Com a colaboração da Justiça, vivemos tempos de repressão, de judicialização de quase tudo: dos costumes, da saúde, da política.
Admirável! Em artigo recente (Significado de devido processo legal, Folha de S. Paulo, 30/09/17), o ministro Ricardo Lewandowski, também professor da Faculdade do Largo de São Francisco, disserta sobre a necessidade, nos processos judiciais, especialmente nos procedimentos penais, do respeito aos direitos fundamentais, “sobretudo os que decorrem diretamente da dignidade da pessoa humana, para cujo resguardo a prestação jurisdicional foi instituída”.
É tudo o que vem sendo desrespeitado pela dobradinha Poder Judiciário-Ministério Público, no anseio messiânico, à la Torquemada, de ‘salvar o Brasil’ das garras de Lúcifer, exorcizando a política.
O ministro-professor, ao desenvolver sua tese, liberal no sentido de não-autoritária, não penalista, não criminalizante, descreve, porém, aquele quadro que todos nós enxergamos como o registro em preto e branco da miséria da Justiça brasileira de nossos tristes dias.
Ao alinhar as condições que caracterizam o ‘devido processo legal’, direito incorporado à civilização ocidental pela Magna Carta de João sem Terra (1215), presente em todas as nossas constituições republicanas e estampado na Constituição de 1988 (art. 5º, LIV), o ministro Lewandowski na verdade descreve a realidade brasileira dos tempos de hoje:
“Prisões provisórias que se projetam no tempo, denúncias baseadas apenas em delações de corréus, vazamentos seletivos de dados processuais, exposição de acusados ao escárnio popular, condenações a penas extravagantes, conduções coercitivas, buscas e apreensões ou detenções espalhafatosas indubitavelmente ofendem o devido processo legal em sua dimensão substantiva, configurando, ademais, inegável retrocesso civilizatório.”
Pois é o que estamos vivendo: ‘inegável retrocesso civilizatório’.
Os advogados de defesa que atuam nos diversos processos políticos em curso no país devem inscrever essa catilinária como epígrafe de suas petições, pois, na vida real, o que não deve ser, é o que tem sido.
O ministro, porém, não é um ‘teórico’ discutindo ‘o direito em tese’, ele é um aplicador da lei, ex-presidente do STF, do TSE e do CNJ, e assim, ele e todos os seus e suas colegas, corresponsável por todos os abusos que se estão cometendo.
Nosso Poder Judiciário (especializado em antecipar penas), ademais de autoritário, ensimesmado, é parcial (por óbvio, a serviço da Casa Grande), partidarizado, ineficiente, lento, perdulário, nepotista, nada transparente (ao contrário, por exemplo, do Legislativo), imune a qualquer sorte de fiscalização (ao contrário do Executivo e do Legislativo), e trabalha pouco.
Além do mais, é caríssimo. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, seu orçamento corresponde a 1/4 do PIB nacional, o que, no ano passado, importou em quase 85 bilhões de reais, dos quais 76 bilhões foram gastos com remunerações (os juízes receberam 47 mil reais de salário em 2016, quando o teto constitucional é 33,7 mil), pensões, benefícios e despesas indenizatórias (Folha de S. Paulo, 5/9/17).
E o povo, o povo massa, o povo carente, continua sem acesso à Justiça! Não obstante, o Judiciário posa de Poder Moderador, uma extravagância na República, e desrespeitosamente, e impunemente (a quem apelar, se o STF é a última instância a que se pode recorrer?) avança sobre a competência dos demais poderes, carente porém da legitimidade conferida pelo voto popular!
Quando a Justiça tem cerca de 80 milhões de processos sem decisão, forjando a regra da impunidade, alimentadora do crime, ministros do STF (e juízes de piso, seguidos de procuradores, como os messiânicos titulares da Lava Jato curitibana) pouco param em Brasília e em suas comarcas: vivem em doces vilegiaturas de Seca à Meca, ora em viagens dentro de país, fazendo pregações ou palestras (significativamente sempre para empresários e quejandos) ou recebendo ou prestando homenagens, ou excursionando entre Paris e New York.
E há, também, ministros que são professores, em Brasília tanto quanto no Rio e São Paulo, e há os que dirigem empresas de Educação e cuidam de suas finanças junto a bancos públicos; há os que ainda integram o Conselho de Justiça Federal, o Conselho Nacional de Justiça, e ainda há os que também prestam assessoria ao ocupante da Presidência da República, acusado pelo Ministério Público de chefiar quadrilha e obstruir a Justiça, e ainda cuidam de sua defesa no TSE e no STF.
Como é que esses senhores atuam, quando é que estudam, quando se debruçam sobre os autos? Ou, será que, como se comenta nos corredores, nossos illuminatti se limitam a ler os pareceres lavrados por seus assistentes?
Pergunto à presidente Cármen Lúcia, por quem nutro justificado respeito intelectual: seus colegas, como funcionários públicos que são, privilegiadíssimos diga-se de passagem (mordomias várias, apartamento funcional ou auxílio-moradia, carro preto, motorista e combustível, diárias e um rol interminável de penduricalhos incompatíveis com a República e a pobreza que domina a população, mesmo a empregada), têm a obrigação de trabalhar quantos dias por semana?
Segundo levantamento antigo, que devo ao advogado José Antônio Almeida, somados as férias forenses, as festas de Natal e fim de ano, as festas juninas e mais isso e mais aquilo, nossos engalanados ministros não frequentam a Corte durante mais de oito meses. O garçom que serve cafezinho e água gelada ao ministro Gilmar Mendes, conhecido também como globetrotter, trabalha 12 meses por ano, oito horas por dia, cinco dias por semana.
As viagens dos deuses do Olimpo – viagens em dias de trabalho – são autorizadas pela presidência, ou já está tudo no ‘vai da valsa’? Por que a ministra presidente, com sua autoridade legal e moral, não faz cumprir o Regimento e acaba com a ilegalidade de ministros pedirem ‘vistas’ de processos em julgamento para se sentarem indefinidamente sobre os autos, exatamente para evitar o julgamento?
O CNJ, que deveria ser o olhar da sociedade, assegurando transparência, não conseguiu romper com o corporativismo. Saberá o Conselho quantos presos comuns, pobres e negros na sua maioria, permanecem nas centenas de masmorras espalhadas pelo país após haverem cumprido as penas às quais foram condenados?
Que fazem os titulares das varas das execuções penais? A quem dão satisfação e por quem são cobrados? Saberão nossos ministros e ministras e juízes e juízas quantos brasileiros, pobres, homens e mulheres, na sua maioria negros e negras, apodrecem e enlouquecem cumprindo penas em recintos insalubres ou aguardando julgamento nas enxovias que são os xadrezes das delegacias de polícia?
Diversos ministros de nossa Corte Suprema, amantes dos holofotes que lhes fornece a imprensa, cultivam o hábito de deitar falação sobre quase tudo, até sobre questões cruciais sob julgamento ou que irão julgar, o que é uma aberração. E quando julgam, muitas vezes não se apoiam no Direito, na Constituição ou na lei, nem na jurisprudência dominante, mas em argumentos, opiniões, conceitos e preconceitos políticos e mesmo político-partidários.
Por isso ficam a bater cabeças (quando não trocando farpas entre em si ou com a PGR), as Turmas se bicam em decisões conflitantes, o Pleno se transforma em 11 tribunais e as decisões monocráticas (muitas contestadas internamente) de exceção passam a constituir a regra.
E quando o Pleno decide, não raro fere a Constituição, por exemplo quando admite a prisão antes da sentença transitada em julgado, ou, como se fosse Poder Legislativo, interfere na legislação eleitoral e anula a cláusula de barreira, contribuindo para a mixórdia partidária que está no fundo da crise política de nossos dias.
Com a colaboração da Justiça, vivemos tempos de repressão, de judicialização de quase tudo: dos costumes, da saúde, da política. Tempos de retrocesso civilizatório que se reflete na vida social. “Um sistema de justiça criminal” – escreve João dos Passos Martins Neto, bravo procurador do Estado de Santa Catarina, a propósito da trágica morte do reitor Luiz Carlos Cancellier – “sedento de luz e fama, especializado em antecipar penas e martirizar inocentes, sob o falso pretexto de garantir a eficácia de suas investigações”.
O líder desses procedimentos que ferem a lei e o decoro é o inefável Gilmar Mendes, ministro-empresário-advogado-líder do governo, que, lamentavelmente, faz escola, má escola. Nas suas pegadas corre, entre outros, o ministro Luiz Fux, como vimos no seu exaltado discurso no julgamento do pedido de prisão do senador Aécio Neves. Falatório que continha tudo, exceto uma articulação juridical embora esta estivesse à flor da pele.
Esse é outro desvio dos tempos autoritários que vivemos: juízes, procuradores, ministros travestem-se de políticos, sem se darem ao trabalho de colher a autorização do voto popular, a que se submetem os políticos, uma ‘raça’ que pretendem eliminar.
Toda vez que a política é banida, falam os autoritários, fardados ou togados, mas sem votos!
A teoria de Lewandowski e o Direito real
“Não adotamos qualquer atitude para obstruir a apuração da denúncia. A humilhação e o vexame a que fomos submetidos – eu e outros colegas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – há uma semana não tem precedentes na história da instituição. No mesmo período em que fomos presos, levados ao complexo penitenciário, despidos de nossas vestes e encarcerados, paradoxalmente a universidade que comando desde maio de 2016 foi reconhecida como a sexta melhor instituição federal de ensino superior brasileira (…)”.
Este é um trecho da carta de despedida do professor Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Homem sério, digno e bom, não suportou as humilhações a que foi submetido pelas autoridades judiciárias e morreu na última segunda-feira 2.
O atestado de óbito apontará, como causa mortis, o suicídio. Seus amigos e os que lutam pela restauração do direito dirão que foi assassinato. E perguntaremos até à rouquidão: quem responderá por este crime?
A íntegra da carta do reitor Cancellier, trecho de seu último bilhete, as notas da Andes e da União Nacional dos Estudantes e a carta do procurador João dos Passos Martins Neto podem ser lidas aqui.
Roberto Amaral