Luiz Alberto Gomez de Souza
Voltando da passeata da tarde do dia 20 de agosto de 2015 no Rio de Janeiro, da Candelária à Cinelândia deixo sair, no calor da emoção, as primeiras impressões. Pela manhã, um grupo menor de uma esquerda radical tinha centrado suas demandas na crítica à política econômica, até certa parte pertinente, ainda que, isolada, fica desenfocada nas urgências da conjuntura imediata. À tarde, o tom era mais diversificado e plural. Tratava-se de uma manifestação muito maior, convocada pela CUT, MST, UNE, movimentos sociais e partidos como o PT (ou parte dele) e o PC do B. A nota principal era uma denúncia do golpismo. Um adesivo que ajudei a distribuir indicava claramente os eixos centrais: “Não ao golpe. Mais direitos. Mais democracia”.
Comparando com as marchas de domingo, o importante não será medir números de participantes, mas sentir o clima diverso e descobrir quais eram os que participavam em uma e outra manifestação. No domingo, havia basicamente uma população branca, classe média, com idades variando principalmente entre 35 e 55 anos. Onde a juventude? Não por acaso esta última se realizava em Copacabana ou em Boa Viagem. Quem procurava encontrar negros, nas fotos e vídeos pelo Brasil afora, descobria aqui e ali um gari, um pipoqueiro, um vendedor de refri. Numa grande foto da avenida Paulista, se podia vislumbrar com certo esforço, dois negros. Comecei, na Candelária, junto ao grupo da CUT e dos petroleiros. Ali, a grande maioria era de negros e mestiços, com forte presença de mulheres, trabalhadores, com muita juventude. A cara do povão das periferias, que se encontra apressado, à tarde, nos corredores da Central. A grande miscigenação de nosso povo. Ao lado, estudantes universitários. Os brancos profissionais que ali estávamos misturados, sentíamos a fantástica diversidade e a riqueza de nosso país mestiço. O último presidente da ditadura preferia o cheiro de seu cavalo ao da gente. Muitos como ele – e são tantos, numa elite atrasada e racista – se sentiriam mal no meio deste povão.
Havia um grande número de adesivos com a imagem da presidenta e também de Lula. Na área em que eu estava, descendo a Rio Branco, um dos lemas mais escandido era: “Como é que é, eu tenho fé, o Brasil é governado por mulher”. E de tempos em tempos um “Olé, olá, Dilma, Dilma!” Adesivos com fotos de Dilma e Lula.
Claro, havia protestos, basicamente contra Eduardo Cunha. Se no domingo fizeram um boneco com a figura de Lula vestido de presidiário, numa destas manifestações de quinta-feira, mesmo se com pouca originalidade, o boneco tinha o nariz adunco e os óculos caídos do presidente da Câmara. A manifestação coincidia, no mesmo dia, com o indiciamento, por parte do Procurador Geral, desse fatídico personagem. Mas também, não esqueçamos, vinham críticas impacientes à política econômica dos ajustes, ao lado de reivindicações, principalmente em educação, saúde e transportes que penalizam tantos dos que ali participavam.
Clima de muita alegria, entusiasmo, música contagiante ao final na Cinelândia. Tive a ocasião de postar fotos terríveis de marchadeiras de domingo, num extremo oposto de ódio e de intolerância. Uma senhora de cabelos brancos escondia-se atrás de um papelógrafo de ânsias assassinas: “Dilma, pena que não te enforcaram no Doi-Codi. Fora Dilma e PT”. Outra, sentada na calçada, dobrada pelo peso de sua raiva, tinha uma folha mal rabiscada: “Por quê não mataram todos em 1964”. Todos quem, caríssima madame? Talvez até seus familiares. Outro cartaz era uma estranha maneira de propor um voto qualificado, na diferença de uma patroa e sua empregada: ”País sem corrupção é país onde rico manda, pois quem é rico não precisa roubar”. Será mesmo, não terá bem aceso o apetite de querer sempre mais? E de onde terá vindo essa riqueza? As operações em marcha, que em boa hora desocultam patifarias, mostram as origens duvidosas de tanto emergente que chega, por meios escusos, aos condomínios “golden” da Barra. No passado falava-se do voto não qualificado da lavadeira.
Ouvi críticas na mídia de que não havia uma manifestação espontânea, como se uma sociedade civil organizada não fosse um fato altamente positivo. Posições meramente reativas, de raiva ou ódio, contra a corrupção ou pelo impeachment sem mais, podem juntar multidões inorgânicas, reunidas apenas por sentimentos primários ou irracionais. São o que um sociólogo chamou, faz muitos anos, “a multidão solitária”. Já um movimento positivo, pela democracia e pela legalidade, busca raízes em movimentos populares e grupos organizados.
É interessante constatar que, se em São Paulo a manifestação chegava à avenida Paulista, ela começava no largo da Batata, na zona oeste. No Rio, uma parte significativa vinha da Baixada e de municípios vizinhos. A mídia conservadora, com sua proverbial má vontade, implicou com o fato de muitos virem em grupos uniformizados, vestidos de vermelho e com chapéus com lemas de seus movimentos, organizações ou partidos de origem. Isso indicava uma organicidade de boa parte dos manifestantes. Também no domingo, as roupas tinham uma uniformidade, querendo aparentar, nas cores, um certo patriotismo, ainda que muitos ali, pelo contrário, não veriam problema em entregar o petróleo e nossas riquezas à cobiça do capital transnacional. Foi Collor quem pediu, antes de cair, enganando-se redondamente na ocasião, que saíssem todos de verde e amarelo. Seria lastimável que as cores nacionais ficassem aprisionadas pela direita. Esta se disfarça de patriota, como no tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
Além disso, não esqueçamos, o vermelho pelo mundo afora, é o sinal, desde dois séculos atrás, daqueles que resistem e lutam por justiça. É só lembrar a força das imagens do filme de Bertolucci, Novecento. E as grandes bandeiras rubras e coloradas, são fortes e significativos sinais de exigência pelas transformações da sociedade.
E aqui quero introduzir um último elemento. Mesmo se havia uma predominância de apoio à presidenta, isso não escondia um mal-estar, em cartazes e faixas, com a política econômica de seu governo. Apoio crítico e não incondicional. Aliás, se Cunha é denunciado, como aceitar o silêncio sobre seu irmão siamês Renan Calheiros, que se arvora em apresentar um plano para o Brasil, ele que já teve de renunciar para poder se reeleger mais adiante? Em nome de uma duvidosa governabilidade, como engolir certas alianças espúrias? E medidas de ajuste, modelito FMI, trazem recessão, desemprego e maiores desigualdades, como vai ficando claro pelo mundo afora. Por isso estas manifestações, na conjuntura imediata, são principalmente um deixa para lá ao golpismo. Mas trazem embutidas, no médio prazo, exigências que o governo que recebe apoio terá que levar em conta, se realmente estiver atento, aos clamores que vêm das ruas.