É incrível que nenhum editor brasileiro tenha tomado conhecimento do livro El hombre que amaba a los perros, do cubano Leonardo Padura, editado em 2009, na Espanha (Tusquets Editores, S.A., Cesare Cantú, 8 – 08023 Barcelona. De 2009 é a primeira edição espanhola, não sei se há edição cubana. Padura (1955) é um grande novelista cubano, reside e trabalha em Havana. Comunista, nem perdeu o senso crítico nem faz o jogo de ‘dissidentes’. Por tudo isso estou postando em ‘Não deixe de ler a resenha de Jeferson Miola, publicada em Carta Maior.
Perversão da utopia
Jeferson Miola
Leonardo Padura, escritor cubano, é autor da magnífica obra “El hombre que amaba a los perros”. Na 1ª edição desse livro, no agradecimento à esposa Lucía, que “me suportou nestes cinco anos de tristezas, alegrias, dúvidas e medos, nos quais dediquei manhãs, tardes, noites e madrugadas a gestar, a dar forma e a arrancar de dentro de mim esta história exemplar de amor, de loucura e de morte”, Padura revela a confiança em que o livro “aporte algo sobre como e por quê se perverteu a utopia …”. O autor de “El hombre que amaba a los perros” é transparente quanto à motivação intelectual para a feitura do livro: “utilizar a história do assassinato de Trótsky para reflexionar sobre a perversão da grande utopia do século 20”, quer dizer, a degeneração totalitária e a degradação ética e moral da Revolução Russa de 1917 que se sucedeu com o regime estalinista, e que vinculou indelevelmente [e nefastamente] o ideal socialista à experiência do chamado “socialismo realmente existente”. Com uma técnica narrativa magistral, o livro biografa em simultâneo a vida do revolucionário bolchevique Leon Trótsky e do seu verdugo, o agente soviético Ramón Mercader Ríos – catalão de nacionalidade e dono de muitos codinomes: Jacques Monard, Frank Jacson, Jaime López, Ramón Ivanovitch López, Ramón Pavlovich… Ramón Mercader foi recrutado em 1936 pelo serviço secreto soviético no front da Serra de Guadarrama na Guerra Civil Espanhola, e conduzido para Moscou, onde receberia um especial treinamento. Nos anos de preparação para a macabra operação, Mercader se metamorfoseou em um ser assustadoramente sinistro, dono de muitas personalidades e ardis, e adestrado para executar a “nobre tarefa em nome do proletariado mundial”. O planejamento meticuloso, a arquitetura e o timing para o assassinato de Trótsky obedeceram a ordens diretas e ao monitoramento de Joseph Stálin. O assassinato foi finalmente consumado em agosto de 1940. Ramón Mercader, infiltrado no círculo de relações pessoais de Trótsky a partir do envolvimento afetivo calculadamente estabelecido com a militante trotskista Sylvia Agelof em Paris alguns meses antes do assassinato, se tornou confiado perante a segurança pessoal de Trótsky, e passou a gozar de relativa facilidade de ingresso na casa de Coyoacán. Na tarde de 20 de agosto, pretextando levar para a revisão de Trótsky um artigo sobre dissidências trotskistas nos EUA que foi deliberadamente mal escrito, Ramón provocou o encontro fatal com o velho revolucionário. Enquanto Trótsky lia o artigo sentado na escrivaninha do seu escritório, Ramón o golpeou mortalmente por trás, atingindo sua cabeça com uma picareta de alpinismo. Ramón foi surpreendido pela incrível reação de Trótsky. Mesmo atingido mortalmente, Trótsky soltou um grito retumbante de raiva e dor, e mordeu a mão com que Ramón segurava a picareta, para prevenir um novo golpe. Quando seus guarda-costas adentraram no escritório, Trótsky ordenou aqueles que devem ter sido seus dois últimos pedidos: que impedissem seu neto de assistir a cena, e que mantivessem Ramón vivo, porque assim poderiam conhecer a verdade sobre a trama arquitetada doentiamente por Stálin. Ironicamente, Ramón Mercader sobreviveu graças à decisão da sua própria vítima, de deixá-lo vivo. Não sem o castigo, todavia, de ouvir todos os dias, até os últimos dias da sua vida, aquele perturbador uivo estridente, e de ver sempre aquela cicatriz na mão direita como uma lava incandescente a lembrar o horror estalinista. Nos 20 anos de prisão no México depois de condenado por homicídio, manteve-se leal e devoto à “causa”: ocultou sua verdadeira identidade e protegeu os autores intelectuais e mandantes do crime. Em 1960, uma vez libertado e expulso do México, se radica na URSS – o único país do mundo que lhe concedeu abrigo. Ao longo dos últimos 70 anos, foram produzidas importantes obras biográficas sobre Leon Trótsky. Valem ser destacadas a trilogia de Isaac Deutscher [O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido] e vários escritos de Pierre Broué. Mas a isenção teórica e ideológica do autor de “El hombre que amaba a los perros” distingue esse livro pela fidelidade histórica de raro valor – diferentemente dos outros dois excelentes autores citados, Padura é um intelectual não filiado à tradição trotskista, e que por décadas não pôde acessar a literatura trotskista em sua natal Cuba. Esse distanciamento de Padura em relação a Trótsky e ao trotskismo assegura à narrativa uma mirada crítica e não romantizada da trajetória do líder da Revolução Russa e do Exército Vermelho. “El hombre que amaba a los perros” descreve vários erros cometidos por Trótsky nos anos iniciais da Revolução Russa, se detendo especialmente no exame do papel desempenhado pelo Exército Vermelho no massacre de milhares de marinheiros durante a Revolta de Kronstadt, em março de 1921. “El hombre que amaba a los perros” é um livro primoroso e atrevido, que interpela a história em busca da verdade sobre um dos fatos mais marcantes do século 20 e que envolveu um dos maiores personagens do socialismo de toda a história. É, ainda, um eficiente libelo contra a deturpação ideológica que, desonestamente, busca confundir a experiência trágica do terror estalinista com os ideais de uma democracia socialista ainda não vivenciada verdadeiramente pela humanidade.
(*) Foi Coordenador Executivo das edições do Fórum Social Mundial realizadas em Porto Alegre, Brasil, nos anos de 2001 a 2005.