(Mãos Limpas x Lava Jato)

Por: Helenita M. Sipahi

Entre tantas imagens e notícias diárias que me ferem olhos e ouvidos há meses (um caldeirão de alta pressão prestes a explodir, que mistura corrupção, desemprego, terceirização, impeachment, maioridade penal, ajuste fiscal e outros temas, reais e/ou ampliados midiaticamente, insinuando a derrocada final e fatal de um país soberano), duas imagens me chocaram particularmente nos últimos dias, as quais, na minha opinião, têm relação entre si: a do corpo de um homem negro, nu, amarrado a um poste e linchado por populares após tentativa de assalto e a de um homem branco desabando em pranto convulsivo durante um depoimento ao juíz Sergio Moro em Curitiba, frente às câmeras de TV.

Essas duas imagens tem nomes diferentes – intolerância e arrogância – e um suposto sobrenome comum – justiça. A primeira com as próprias mãos e a segunda através de procedimento legal (legítimo?). Entre elas paira, inconteste, uma terceira vítima, de caráter civilizatório: a preservação universal dos direitos individuais, de defesa legal e da integridade física, psicológica e moral.

Como chegamos a isto?

Antes de mais nada devemos reconhecer, em que pese os extraordinários avanços sociais e de inclusão dos três governos do Partido dos Trabalhadores, nunca antes promovidos por nenhum outro na mesma escala, que várias infrações éticas tem sido atribuidas a integrantes do partido, algumas comprovadas (em nada diferente das que ocorreram em governos e partidos que lhes antecederam – a aparente diferença de dimensão se deve ao fato de que os de agora são investigados com rigor e com todos os holofotes ligados), além de erros na condução da política econômica, cabíveis de urgentíssima correção.

Entretanto, desde a campanha eleitoral e reeleição da Presidente da República em 2014, setores inconformados com a derrota, alas conservadoras do Congresso e a quase totalidade da grande mídia vem orquestrando uma campanha de demonização do Partido dos Trabalhadores e do governo, ampliando diuturnamente a verdadeira extensão da crise econômica e incutindo na sociedade um sentimento de ódio e intolerância. Político conhecido, e nunca investigado, afirma que a Presidente se reelegeu com os votos de pobres e de nordestinos; outro, diante da crise, diz que a Presidente tem que sangrar, a mídia conclama sem pudor a classe média para manifestações e panelaços contra a Presidente e faz vazamentos seletivos e convenientes da operação Lava Jato…

No limite e em consequência, a cultura de ódio e intolerância extrapola a área política, atinge valores civilizatórios e aprofunda preconceitos raciais, de classe, gênero e opção sexual, até religiosos (a garota espancada ao sair de um culto afro); o homem negro linchado e outras tentativas de linchamento, repetidas agressões a homosexuais, ataques digitais à apresentadora negra e, nos estádios, a jogadores negros, achaques de ministros em hospitais, restaurantes e aeronaves. Ontem mais um caso de linchamento, na favela da Rocinha no Rio!

No episódio recente de produção e distribuição de adesivos pornográficos simulando o estupro da Presidente (crime claro de incitação coletiva à violência e ameaça à integridade física e moral, não só da Presidente, mas de todas as mulheres brasileiras), não vimos nenhuma reação indignada da grande imprensa nem do próprio Congresso como instituição, como se fosse tudo banal, apenas mais um ataque pessoal à Presidente. Um inquérito, sigiloso, foi aberto mas coincidentemente neste caso nenhum vazamento sobre o autor e financiadores…

Tudo, fruto e exemplos de extrema intolerância, alguns beirando a barbárie.

E o homem branco chorando diante das câmeras de TV?

Sou ex-presa política da década de 70 e morei na Itália em 92 e 93, em pleno auge da operação Mãos Limpas – conheço portanto os dois lados. Lá, o procurador Di Pietro (alter-ego do juíz Sérgio Moro) também prendeu durante meses a fio dezenas e dezenas de figurões entre empresários e políticos – deputados, senadores, secretários, ministros e dois ex-primeiros ministros (Giulio Andreotti e Bettino Craxi). Dos investigados, 12 se suicidaram durante as investigações, sete enquanto eu estava lá, Andreotti foi absolvido após 5 anos e Craxi morreu no exílio em 2000 sem ter cumprido a pena. Di Pietro fundou um partido político, tendo apenas 3% dos votos nas eleições que se seguiram.

A operação Mãos Limpas era necessária? Qual foi o resultado para a Itália?

Claro que era necessária, não há dúvida. Seguindo-se ao esfacelamento da antiga União Soviética surgiram inúmeras denúncias de que políticos italianos, em especial do Partido Comunista, mas não só eles, recebiam recursos da KGB (o famoso ouro de Moscou) e propinas de grandes empresas públicas e privadas, entre elas as do setor de petróleo; nesta modalidade estariam incluídos parlamentares e dirigentes de outros partidos – Partido Socialista, Democracia Cristã e outros, acusados de receber doações irregulares para suas campanhas. Mais de 6.000 pessoas investigadas, centenas e centenas presas e cerca de 1.200 condenadas. Ironicamente, poucas ou quase nenhuma do Partido Comunista…

O que resultou da operação Mãos Limpas para a Itália?

Independente dos acertos e erros da operação, e da sua própria validade, o resultado que os analistas da época e os de agora apontam como sendo o mais significativo foi o fim da primeira república do pós-guerra – com importante desindustrialização do país na década seguinte, privatização da estatal do petróleo, derrocada de todos os partidos políticos (o PSI que ficou de pé nada tinha do original) e um sentimento difuso de descrença e falta de engajamento da sociedade em relação à atividade política – o vácuo que se seguiu facilitou o florescimento de partidos neofascistas e xenófobos como a Liga Norte e o PdL (Povo da Liberdade) de Sílvio Berlusconi, magnata das comunicações na Itália, o ex primeiro-ministro “bufo” que acaba de ser condenado… por corrupção! Com a anomia que se instalou na década de 90 e os escândalos da era Berlusconi, a Itália perdeu o protagonismo político que sempre teve no pós-guerra e é hoje uma peça menor na comunidade européia, com todas as consequências – 20 anos depois da operação Mãos Limpas ficou muito mais pobre, com taxas de desemprego de 14%, 40% entre os jovens de 18 a 24 anos.

A operação Lava Jato é necessária? Qual será o resultado para o Brasil?

Claro que é necessária, sem dúvida. Há graves denúncias de corrupção e desvios que devem ser apurados e punidos. A nossa maior empresa – orgulho nacional – foi espoliada por ação de poucos, insisto poucos, altos funcionários da empresa, alguns réus confessos, e políticos de todos os partidos, repito todos, receberam para suas campanhas vultuosas doações de grandes empresa (regulares? irregulares? a esclarecer). Há portanto que investigar e, se culpados, punir. Na semana passada, foram divulgadas as primeiras condenações. Justas? Difícil avaliar a culpabilidade e circunstâncias de cada um. É a palavra do Juíz.

O que resultará da operação Lava Jato para o Brasil?

Só o tempo dirá. Entretanto, algumas comparações e perspectivas já devem nos colocar em alerta: a) em relação à Petrobrás, tramita no Congresso desde março projeto do Sen. Serra que, baseado nas denúncias e investigações da Lava Jato, pretende privatizar parte da exploração e produção do pré-sal (um antigo compromisso seu, da campanha de 2010, com o grupo petrolífero americano Chevron, desde a descoberta do pré-sal); b) o gráu de comprometimento financeiro das empreiteiras envolvidas na operação pode levar algumas delas à insolvência e, por serem as maiores e mais especializadas do país, prejudicar no futuro próximo os projetos de ampliação e desenvolvimento da infraestrutura do próprio país; c) o cerco aos partidos políticos – com honoráveis e explícitas exceções – notadamente ao Partido dos Trabalhadores com a ajuda cotidiana da grande imprensa, já leva a sociedade àquele clima de desesperança e descrença nos agentes políticos e nas instituições. Pode não sobrar pedra sobre pedra.

Nào se questionam a validade nem a oportunidade das operações Mãos Limpas e Lava Jato. O que se questiona são métodos empregados, excessos e exposição midiáticos em ambas e resultados, confirmados em uma e previsíveis na outra.

Aqui entra a imagem do homem branco aos prantos frente às câmeras de TV.

Certamente o juíz Sergio Moro não tem experiência de estar em prisão, como não tinha o procurador Di Pietro na Itália. Nem sensibilidade para distinguir o estado de espírito e as circunstâncias de acusados e réus políticos daquelas de acusados de crimes comuns. Ou tem e se utiliza delas. A diferença pode parecer pequena (afinal uns e outros seriam presos acusados criminalmente), mas não é:

Circunstâncias: entre os primeiros não existia a figura do constrangimento ou da vergonha, só o medo – em princípio eles eram as vítimas. Nossos pais e filhos, até netos, dos anos de chumbo só tinham medo, por nós – não sofriam constrangimento moral entre vizinhos, professores ou colegas de trabalho, pelo contrário, sentiam-se orgulhosos da nossa coragem e idealismo, assim como nós (certos ou errados) tínhamos até certo orgulho de nós mesmos, tão convictos que éramos das nossas bandeiras por democracia e justiça social;
Entre os segundos existe principalmente a vergonha, por eles e por suas famílias, até porque os crimes dos quais são acusados estão associados culturalmente a desvios de caráter e são, do ponto de vista moral, indefensáveis. Suas famílias se tornam assim expostas a constrangimentos de toda ordem.

Será por isto que o homem branco chorava diante da TV?

Delação: não recordo de delações premiadas na operação italiana; se existiram, não foram na mesma proporção que aqui. De qualquer forma, com prêmio ou sem prêmio, esta expressão me enoja; quando acontece, forçada ou não, expõe e
amplia exponencialmente desvios de caráter já existentes e destrói os últimos resquícios de dignidade que ainda existam no acusado. Tem sido o principal instrumento jurídico responsável pelo enorme sucesso do “meritíssimo” – explorado e estimulado por pressões psicológicas continuadas, longo tempo de confinamento preventivo e oferta de vantagens, como qualquer “lei do Gerson” – uma espécie de tortura sofisticada do século 21, segundo Ives Gandra Martins.
Que valores éticos estão em jogo no tabuleiro da justiça nos dias de hoje?
Historicamente, que exemplos deixaremos para nossas futuras gerações?!
Os sobreviventes políticos saíram inteiros dos tempos da Ditadura, apesar dela;
Outros presos, culpados ou não, e mesmo condenados, podem vir a superar suas culpas, medos e constrangimentos e sair inteiros de suas tragédias pessoais; os homens das delações premiadas serão para sempre só a sombra de si mesmos…

Ninguém dá nome de rua a Calabar.

Exposição midiática: investigações, denúncias e julgamentos deveriam ser fenômenos naturais em qualquer sociedade civilizada – são regras do Direito.
O que se questiona é o abuso de exposição na mídia de investigados e julgadores, transformando a priori os primeiros em condenados e os segundos em heróis nacionais – desde o chamado mensalão. A operação Mãos Limpas na Itália foi semelhante e lá como cá era a mídia “oficial” que comandava o show, a mídia do Berlusconi que depois assumiu o poder… mas ali havia, pelo menos, uma diferença fundamental: a imparcialidade. Todos os partidos e agentes citados ou denunciados recebiam o mesmo tratamento – da imprensa e da justiça. Na Lava Jato e em outras demandas judiciais, não – “uns são mais iguais que os outros” como no ditado popular. Se assim não fosse, por que as doações de campanha para candidatos do PT são em princípio criminosas e as de outros partidos, p.ex. do PSDB, sequer constam da lista de investigações? Por que os vazamentos de dados sigilosos são sempre seletivos, convenientes, permitidos e nunca contestados? Por que uma denúncia sem provas na revista Época se transforma imediatamente em investigação de tráfico internacional de influência do ex-presidente Lula e as tratativas e conferências internacionais do outro ex-presidente são consideradas “do bem” ? Por que a aquisição do famoso apartamento de 11 milhões de euros em Paris (entrevista a Mônica Bergamo, 2011) à época das privatizações, nunca foi investigada? Se isto não é seletivo…

Por fim, analisemos as consequências dessas operações, para os envolvidos: na Mãos Limpas foram investigadas 6.000 pessoas e condenadas 1.200; as demais 4.800 foram excluídas ou absolvidas. Mas antes disto – dado o arrogante espetáculo midiático – tiveram suas vidas expostas e devassadas e suas reputações destruídas. Quem garante que os 12 suicidas não estariam entre os absolvidos se estivessem vivos? Suicídio nestes casos nem sempre é confissão de culpa; pode ser apenas desespero e impotência diante da violência sofrida.

Se eu fosse o homem branco (qualquer que fosse minha culpa, ou nenhuma)
eu também choraria frente às câmeras de TV.
O homem negro, nu, sequer teve tempo de chorar…

É o Brasil em que estamos nos transformando – intolerante, arrogante e cruel.
Definitivamente, não foi este o país com que eu sonhei!