Por: Ana Katia Alves dos Santos. Doutora em educação e professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia.
Ailton Benedito de Sousa é baiano de Salvador, porém filho de coração da ilha de Itaparica, onde vive atualmente. É professor aposentado do Estado do Rio de Janeiro, Estado onde morou por anos. Pai de seis filhos, ex-preso político, jornalista provisionado, ex-acadêmico de Direito e escritor de coração com especial atuação no campo das letras.
A obra está contextualizada no ano internacional da afrodescendência e, já na apresentação, lança questões, em certa medida inquietantes, a saber: Se não somos afrodescendentes, somos o quê? Num universo de milhões de mestiços, o que é ser branco? Que é a cultura branca? Quem a alimenta? Quais são os seus produtos? Essas questões disparam reflexão altamente crítica e pensamento estético-ético para o estudo e conhecimento da diáspora africana no Brasil e na Bahia, em especial. O autor, contudo, não perde, ao longo da escrita, a dimensão universal e global, ecológica, portanto, da sua compreensão sobre o drama do ser negro na relação com o outro. Relação esta de alteridade muito demarcada em sua obra.
Em sua saga por revelar as barbáries vividas na carne, no psicológico e no ‘espírito’ do negro nesta diáspora, o autor analisa o lugar da lei e a sua suposta garantia por igualdade, esta que não se dá no plano da realidade. Reflete sobre a desigualdade financeira e as forças sociais que dificultam a garantia por igualdade e direitos.
A obra apresenta uma narrativa estética digna de destaque, pela criatividade e articulação complexa do pensamento que descreve os pormenores e detalhes quase microscópicos da nossa história de baianos, brasileiros e afrodescendentes, a partir das memórias particulares de Bento. Não é uma leitura simples, no sentido da facilidade compreensiva, porque é não linear, cheia de idas e vindas, de fatos atuais e passados que se entrelaçam e marcam a poesia e a beleza do seu que dizer. A escrita é aberta e parece sempre deixar brechas compreensivas para o leitor. Essa forma poéticaabre dobras de conhecimentos diversos em vários campos, da história, da política, do social, das letras e da autobiografia, porque, afinal Bento é ele mesmo (recriado), rememorando histórias, personagens (como o destacado Pierre Brazagão) e fatos que marcaram as fases da sua vida: a infância, a juventude e a velhice ou maturidade e a tomada de consciência dela. São trajetórias irregulares,fatos singularese altamente contextualizados com a história local e mundial, marcados pelo tempo e pela força política. Neste aspecto a obra é uma grande fonte de compreensão da história do Brasil, da Bahia e do mundo.
Bento! Este é o personagem central, que vai inquirir o leitor quanto a alienação e loucura que estão sempre prontas a dificultar a nossa compreensão sobre o sofrimento na história de ser afrodescendente, tendo que aprender a viver e a ser gente nas diásporas, em meio as perversidades marcadas pelas lógicas colonizadoras e imperialistas que geraram, dentre outras coisas, o complexo do brasileiro, que o coloca numa ‘eterna’ posição de subalternidade à pretensa cultura branca(pretensa porque, se somos todos afrodescendentes, branco é o que?). Usando os termos descompreender, recompreender e transcompreender como esforço no alcance do conhecimento sobre homens de diferentes eras, bem como trata da inconsciência de nossa herança civilizatória e da humanidade que carregamos, ancestral africana na fala, nos hábitos, nas lendas, nos objetos, bem como a ancestralidade indígena a ela costurada. Trata do eu negro que diz ao mundo imperialista, que é branco, que Salvador não é Haiti.
Bem, a obra tem lá o seu lado trágico, faz uso da tragédia na utilização de histórias de deuses e orixás especialmente quando debate a distribuição da justiça e do aprendizado da lição de que é preciso dominar o orgulho (que é a sede de protagonizar ilusões), fazendo uma narrativa sobre destinos trágicos, chegadas e partidas, histórias não contadas como a do Egito e a sua ligação fecunda com a África. Ogum e a sua história trágica, quer tapar o vazio da nossa orfandade e o não reconhecimento da África como mãe e pai do brasileiro. Se a África não é a nossa mãe ou pai, somos órfãos! Essa é a verdade nua e crua que o brasileiro deve enfrentar.
O texto é marcado por substantivos e adjetivos que marcam o tempo através dos nomes das coisas e objetos carregados de memória e sentido. A descrição dos objetos parece nos brindar com um mergulho no tempo cheio de reviravoltas e fatos surpreendentes, costurando memorias remotas às mais contemporâneas. Estes objetos e fatos são marcos importantes para a consciência de Bento: o rádio que lembrava os anos 40, os sapatos novos que mais pareciam armaduras para uma criança, a escola e os ensinamentos da professora… Fatos e objetos que também vão definindo uma noção de identidade cultural e também identidade como mercadoria (o status social e o quem somos a partir do que possuímos).
Momento importante quando Bento considera que não somos parasitas da cultura alheia e das suas línguas, nos a recriamos como bons brasileiros que somos. Nesse sentido, a recriação vem também como contra-força; política pessoal da juventude de Bento,por exemplo no contexto da ditadura militar. Obviamente, sendo negro e militante político, é culpado duplamente.
A recriação deve ser motivo de luta pela produção e uso dos bens culturais, para não nos tornarmos parasitas! Mas as questões são sempre colocadas: Que valor têm os bens culturais produzidos pelo homem da Diáspora? A quem pertencem esses bens culturais? As profissões, como bens, quais são as que cabem para os negros na diáspora? Essas e tantas outras questões levam a reflexão sobre a destruição do ethos negro que é multissecular, através de várias formas de esterilidade presente na expansão das seitas protestantes, na reprodução da cultura dos ex-senhores, etc…
A conversa continua, deixa esse espaço sempre aberto para o leitor continuar pensando em vários temas e fatos narrados ao longo do texto: cientificismo e massacre ao ethos negro, religião e domínio cultural, destruição ecológica e processo de industrialização, a importância das artes para os processos de emancipação humana e… um recado “Virtude é lutar pela humanidade” e “Ao fim e ao cabo, procuramos a beleza da vida para todos”.
Enfim, considero a obra de Ailton Benedito de Sousa, A diáspora na diáspora, de grande significado e importância e digna de ser amplamente lida, debatida, questionada e difundida.
(*) A DIÁSPORA NA DIÁSPORA. Autoria: SOUSA, Ailton Bendito de. Rio de Janeiro, Editora Europa, 2011.