por: Tarso Genro
Os irmãos Mann, Thomas e Heinrich, simbolizaram com posições políticas diferentes -Thomas mais moderado e Heinrich mais radical (era simpatizante dos comunistas e da esquerda social democrata), a resistência moral e intelectual da inteligência alemã à ascensão do nazismo. Eram os anos da lenta decomposição da República de Weimar (1919-1933). Pode-se dizer que Thomas Mann foi um gênio literário e Heinrich Mann, um grande escritor.
“Os Buddenbrook”, “A Montanha Mágica” e “Doutor Fausto”, de Thomas, e “A Juventude do Rei Henrique IV” e “Professor Unrath” (do qual foi tirado o roteiro do filme “O Anjo Azul”, de Sternberg, com Marlene Dietrich), de Heinrich, são verdadeiras joias literárias do humanismo contemporâneo. Como é sabido, a Constituição de Weimar -a mais completa constituição democrática composta numa sociedade capitalista- foi derrotada pela fulminante vitória eleitoral do nazismo. Hitler chega ao poder em janeiro de 1933, “sangrando” a Constituição democrática mais avançada do mundo.
Após uma eleição traumática, com hiperinflação, desemprego e ódios disseminados pela direita — nazista ou simplesmente autoritária — contra os comunistas, contra os judeus, contra os democratas, contra os católicos e protestantes que não transitaram para o anti-semitismo e o racismo, Hitler instala o Estado “total”. Juristas como Carl Schmitt e filósofos — depois arrependido — como Heidegeer, que chega a assinar como Reitor da Universidade de Friburgo a expulsão de colegas judeus -no processo de “arianização” da educação- se encarregam e dar legitimidade ao novo regime.
O Estado “total” desencadeia, não só a barbárie do “Holocausto”, contra comunidade judia. Promove o assassinato em massa de dissidentes políticos de todas as extrações, chacina de ciganos, homossexuais, pessoas com deficiências físicas, com apoio ou o silêncio cúmplice dos grandes conglomerados financeiros e fabris, que financiam Hitler. Eles aderem e adotam o regime e seduzem, com uma propaganda manipulatória e reiterativa, a maioria do povo alemão, conjugada com uma brutal repressão ao movimento operário, comunista e socialdemocrata.
Os quadros políticos e “técnicos” do nazismo -que se inspira no fascismo mussoliniano e soma, a ele, a fraude científica da superioridade racial- vem principalmente da aristocracia latifundiária “junker”, das “classes altas” do serviço público de extração prussiana, e do “subproletariado” -o chamado “lúmpen”- desempregados de todas as origens, recrutados pelas SA, as forças de segurança estruturadas de forma militar pelo Partido Nacional-Socialista.
A imbecilidade política do stalinismo, que coloca a socialdemocracia como um “social-fascismo” – impedindo um sistema de alianças amplo contra o nazismo- bem como a fraqueza político-organizativa da socialdemocracia e a vacilação de uma boa parte da comunidade judia endinheirada, prensada entre a brutalidade nazista e a possibilidade de uma revolução socialista na Alemanha, abre todas as possibilidades para a liderança de Hitler. As indenizações brutais que a Alemanha deveria pagar, em virtude dos “acordos” que sucederam a sua derrota na Primeira Guerra Mundial, sangravam a sua economia. Criavam um profundo ódio nacional e uma unidade interna, não baseada nos valores universais da paz e do convívio entre os povos, defendida pelos irmãos Mann, mas na identidade fundada na necessidade de uma nova guerra e do extermínio de qualquer adversário, que passa a ser, para sempre, um inimigo.
Embora não estejamos sob ameaça de um “Golpe” tipicamente latino-americano, semelhante aos que prosperaram nas décadas de sessenta e setenta, no Continente, muito menos sob ameaça de um regime fascista típico, não é menos verdade que está em curso uma deterioração política das instituições democráticas. Ela está sendo patrocinada por uma parte significativa da grande mídia, articulada com lideranças empresariais e políticas expressivas, ao semear um sentimento de ódio político aos partidos e à esfera da política, em geral, que só tem precedentes no martírio de Getúlio Vargas.
Esse movimento, não mais incipiente, se processa, não só pelos julgamentos sumários que estas empresas de comunicação tem feito, através dos seus porta-vozes na crônica política, mas também através de uma cobertura cotidiana que, não apenas levanta suspeitas a quem lhes aprouver, mas igualmente faz dos seus noticiários uma “instância de exceção” do Poder Judiciário. Trata-se de uma verdadeira midiatização do processo penal, que transforma o julgamento definitivo, nos autos do processo, em algo totalmente sem importância educativa ou reparadora.
A incriminação coletiva do Partido dos Trabalhadores, agora já em andamento em relação também a outros partidos, é uma velha técnica fascista. Ao despertar ódio contra grupos coletivos indeterminados, fica dispensada a prova contra o indivíduo, que se torna um suspeito ou um culpado em abstrato. Os precedentes são Stálin, Mussolini, Hitler e não se diga que não poderiam ser evitados. Bukharin, Norberto Bobbio, Gramsci, os irmãos Mann, Mayakowski, poderiam ter vencido.
Pergunto-me se não é a hora, no Brasil, de cerrarmos fileiras, independentemente das nossas diferenças ideológicas e político-programáticas, dentro das instituições do Estado, dentro dos partidos políticos, em todas as instâncias e organizações da sociedade civil -de cerrarmos fileiras- independentemente dos erros e acertos de todos os Governos que sucederam a Constituição de 88, para proibir o financiamento empresarial das campanhas e dos partidos, já para as próximas eleições. Seria um gesto de desagravo, da esfera da política ao nosso povo, intoxicado pela mídia manipulatória, partidarizada e propagandista do projeto neoliberal.
E isso poderia iniciar, no campo democrático mais amplo, um roteiro de diálogo para evitar os erros cometidos em outras circunstâncias, que permitiram que, por uma análise errada da situação histórica ou por mero oportunismo de circunstância, as forças democráticas da esquerda e do centro, se separassem e deixassem prosperar o ovo da serpente.
O jurista Carl Herz, prefeito de Kreusberg (entre 1926 e 1933, na “grande Berlim” dos anos 30), era irmão do meu avô por parte de mãe, Hermann Herz. Carl, judeu e socialista, fora eleito com o apoio dos sociais-democratas (SPD) e dos comunistas (KPD) e depois retirado da Prefeitura, sob violência e tortura, pelos assassinos da SA, de Hitler. Morreu em Haifa, em 1939, depois de exilar-se e militar na resistência durante a Guerra, em Londres.
Quando Carl Herz foi retirado à força da Prefeitura, os comunistas e sociais-democratas já estavam separados, tanto entre si, como das forças políticas democráticas, centristas e conservadoras, mas antinazistas. Todos sofreram juntos os efeitos da Serpente no poder. Aqui, certamente, não estamos tratando do nazismo, porque o nosso processo político é mais próximo da Itália, dos anos sessenta e setenta, do que da Alemanha dos anos trinta. A agenda política do país é feita pela mídia oligopólica , que vem sistematicamente criminalizando os partidos e a política e, por isso mesmo, estamos mais próximos de criar um Berlusconi do que um Hitler.
Lembrei Carl Herz para homenageá-lo e lhe dizer, esteja onde estiver neste universo infinito e misterioso, que a tradição das gerações mortas, não só “oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, como dizia o velho Marx, outro judeu que o senhor tanto admirava, como também recriam esperanças e reabrem as mais generosas utopias.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.