da ainda muito regressiva que ainda temos no Brasil), a consideração desta faz com que a comparação nos mostre com carga tributária muito menor do que a da maioria dos países(*).
O argumento frequentemente utilizado de que o “governo cobra muito e não devolve nada” é falacioso. Primeiro, porquê a desigualdade gera grau de pobreza que inviabiliza a utilização, por falta de renda da maioria da população, dos serviços oferecidos pelo setor privado. Cabe ao Estado disponibilizá-los, como de fato faz com a educação, a habitação, a saúde (que é prestada pelo SUS a 2/3 da população, ou 135 milhões de pessoas) etc. É por esse motivo que, com a redemocratização, a carga tributária cresceu no Brasil, de 22% PIB ao final da ditadura para 35% PIB em 2014. Em segundo lugar, porquê, para ter efeito distributivo, a carga tributária não deve mesmo ser devolvida aos mais ricos, a menos, talvez, dos gastos que, por motivos que transcendem a escassez de recursos, devam ser considerados universais, como segurança e sistema judiciário.
Não se pode aceitar de modo algum que o ajuste se faça pelo corte de despesas sociais. Por exemplo, a proposta de reduzir os gastos com o Bolsa Família é de total insensibilidade, pois o programa vem demostrando grande melhora na saúde e no aprendizado de nossas crianças, bem como reforço na busca daigualdade de oportunidades, sem a qual o mercado aprofunda a exclusão social. É flagrante a inconsistência da proposta, quando se compara o gasto do Bolsa Família, 0,5% PIB para 54 milhões de pessoas, ou R$ 550,00/pessoa/ano, com o gasto de juros, 8% PIB para 65.000 pessoas (cf. Márcio Pochmann), ou R$ 7,4 milhões/pessoa/ano. Aqueles, gastando com o essencial; estes, com o supérfluo.
Outro exemplo, é a proposta inaceitável de mudar a forma legal de ajuste anual do salário mínimo-SM, não só pela redistribuição de renda que vem provocando, o que é essencial; mas, também pelos 75 anos de arrocho de seu poder aquisitivo real. De fato, chamando o poder aquisitivo do SM de 100 quando de sua criação, em 1940, ele caiu para 30 em 2000 e, mesmo depois do reajuste real de 98% nos últimos 14 anos, ainda está em 59 (perda real de 41% em 75 anos). Ao mesmo tempo, o PIB per capita foi multiplicado por 5,5, de 100 em 1940 para 550 hoje, mostrando a enormidade da injustiça que se fez com os trabalhadores. Aliás, segundo o Dieese, o valor do SM em agosto/15, necessário para cumprir o artigo 7º.-IV da Constituição de 1988, deveria ser de R$ 3.258,16, ou 4,1 vezes os R$ 788,00 oficiais. Com as regras legais atuais de reajuste (inflação do ano anterior e aumento real conforme a variação do PIB de dois anos antes) e considerando aumento do PIB de 3% ao ano em média, levaríamos 48 anos para atender ao preceito constitucional. Ou seja, somente em 2063. Teriam sido então 123 anos de descumprimento da Constituição, um descalabro moral, sob o qual se compromete qualquer ideia de projeto civilizatório.
A proposta é que se recupere a serenidade, o bom senso e a ideia de justiça social e se passe do tresloucado ajuste a curto prazo, e portanto recessivo (que acaba por impedi-lo), e se planeje um ajuste de médio e longo prazo, consubstanciado no acoplamento do perfil de produção ao perfil das necessidades da população. Este acoplamento de perfis é a única forma de se conseguir um ajuste permanente, de alta produtividade e sustentabilidade e, acima de tudo, de justiça social.
Nota: na data em que escrevo este artigo, 28/09/2015, está sendo colocado à discussão pública, pela Fundação Perseu Abramo, o documento “Por um Brasil justo e democrático”, desenvolvido por uma centena de pessoas. Segundo seus autores, a idéia é construir um documento que receba democraticamente contribuições de todos os segmentos da sociedade, independentemente de qualquer origem. Foi deste documento que retirei os dados sobre dívida pública e ganhos reais do SM entre 2002 e 2014.
(*) A desigualdade jamais pode ser desconsiderada nas comparações internacionais. Pretendo buscar estudos comparativos de carga tributária que mostrem a influência da desigualdade. Como ilustração, informo que o PNUD-Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento mostra que, ao considerar a desigualdade de renda, o IDH brasileiro cai do 85º. lugar no ranking mundial para o 97º., dado que a perda de 27% no seu valor é muito maior do que a da média dos demais países.
José Pascoal Vaz é economista, Dr. em História Econômica-USP e professor na Unisantos-Universidade Católica de Santos