No conflito interno ucraniano, um pesado jogo geoestratégico está em andamento. E tem a participação de interesses e atores externos que incidem fortemente, com poder de desenhar os contornos que podem levar finalmente a uma guerra.
Apesar do noticiário internacional aparentar o papel externo exclusivo da União Européia [UE] no conflito, os EUA não só tem interesse direto nos encaminhamentos para a Ucrânia, como atua fortemente para proteger suas prioridades geoestratégicas.
Os Jogos de Inverno de Sochi terminaram, e como isso a Rússia entrou em cena abertamente, também para defender suas perspectivas geoestratégicas. São por demais óbvias as razões para a Rússia desejar a Ucrânia mais próxima de si que da União Europeia ou dos EUA: extensa fronteira física e forte identidade étnico-cultural.
Para a Rússia, a Ucrânia tem uma relevância singular pelo mercado de mais de 40 milhões de pessoas e pela indústria aeronáutica e de alta tecnologia herdada da era soviética. É, além disso, importante produtor de alimentos do mundo e, enquanto não se concluem investimentos de trajetos alternativos, ainda é itinerário do gasoduto que transporta o gás russo vendido à Europa.
A conveniência de relações amistosas e cooperativas com a Rússia é, por outro lado, significativa para a Ucrânia. Não bastasse o fornecimento de petróleo e gás a preços subsidiados da Rússia, recebeu recentemente US$ 15 bilhões de créditos russos em condições generosas para enfrentar suas dificuldades econômicas.
O clima de instabilidade e crise na Ucrânia, que culminou no golpe de Estado e na deposição do Presidente eleito Viktor Yanukovich, só em delírio pode ser associado à recusa do acordo comercial com a UE. Outros foram os fatores indutores da crise e da instabilidade vividas no país, cujo desfecho se conhece.
A despeito de toda pantomima diplomática da UE na Ucrânia, é inocultável que o protagonismo decisivo no tabuleiro pertence aos EUA. A UE é, na realidade, coadjuvante, um ator subsidiário. A frase da Vice-Secretária de Estado Victoria Nuland – “A UE que se foda” – em conversa telefônica [divulgada na internet] com o embaixador norte-americano na Ucrânia [Geoffrey Pyatt], é clara evidência disso.
A potência norte-americana financia os setores oposicionistas, a maioria deles de extrema-direita e neonazistas. E se movimenta politicamente e diplomaticamente como parte natural do problema. A atuação estadunidense obedece a duas lógicas: uma, econômica e energética; e outra, doutrinária.
Empresas norte-americanas como a Chevron e a Exxon Mobil possuem contratos de pesquisa, extração e exploração de gás na Ucrânia. Um negócio multimilionário que confere lucros extraordinários para as multinacionais norte-americanas de petróleo e gás, e que permitirá reduzir a dependência ucraniana da Rússia em matéria energética e, portanto, política.
Na seara geopolítica, presa a uma perspectiva embolorada da guerra fria e resistindo à multipolaridade, a doutrina norte-americana apregoa que a Rússia pretende “ressovietizar” a Europa Oriental para voltar a ser uma superpotência imperial.
A ex-primeira dama e ex-Secretária de Estado Hillary Clinton, em encontro com grupos de “defesa da sociedade civil” prévio a uma reunião da ONU em Dublin em dezembro de 2012 para tratar da guerra civil na Síria, explicitou o tal “risco” da “ressovietização”.
Ela então insinuou que o esforço de Moscou de integração regional “vai ser chamado de união aduaneira, de União Eurasiática ou qualquer coisa assim. Mas não devemos nos enganar. Nós sabemos qual é o objetivo e vamos pensar em meios efetivos de freá-lo ou impedí-lo” [O Estado de SP, 06/12/2012].
Segundo essa visão, a Ucrânia seria peça-chave para um projeto de soerguimento do império soviético. Zbigniew Brzezinski, que foi Secretário de Estado de Jimmy Carter [1978/1982], escreveu em 1997 [recém 6 anos depois da dissolução da URSS]:
“A Ucrânia, novo e importante espaço no cenário eurásico, é uma coluna geopolítica porque a sua própria existência como país independente consente a transformação da Rússia. Sem a Ucrânia a Rússia deixa de ser um império eurásio. A Rússia sem a Ucrânia pode ainda lutar pela sua situação imperial, mas será apenas um império substancialmente asiático, provavelmente enredado em conflitos deteriorantes com as nações da Ásia Central, que seriam sustentadas pelos Estados Islâmicos, seus amigos do Sul. […] Os Estados que merecem o maior apoio geopolítico americano são o Azerbaijão, o Uzbequistão e (fora desta área) a Ucrânia, pois todos os três são pilastras geopolíticas. Pode-se dizer que a Ucrânia é o Estado essencial, pois influenciará a evolução futura da Rússia.” [Em entrevista de Maurizio Blondet].
Aos norte-americanos, portanto, mais interessa evitar o domínio da Rússia na Ucrânia do que trazer a Ucrânia para seu raio de controle e poder direto. Os EUA, com a crença de que é o “país eleito por Deus para salvar o mundo” [Destino Manifesto], converteram uma tola teologia em política de Estado.
Com essa percepção divina de si mesma, a potência imperial interdita a construção de um mundo multipolar baseado na paz, na democracia, no diálogo entre as nações e no respeito à soberania e à autodeterminação dos povos. Ao contrário disso, insufla movimentos conspirativos e participa diretamente de golpes contra governos dos quais discorda ou contra países nos quais tem interesses econômicos ou estratégicos.
Em termos militares, a Rússia não precisa antes dominar a Ucrânia para se tornar superpotência com poder para enfrentar os EUA – porque já é uma superpotência bélica e nuclear. É desejável, para uma perspectiva de paz no mundo, que essa verdade tenha poder dissuasório ante a loucura de guerra que pode ser desatada devido a de mais um gesto de insensatez de Barack Obama.