O Brasil vive um parlamentarismo de fato, imposto como golpe de Estado branco, o que vai totalmente na contramão do pronunciamento eleitoral do ano passado, que reafirmou o presidencialismo.
Foi instalado pelo Congresso a partir da composição entre Eduardo Cunha e Renan Calheiros em aliança oportunista do baixo clero (bem representado pelo presidente da Câmara) com a oposição biliosa, irresignada com a derrota eleitoral.
No primeiro e no segundo reinados, tínhamos um poder moderador, ora ressuscitado e que é exercido pelo vice-presidente da República, Michel Temer. É uma engenhosa alternativa à governança, mas está longe de abrir caminho para a saída da crise de representação política que nos aflige.
O regime representativo brasileiro faliu, o presidencialismo de coalizão está esgotado e as instituições da República não estão à altura dos desafios do país de hoje, mais próximo daquele das marchas de 2013, denunciadoras da orfandade político-partidária da cidadania.
Há uma crise rotunda do sistema de partidos, em profunda putrefação, incapaz que foi de recuperar-se do estupro da ditadura militar, primeiro decretando o fim das siglas que vinham da Constituição de 1946, depois impondo o bipartidarismo permissível com duas siglas de fancaria (Arena e MDB), virtualmente criadas por decreto.
A liberação, iniciada em 1982, e a reorganização partidária, em 1985, não foram suficientes para restabelecer o verdadeiro sistema de partidos, se entendidos como representações de interesses coletivos distinguidos ideologicamente.
Ao contrário, a proliferação desmedida e irresponsável de partidos –32 é o número de hoje– resultou ainda mais na desmoralização das siglas. A permissividade desnaturou as coligações majoritárias e proporcionais, reduzidas a vil instrumento de cessão de tempo de rádio e TV e acesso ao fundo partidário.
A crise política deve ser entendida como crise republicana, da qual o mal-estarda economia é apenas um dos reflexos, requerendo transformações na organização do Estado e no processo eleitoral.
É preciso rever o funcionamento do Judiciário e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Este deve ser aberto à sociedade, leniente que é com as falhas morais e éticas de parte da magistratura. É preciso acabar com a indústria das liminares e dos pedidos de vista que atingem o STF.
Como um ministro interrompe votação já com placar de 6 a 1 (decidida) com pedido de vista dos autos e sentado sobre eles permanece por um ano? É preciso rever o funcionamento do STF, que delibera menos de oito meses por ano, que absorve poderes do Legislativo e que, ao contrário deste e do Executivo, julga-se espaço de deuses inalcançáveis pela fiscalização da cidadania.
Os presidentes das Casas não podem ser os imperadores das pautas e das agendas, e o colégio de líderes não pode substituir o plenário.
A Câmara dos Deputados não pode ser instrumento do atraso social que a sociedade rejeita e o Senado precisa ter suas atribuições revistas. Assim, este pode concentrar-se na justificativa de sua existência, que é a representação igualitária dos interesses dos Estados e a estabilidade federativa, em face da representação proporcional assimétrica que caracteriza a Câmara.
O presidencialismo de coalizão impõe ao presidente a chantagem de siglas que o obrigam a abandonar o programa pelo qual foi eleito para poder governar, mesmo assim tendo de distribuir prebendas a cada votação do interesse do Executivo. Uma forma de evitar esse deletério presidencialismo é manter eleições gerais no mesmo ano, separando as presidenciais das parlamentares e ensejando, assim, a coerência política entre a eleição do primeiro mandatário e a do Congresso que lhe der respaldo.
ROBERTO AMARAL, 75, ex-presidente do Partido Socialista Brasileiro, foi ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação (governo Lula)