por Celso Amorim* —
Ao longo dos últimos doze anos, tive a honra de contribuir com o Presidente Lula e com a Presidenta Dilma Rousseff na condução das políticas externa e de defesa. Como diplomata de carreira desde 1963, acostumara-me a constatar, com raras e passageiras exceções, a fragilidade da percepção da nossa classe política sobre as relações externas do Brasil, marcada por uma perspectiva acanhada, obcecada por conceitos como “ausência de excedente de poder”, que serviam para justificar comportamentos tímidos, pouco condizentes com as dimensões do país e as aspirações do nosso povo.
A resposta da Presidenta Dilma às revelações de espionagem e intrusão cibernética sobre o Brasil, em 2013, retoma uma tradição de firmeza e altivez que remonta a Rio Branco e Rui Barbosa – passando por San Tiago Dantas – e remete aos mesmos fundamentos do posicionamento do Presidente Lula, em 2003, frente à invasão unilateral do Iraque e à imposição de termos inadequados nas negociações comerciais. Em ambos os momentos, percebeu-se um país cioso dos seus princípios e disposto a defender sua soberania e a integridade de uma ordem internacional baseada no Direito.
Nenhuma outra região mereceu tanta prioridade dos governos de Lula e Dilma quanto a América do Sul. A União de Nações Sul-Americanas, criada na Cúpula de Brasília, em 2008, tornou-se o principal arcabouço institucional da integração e da cooperação entre os países sul-americanos. Com a Unasul, crises internas e disputas entre países passaram a ser mediadas pelos próprios sul-americanos, sem interferências de potências estranhas a nossa região. Em 2019, quando forem completados os cronogramas de desgravação tarifária celebrados entre o Mercosul e os demais países, a América do Sul conformará, na prática, uma ampla zona de livre comércio, alargando mercados e reforçando nosso poder de barganha frente a terceiros. Lula e Dilma empenharam-se em consolidar a América do Sul como zona de paz.
O Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) vem desenvolvendo intensa agenda de cooperação, que tem gerado dividendos para a confiança mútua entre os doze países sul-americanos. Enquanto conflitos armados irrompem em diversas partes do mundo, a América do Sul avança rumo ao estabelecimento de uma comunidade de paz e segurança, onde a guerra é inconcebível. Quem conhece os custos econômicos e humanos da guerra sabe que a paz não tem preço. Nossa política de cooperação garantiu que, sem ameaças ou emprego da força – diferentemente do que ocorre em outras partes do mundo -, não faltasse a nosso país sequer uma molécula de gás ou um quilowatt de energia elétrica, provenientes dos nossos vizinhos.
Na América do Sul, na África, no Oriente Médio e na Ásia, foram criadas condições favoráveis para a internacionalização das nossas empresas, por meio da exportação de bens e serviços de valor agregado e de oportunidades de investimento. Da mesma forma, nos últimos doze anos, o Brasil ampliou os destinos das exportações de produtos de nossa agricultura, incluindo novos parceiros na Ásia, na África e no Oriente Médio. A atenção especial à África reflete, além disso, preocupações de natureza estratégica com o Atlântico Sul e corresponde ao forte sentimento do povo brasileiro, cujas raízes se situam naquele continente irmão.
Novos grupos, de cuja fundação o Brasil participou ativamente, como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e o BRICS, têm contribuído para a construção de uma ordem internacional multipolar, que amplia a margem para a nossa atuação independente. Em 2014, o grupo BRICS concluiu, sob o impulso de Dilma, as negociações destinadas a criar o Fundo de Contingência e o Banco de Desenvolvimento, que oferecem oportunidades de acesso a recursos, sem as condicionalidades impostas pelas instituições de Bretton Woods, cujo poder decisório continua concentrado em pouquíssimas mãos.
Diversificação de parcerias não significou antiamericanismo, como análises amadoras pretenderam fazer crer. Baseados nas premissas de respeito mútuo e interesses comuns, Lula e Dilma mantiveram importante diálogo com suas contrapartes dos Estados Unidos. Os dois países aproximaram-se em campos tão diversos quanto os biocombustíveis, a promoção da igualdade racial, o turismo, a pacificação e reconstrução do Haiti, a formação de cientistas e a cooperação militar em bases de verdadeira reciprocidade. Pela primeira vez, o Brasil venceu uma licitação norte-americana para fornecer equipamento militar, os “caças” Super-Tucano. Durante a visita do presidente norte-americano ao Brasil, em 2011, foi estabelecido o “Diálogo da Parceria Global Brasil-EUA”.
Na Organização Mundial de Comércio, a diplomacia brasileira promoveu mudança estrutural no processo de negociação, com a criação, em 2003, do G-20 Comercial, por meio do qual os países em desenvolvimento passaram a articular suas reivindicações e propostas em matéria agrícola. Apesar dos impasses que vive a Organização, não será mais possível – como ocorria anteriormente – a um pequeno grupo de países ricos imporem acordos injustos e desequilibrados às nações mais pobres. O Brasil, nos últimos doze anos, preocupou-se em não expor empresas e empregos brasileiros a uma competição assimétrica, sem a garantia de compensação por meio de novas oportunidades de exportação e a eliminação de práticas desleais, como a dos subsídios agrícolas. A mesma firmeza, combinada com a disposição ao diálogo, permitiu importante vitória no caso do algodão, consumada em entendimento recente, celebrado pelos produtores e pela mídia especializada. Não abdicamos de utilizar o poder de compra do Estado brasileiro em favor da indústria nacional, como tem ocorrido na área naval. Nem permitimos que fossem impostas, em negociações como a da Alca, regras que limitassem o nosso direito de tratar adequadamente as questões de saúde pública, em benefício dos grandes laboratórios multinacionais. O reconhecimento de que essa postura, baseada na defesa soberana dos nossos interesses, nada tinha de xenófoba se refletiu na proposta da União Europeia de estabelecer uma “Parceria Estratégica” com o Brasil, concretizada em 2008.
Sem complexos, nos últimos doze anos, diante das incertezas do quadro internacional, o Estado brasileiro deixou para trás a visão de um país “periférico e desarmado” e assumiu plenamente a responsabilidade pela proteção de seus recursos e de sua população. Os Presidentes Lula e Dilma presidiram à elaboração e à implementação de novos marcos conceituais da defesa do país: a Política Nacional de Defesa, a Estratégia Nacional de Defesa, o Livro Branco da Defesa Nacional. Revalorizaram as Forças Armadas, priorizando-as, dentro dos limites impostos pelas condições macroeconômicas, na política de reajustes. Os investimentos em equipamentos de defesa, com alta atenção ao desenvolvimento da indústria e da tecnologia nacionais, deram um salto nunca antes visto e representam hoje – em termos reais – mais do que o dobro de doze anos antes. Grandes projetos, como o programa de submarinos, a nova geração de blindados Guarani e a produção de uma aeronave a jato para transporte de tropas, o KC-390, foram iniciados e desenvolvidos nos últimos anos. Em dezembro de 2013, a Presidenta Dilma tomou decisão histórica relativa à aquisição de 36 caças de combate de quarta geração, indispensáveis à defesa de nosso espaço aéreo, com ampla participação da indústria brasileira e total transferência de tecnologia. A parceria com a Suécia transformará o Brasil em novo polo produtor e exportador de modernos aviões de combate.
Assim, ao mesmo tempo em que estreitamos a cooperação com países do nosso entorno, na América do Sul e na África, reforçamos nossa capacidade de dissuasão, minimizando os riscos de que rivalidades que nos são estranhas venham – como ocorreu no passado – a impingir sobre os nossos recursos e o bem-estar do nosso povo, por cuja paz, tranquilidade e prosperidade o Estado deve zelar. É esta a visão estratégica que hoje está em jogo.