Para a revista Cosmos&Contexto
“Não há, nunca houve, aqui, um povo livre, regendo seu destino na busca da própria prosperidade. […] Nós, brasileiros, somos um povo em ser impedido de sê-lo”.
Darcy Ribeiro
O passado explica o presente. Quando não diz o que fazer, ensina o que devemos evitar.
Concerto de elos, a História é um todo lógico tecido por fatos que se explicam uns pelos outros, como as ondas do mar, que na sucessão infinita de vagas parecem autônomas, quando, na realidade, um movimento é a sequência do antecedente e ao mesmo tempo o impulso da onda seguinte. Um feito, um evento, um episódio, uma transformação social, uma ruptura ou uma composição explicam outros sucessos, numa cadeia de interdependência causal em que atuam, em níveis que não podemos estabelecer, elementos políticos, econômicos, culturais e sociais, ao lado das leis do processo histórico e “do papel da vontade individual e das suas figuras coletivas e populares’’, o homem e a sociedade do homem, como artífices da História. É essa correlação sequencial que dá sentido aos acontecimentos e à vida social, o produto dialético do conflito-harmonia, entre racionalidade e irracionalidade, arbítrio e necessidade, força e debilidades, contradições e antíteses[1].
O fato histórico é sempre contingente, fixado num tempo e num espaço certo, fungível e irrecuperável, não repetível, inserido em circunstâncias singulares e precisas. Assim se explica porque o processo social – o perene fluir dos acontecimentos –, é um continuum: ao “fim da História” opõe sua revivescência.
Na busca de explicação para as desventuras do presente, na expectativa de encontrar o significado do que realmente somos, o ensaio que se segue propõe uma reflexão sobre nossa formação como território, entreposto, pouso de navegantes, aldeamento, constelação de feitorias, colônia e país; povo e nação; Estado antes de povo, nação e sociedade; império sem romper com as amarras coloniais, república que reproduz as duas principais marcas da monarquia: o governo da terra e a ausência do povo-sujeito.
Transita da colônia para o império, faz a abolição da escravatura negra e se constitui como república sem realizar sua revolução nacional.
À monarquia tutelar, sucede a república tutelada; se o monarca exercia o poder moderador em nome do sistema agrário, na república esse papel será requerido pelos seus curadores, as forças armadas, nomeadamente o exército, em nome da ordem reclamada pela plutocracia que só vai conhecer o declínio a partir de 1930. Vivemos a disjuntiva entre um passado que resiste à sepultura e um presente que forceja por vir à luz; o futuro é permanentemente adiado, porque o arcaico sobrevive, desafiando a modernidade.
Somos, caminhando para o terceiro decênio do século XXI, uma das maiores províncias do mundo provedoras de alimentos, em país no qual 124,6 milhões de habitantes, algo como mais da metade de sua população, vivem sob regime de insegurança alimentar.
Em nosso passado colonial, que não nos dá tréguas, encontraremos resposta para muitas das vicissitudes que nos afrontam, seja o subdesenvolvimento, seja a permanente crise política, que inspiraram a irretocável sentença de Sérgio Buarque de Holanda:
“A democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”[2]
É preciso conhecer este passado, animados de extremada consciência crítica, para dele nos libertarmos. Assim explico por que tanta reflexão será dedicada ao estudo do Brasil colônia, e nele, do escravismo que o caracteriza e que marca nossa civilização como tatuagem indelével.
O espírito colonial chega à contemporaneidade.
De outra parte, nas leituras relativas à república, seremos obrigados a dedicar demorada atenção ao fenômeno ‘golpe-Estado’, recurso político que pervade nossa história contemporânea, desde o golpe militar de 1889 até os episódios de 2016 com a deposição da presidente Dilma Rousseff e a instalação de um regime de governo que os constitucionalistas denominam de “exceção continuada”.
É doloroso dizer: transitamos da colônia ao Estado nacional; de população ocupando um território, nos transformamos em povo; experimentamos o Império e optamos pela República; praticamos o parlamentarismo num regime de governo unitário e hoje vivemos sob o presidencialismo que abraçou o federalismo e a autonomia de estados e municípios; a soberania popular escreveu cinco constituições federais; vivenciamos um sem número de golpes de Estado, ditaduras militares, regimes autoritários e de exceção jurídica. Trocam-se os mandatários, a democracia é sistematicamente revogada e sistematicamente restabelecida; em meio a ordem autoritária, nos concedemos a experiência de governos populares.
Tudo é mutável, menos o mando, porém, que se conserva o mesmo, desde sempre.
Da colônia à república governa-nos a casa-grande. Porque se em alguns momentos as grandes massas identificam o seu lado no processo social, não têm sido até aqui capazes de mudar a correlação de forças que dá sustentação ao poder. A continuidade reina sobre a ruptura, a ordem exila o progresso, o velho sobrevive no presente e muitas vezes o futuro cede espaço ao passado que teima em sobreviver. Algumas mudanças, perfunctórias, que não tratam da natureza das coisas e do conflito social, até são logradas, porque são levadas a cabo exatamente para que o sistema se assegure de que nada mude. A propriedade é intocável, sacralizada na república como foi no império e na colônia.
Quinhentos anos de civilização não foram suficientes para drenar a peçonha da herança escravagista: somos, país rico, uma das mais injustas sociedades do planeta; povo mestiço, somos diariamente pejados em comportamentos racistas. Ostentamos a mais vil concentração de renda do planeta.
Adianto uma tese: parto do pressuposto segundo o qual o Brasil ‘não deu certo’ – e, pelo andar da carruagem, demorará muito a dar certo – porque não tem, não soube ou não pôde construir um projeto de ser, fruto da vontade nacional, compreendida como vontade das suas gentes, de seu povo, de seus povos. É o que pretendo discutir ao longo das páginas seguintes.
Ingressamos no campo aberto das conjecturas dos que se dedicaram aos estudos de nossa formação de território, povoado – algo muito próximo de uma insularidade geográfica e existencial – para, com status de Colônia, anunciar-se como país, conhecer a forma Estado antes de povo e sociedade.
O colonizador português, empobrecido, mal saído do domínio hispânico e já condenado para menos de um século passado tornar-se vassalo do imperialismo britânico, vem para este pedaço de novo mundo mais para garantir e proteger a soberania da terra achada e invadida, visitada por corsários de todas as bandeiras e pelas belonaves francesas; por isso sua opção é aqui implantar governos e não uma civilização, que afinal surgirá, malgrado o desinteresse reinol, antepondo a arquitetura do Estado à organização da sociedade, o país antes da nação — essa comunidade imaginária –, a unidade política e econômica antes da unidade cultural. Estado, governo e, por fim, sociedade, cujos interesses são sotopostos pelos interesses de uma minoria mínima: os latifundiários, senhores de baraço e cutelo da terra e da vida das populações nativas, dos negros escravizados e dos brancos pobres, os comerciantes, exportadores de tudo o que a terra dava, e índios escravizados[3], e importadores de escravos e dos bens necessários para o consumo requintado da minúscula classe dominante, uns e outros representantes de companhias inglesas, os contrabandistas e traficantes e o patriciado que crescia no vezo português pela burocracia e as necessidades do domínio: o exatores do reino, os militares encarregados da defesa do território e, já, da repressão, o vasto clero católico cuidando das almas e dos bens terrenos, batizando e casando, fazendo política, ensinando latim aos filhos dos grandes fazendeiros, e aos índios o dever da obediência, e influindo na administração do poder, rezando missa nas capelas da casa-grande, sem olhos para ver a senzala e a gente lá armazenada ou esfolada no eito. O que poderia ser povo era uma sub humanidade oprimida, despida de quaisquer direitos, bens semoventes, um proletariado externo transplantado para uma feitoria voltada para as demandas do mercado europeu de bens primários tropicais, sob o guante de uma elite agrário-mercantil exógena, alienada dos interesses dos não-proprietários, sem passado e sem expectativa de futuro, sem consciência de povo, longe de constituir uma nação. Nessa elite vamos encontrar a gênese da burguesia brasileira, que a reflete com a fidelidade do espelho: alienada e forânea, desapegada do país e de sua gente. Por essas linhas começamos a compreender por que o Brasil ainda ‘não deu certo’.
Só população, à míngua de povo, uma massa-gente reduzida a força de trabalho não remunerado, gastável e substituível: índios preados e africanos escravizados; brancos pobres e semi-escravizados, explorados no servilismo, aventureiros europeus e asiáticos dispersos em uma vastidão territorial tão grande quanto inestimável. E uma mínima minoria de latifundiários e comerciantes, portugueses (os donos das grandes fortunas do tráfico) e já neo-brasileiros.
Uma fonte de nossos problemas: a ausência de um Projeto nacional
A dificuldade que se coloca, de início, nesse cenário, é a da conceituação de “Projeto nacional”. Comecemos pela abordagem mais fácil, que é simplesmente dizer o que não é Projeto nacional: não é programa de governo, nem obra de uma elite, ou de sua classe-dominante, ou de ilustrados, ou de fardados. Não se conhece seu texto, porque é obra imaterial, não tem autoria a declinar. Não é Projeto nacional o chamado “projeto Vargas” (nem o “tenentismo” de 1930 nem o autoritarismo esclarecido do Estado novo), muito menos com ele se confunde o despotismo da modernização conservadora dos militares depois de 1964. Numa tentativa de aproximação, mas ainda longe de um conceito satisfatório, digamos que Projeto nacional é aquele ideário, ou sonho de futuro, que uma nação formula para si mesma; é projeto fundante e perdurante, porque constitui o ser no presente, e declara o que pretende do futuro. É o código não escrito de uma nação.
O “Projeto nacional” é mais que um programa de uma determinada elite, ou de um partido, de uma determinada dinastia, de uma determinada ditadura; não tem data de proclamação, não tem começo nem fim, embora tenha finalidade; para além de fenômeno político, é processo psicossocial-cultural, histórico.
Mas, o que seria uma nação? O que identifica a nação brasileira ou faz com que a gente que habita este país se reconheça como um povo, para além do simples fato de morar no mesmo território, ou falar a mesma língua, ou subordinar-se à mesma ordem política? Reconhecer-se na mesma origem? Identificar-se com a mesma história? Ou é tudo isso e ainda ter aspirações comuns, como idêntica visão de sociedade e o mesmo projeto de futuro? Ou é a crença de pertencimento a um código comum de valores e vontades?
É comum dizer-se que o Brasil nasce nos embates que no Nordeste uniram índios preados, negros escravizados, mamelucos e caboclos, portugueses e brasileiros na resistência à presença holandesa. A hipótese é que o ímã para a comunhão de povos que se antagonizavam teria sido a defesa do território, com o qual todos se identificavam naquele momento embora não pertencesse a todos e sequer fosse conhecido da gente que o habitava: os muitos povos – índios, escravos, brancos desgarrados — dispersos em aldeamentos perdidos na vastidão de terras ignotas. É fora de dúvida que seria desconhecido o sentimento de nacionalidade, na ausência de nação, ou de pátria, na ausência mesmo de país: o Brasil, de fato, não existia. Passada a refrega, a província retornava ao status quo ante, reavivadas as contradições impostas pelo sistema que dividia a gente entre uns poucos senhores e uma multidão de escravos, arrancados de sua terra, separados entre si pela diversidade de etnias, línguas e culturas, índios de variados estágios de cultura, expulsos de suas aldeias, servos, camponeses sem salário agregados à terra e subordinados ao poder do latifúndio. É difícil de crer num comum sentimento de pertencimento entre senhores e escravos, entre proprietários e servos da terra.
A Colônia, explorada pela metrópole, abrigava uma burguesia mercantil que por seu turno explorava o trabalho compulsório de escravos africanos, de índios escravizados e trabalhadores brancos servilizados, a mão de obra que chega ao final do Império. Na República de “trabalhadores livres” seus sucessores serão os trabalhadores rurais, os camponeses sem terra, sem teto e sem salário, os “boias-frias”, de existência sub-humana, e proibidos de se organizarem.
A nação anda, cria ou descobre uma identidade e passa a vive-la; essa identidade é seu amálgama. A nação se forma e se aglutina em função dessa identidade que, ao mesmo tempo, é produto de sua história. Discutiremos os conceitos de nação e nacionalidade mais adiante. Por enquanto digamos que a nação é um ente histórico; como a tradição, se faz com lembranças, invenções e esquecimentos.
Na colônia e no império o povo-nação, o brasileiro que não conta politicamente, o brasileiro produtor, é o que Darcy Ribeiro chamará de “implante ultramarino da expansão europeia” porque “não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país, ou importa”[4]. Recrutada quer dizer caçada a ferro e fogo para ser escravizada, quando não dizimada pela ferocidade dos bandeirantes, pioneiros no etnocídio dos nativos da terra.
O que a historiografia chamaria de povo-nação surge da concentração da força de trabalho escrava, apresada mediante o massacre sem termo de populações indígenas e na condenação dos povos afrodescendentes à pobreza, e ao apartheid social.
Esses são os elementos a partir dos quais me arrisco a pensar a sociedade brasileira. Comecemos, pois, com uma brevíssima visita à nossa formação.
Linhas gerais da formação do Brasil
Surgimos para o mundo já com escritura de posse e atestado de batismo, como território aberto, remanso das grandes navegações, visitado por piratas e explorado por esquadras de quase todos as potências da Europa que contava. Qual as feitorias portuguesas aqui na América e na África, tanto quanto na Europa, nascemos como espaço de vassalagem. Não havia propósito de colonização, empresa a que não podia ousar um império decadente. A expectativa – naquela altura uma empresa nada fácil–, era conservar a soberania com a posse, motivo de disputas antes mesmo da invasão. Sem povo e muito menos nação, engatinhávamos como espaço de exploração predatória.
Nascemos assim como território aberto, constelação de feitorias nominalmente sob o império de uma colônia; Portugal vivia entre a Idade Média e os tempos modernos, vencidos os tempos das grandes navegações e conquistas, transitava do domínio espanhol para o inglês.
O que era então a presença portuguesa no solo americano? Economia extrativista e predatória, voltada à coleta, limitada a atividade agrícola à produção de subsistência até o início da lavoura de cana e da indústria do açúcar, fundada no escravismo negro e no genocídio de índios silvícolas desgarrados e campineiros resistentes à escravidão e à rapinagem de suas terras. Economia voltada para fora, não guardava relação consigo mesma, com o “país” que nascia antes de ter povo. Começamos exportando pau-brasil para a Europa a fim de se transformar em tinta… Depois passamos para a lavoura da cana… para exportar açúcar para a Europa. Plantamos algodão para exportar em pluma e importar tecidos. Ingressamos na mineração. Para com seu produto construir fábricas? Hospitais? Não! Para enviar para a Europa, essencialmente Inglaterra e França via Lisboa, o entreposto que nos cobrava pesados encargos. Nossas exportações financiaram o mercantilismo inglês e construíram igrejas em Portugal. A vida que contava politicamente e onde o dinheiro circulava até o século XVIII era a vida do litoral, onde reinavam os comerciantes que exportavam matérias-primas in natura (madeira, peles, mais tarde algodão e café) e açúcar e importavam tudo (tecidos, calçados, manteiga e queijo da Holanda, seda chinesa e, até, água mineral); era um comércio dominado por traficantes de negros e contrabandistas de toda ordem, mercadores que financiavam a lavoura e o tráfico, todos associados ao poder da terra, controlada por brancos latifundiários, brasileiros e portugueses cujos corações e mentes estavam na Europa, na praia, à espera dos paquetes que traziam as notícias do mundo, com que sonhavam, e as mercadorias que alimentavam um consumismo faustoso e iníquo[5]. Com as mercadorias, importávamos valores, ideias e culturas.
A dependência econômica, ver-se-á, levará à dependência ideológica que formatará o pensamento brasileiro e, no extremo, a alienação e o sentimento de inferioridade diante do estrangeiro, seus produtos e seus valores. É na academia dos desenvolvidos que se vão formar nossos oficiais, nossos mestres e nossos doutores. Escrevendo sobre o Brasil do século XX, Celso Furtado põe de manifesto a construção do pensamento alienado como consequência da dependência econômica:
“Constituindo a economia brasileira uma dependência dos centros industriais, dificilmente se podia evitar a tendência a “interpretar”, por analogia com o que ocorria na Europa, os problemas econômicos do país. A ciência econômica europeia penetrava através das escolas de direito e tendia a transformar em um ‘corpo de doutrina’, que se aceitava independentemente de qualquer tentativa de confronto com a realidade. Ali onde a realidade se distanciava do mundo ideal da doutrina, supunha-se que tinha início a patologia social”[6].
Constituiu o mercado interno sempre um objetivo secundário, até pelo menos o surto do ouro, como secundária, ou nenhuma, era a vida política. Não havia intermediação. Referindo-se ao país que conhecera nos primeiros anos do século XIX, Lindley, o arguto aventureiro inglês[7], observava a alienação de nossa gente: “Só conhece os fatos mais notórios, como, talvez, os relativos à paz e à guerra”[8].
Este, o país que caminhava para a independência política.
A formação de mão-de-obra não se impunha, pois o corte da cana ou a extração da pele dos animais ou a derrubada de florestas não requeriam nem técnica nem especialização. O cultivo da terra era encargo do negro escravizado. O pouco de arte que o engenho requeria era suprido por portugueses trazidos da ilha da Madeira, onde os portugueses haviam iniciado a indústria do açúcar.
Mesmo o vernáculo não se fazia mister cultivar; bastava o francês como língua dos salões ou o inglês para a correspondência comercial, servindo o latim dos padres como língua sagrada, mediante a qual o senhor da terra e dos negócios falava com Deus. Dentro da casa-grande, via-se a língua portuguesa relegada a tarefas menores, misturada desde a roça aos falares africanos e desde a cozinha ao tupi, então majoritário, das índias escravizadas[9]. O português só se fez idioma nacional no século XIX, e para tanto contribuiu a chegada da família real com sua coorte e seus burocratas.
A organização do Estado brasileiro teve precedência sobre a sociedade e quase só resulta do transplante apressado de índole e necessidade passageiras, um acidente histórico (a aproximação das tropas de Junot e os reclamos da estratégia inglesa, que a tudo presidiu) que impedira a permanência da corte em Lisboa.
Assim a colônia, voltada para o interesse reinol, foi promovida a Estado independente – assinalando a emergência precoce de um sistema político que se antecipava à formação nacional e sobre essa experiência construímos, obra de meia dúzia de ilustrados, uma monarquia que intentava importar o modelo inglês de governo, embora nascesse já sob uma ditadura de feição militar, como será o regime inaugurado pela Independência[10]: uma transação toma o lugar da revolução (sempre adiada), acomodando o liberalismo de índole jacobina e o absolutismo dominante na metrópole, deixando com este a função de organizar o país, de cima para baixo, como será sua história toda[11] e de quebra afasta os espectros republicanos e autonomistas e antioligarcas da América hispânica que tanto habitavam os pesadelos de portugueses e brasileiros senhores da terra e do comércio. A independência da província, como veremos adiante, é obra a que não faltou a contribuição da metrópole, e assim tivemos uma independência formal, monárquica e lusitana, que conservou o caráter colonial e escravagista[12].
Surge o Estado nacional dependente
O Estado nacional inaugura o que Darcy Ribeiro identificará como uma nova forma de organização socioeconômica “fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial”[13], que, como já vimos, pervade todo o Império e chega à República como um anacronismo que, todavia, nela se incrusta como craca. O trânsito da estrutura colonial para a estrutura nacional fez-se sem rompimento com os vínculos da dependência, conservando-se o mando do latifúndio e a preeminência dos interesses forâneos, portugueses e ingleses, aqueles sotopostos por estes. A monarquia absolutista foi o preço da Independência, gritada pelo príncipe português que seria nosso primeiro imperador instaurando a primeira ditadura. A nação não fala em 1822, nem em 1823, castrada pelo príncipe com a dissolução da Constituinte e a outorga da Constituição de 1824; e recastrada no golpe da Abdicação de 1831. O conceito de soberania popular não constava do ideário de nossos fundadores.
Uma economia voltada para fora
Joaquim Nabuco denuncia o regime econômico do Império, dependente do mercado externo, dominado por “uma classe privilegiada de proprietários”:
“[…] Com efeito, senhores, o Brasil é uma nação que importa tudo: a carne-seca e o milho do Rio da Prata, o arroz da Índia, o bacalhau da Noruega, o azeite de Portugal, o trigo de Baltimore, a manteiga da França, as velas da Alemanha, os tecidos de Manchester, e tudo o mais, exceto exclusivamente os gêneros de imediata deterioração. A importação representa assim as necessidades materiais da população toda, ao passo que a exportação representa, como já vimos, o trabalho apenas de uma classe”[14].
Fora do monopólio da terra, e da produção voltada para a exportação, sobrevivia a economia de subsistência. Quando se dá o início do processo de interiorização do povoamento (século XVII) – num contínuo que não cessa e chega aos nossos dias – tão bem descrito por Capistrano de Abreu[15], construindo os sertões, com a lavoura e o pastoreio. São os sertanejos, os caboclos, os crioulos, os caipiras, os gaúchos das campinas aos quais vão se juntar os imigrantes, maiormente europeus, árabes e japoneses. Surgem os povoamentos que, após a expansão, vão assegurar a integridade territorial, mas não formam concorrentes ao poder dominante, econômico e político, concentrado na Corte e nas sedes das províncias, Pernambuco, Minas, Bahia e Rio de Janeiro. Na Colônia e no Império, e de certa forma por toda a primeira república, todas as instâncias de poder são ocupadas por representantes da propriedade da terra.
A expansão territorial, a interiorização colonial e a difusão do português como língua geral constituem obra de mamelucos, caboclos, negros e índios escravizados completada pela ação de bandeirantes saídos de São Paulo, mas saídos também da Bahia, de Pernambuco, do Maranhão, do Pará e do Amazonas rumando na direção do Oeste. O atrativo das entradas não era a povoação ou a consciência da conquista territorial, muito menos de sua unidade, mas a caça sem limites ao índio, destinado ao eito e à exportação. A expansão territorial e os núcleos populacionais foram consequências fora de propósito. Segue-se o povoamento do sertão, obra do povo, a que se reporta Capistrano de Abreu. Fomos por muito tempo um arquipélago de pequenos povoados, isolados, estanques, vilarejos espalhados na imensidão do país, sem comércio entre si, uma gente que não se conhecia e não podia ter noção de pertencimento comum. Escravos africanos e índios, mamelucos e brancos pobres, incorporados à empresa colonial. Começava a civilização do gado, demandada pelas exportações de couro cru. Com a técnica do fabrico da carne-seca os cearenses descem no caminho do sul e vão se encontrar com as entradas avançadas, e alimentar os primeiros aldeamentos, abrindo novos caminhos e fixando povoações, e levando o português. Surgem as demais lavouras reclamando mais braços escravos, como o tabaco, o algodão e a pimenta da terra, o cacau e, finalmente, o café que reinará até pelo menos meados do século XX. A descoberta e exploração das minas (nos primeiros decênios do século XVIII)[16] atrai novos contingentes de caboclos, mamelucos e escravos índios e negros, e mesmo muitos portugueses que emigram na expectativa do enriquecimento, incorporando ao processo contínuo de expansão territorial as áreas de Mato Grosso e Minas Gerais. A produção aurífera, como tudo na Colônia, se destina ao mercado externo, até à exaustão. Não havia sociedade nem muito menos a intuição de qualquer caráter nacional ou crença de destino comum; não havia sociedade, mas o caldeirão de gentes que, amalgamando índios das mais diversas nações, africanos das mais diversas linhagens, uma miríade de povos tribais e uma pluralidade de línguas e dialetos, e brancos na sua maioria portugueses, em cinco séculos construiria o que hoje podemos chamar de o povo brasileiro, candidato a ser gente com destino próprio, muito mais que uma população ocupante de um mesmo território.
A integridade do território, conquistada pela aventura e pela cobiça, foi obra de nordestinos, na colônia, e de gaúchos na colônia e no império em guerras que consumiram milhares de vidas.
Em que implica uma economia voltada para fora? O comerciante, o latifundiário, o senhor de engenho no Nordeste e os traficantes de escravos e mercadorias, os grandes estancieiros do Sul, não careciam de um país rico para desenvolverem seus negócios: não careciam de mercado interno para o consumo de seus produtos. Essa elite, ou essa classe dominante, estava, nestes termos, desvinculada dos destinos do país. Preocupava-a a movimentação da bolsa de mercadorias de Londres. Qual seria a classe dominante produzida por essa economia? Meia dúzia de latifundiários, uns poucos comerciantes exportadores/importadores, uma sociedade sem povo e uma classe dominante dependente dos negociantes do mercado internacional que ditavam o que comprar, como comprar e a que preço comprar… Esse é o caráter da casa-grande que chega aos nossos dias descomprometida com o destino do país… ou seja, sem identificação a perseguir, e sem identidade não havia e não há por que pensar em projeto nacional.
Porque ainda hoje o país se move não para prover às necessidades de seu povo, mas para manter o enriquecimento da minoria governante, ontem como hoje de costas para as necessidades do país, a serviço de interesses exógenos.
Na Colônia era o mercado externo quem decidia o que deveríamos importar e o que deveríamos ou poderíamos produzir. Na contemporaneidade, os países da periferia do capitalismo, como o nosso, opção da classe dominante brasileira, estão submetidos à lógica das empresas transacionais. Como observa Celso Furtado, refletindo sobre a sociedade capitalista de nossos dias, o Estado dependente cede seu poder de regular sua própria economia:
“As decisões sobre o que importar e o que produzir localmente, onde completar o processo produtivo, a que mercados internos e externos se dirigir são tomadas no âmbito da empresa [transnacional] que tem sua própria balança de pagamentos externos e se financia onde melhor lhe convém”[17].
Para o autor de Formação econômica do Brasil a subordinação do crescimento econômico à iniciativa das grandes empresas multinacionais, em países ainda em formação, como o Brasil, é a boa receita para a criação de bolsões de miséria e a inviabilização do país como projeto nacional[18]. A dependência, política e econômica, a renúncia a um projeto próprio de soberania e desenvolvimento, porém, foi a opção das classes dominantes brasileiras, desde os primeiros momentos de construção do país. No presente estamos sempre reproduzindo o passado, quando tínhamos todas as condições de construir uma província rica povoada por um povo feliz. Furtado apresenta a disjuntiva a) saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano ou b) se prevalecerão as forças que se empenham em interromper nosso processo histórico de formação de um Estado-nação[19]. Até aqui, essas, as do atraso, são as forças que têm prevalecido, e nada está a indicar sua próxima derrogação.
A feitoria colonial na República
Dramático é o fato de o discurso de Joaquim Nabuco, que pôde ser lido acima, pronunciado ainda na monarquia (1884), ser reproduzido por Rui Barbosa, primeiro ministro da Fazenda da recém fundada República, em seu relatório de 1891. O Brasil, às portas do século XX, era ainda uma feitoria colonial:
“Sem indústrias manufatureiras [o Brasil], é exportador só de produtos da lavoura e matérias primas, que recebe depois, em produtos fabricados, pelo duplo do seu valor. É exportador de moeda, não só porque tem de pagar juros da grande dívida externa e de capitais estrangeiros empregados aqui, como também porque supre as grandes despesas dos nossos compatriotas que vivem na Europa, ou por lá passeiam exibindo sua ociosidade, nenhuma compensação nos vindo desses fatos, porque os estrangeiros não procuram o Brasil para consumir suas rendas; ao contrário, por dolorosa experiência sabemos quanto nos custa o seu capital empregado aqui”[20].
Sem terremotos políticos, bem convivendo com o atraso e a injustiça social, o Brasil, chegaria a 1930: ainda como uma “feitoria” dependente de um só produto de exportação, naquela altura o café em grão, cujos preços artificiais, pagos ao produtor paulista, são financiados pela economia do resto do país. Desde cedo os cafeicultores haviam compreendido a importância de instrumentalizar o poder político em função de seus interesses[21].
A burguesia conservadora
A burguesia – a burguesia comercial, industrial e financeira – emerge desapartada do interesse nacional, ligada aos fornecedores ingleses e aos bancos da City, retardando a revolução que o país espera desde o século XVIII. De gênese revolucionária, no Brasil ela é conservadora, avessa mesmo às reformas (senão aquelas que asseguram que nada mudará), apegada à propriedade da terra, serviçal da ordem. Na origem, foi sócia menor do capitalismo mercantil; na contemporaneidade é sócia menor do capitalismo financeiro internacional. Sua história não está associada a qualquer projeto nacional de reforma e desenvolvimento. Sustentou até 1930 o agrarismo que vinha do império latifundiário, e se levantou em armas (1932) contra o projeto industrialista e modernizante do Estado Novo; desestabilizou o projeto de economia autônoma/nacionalista de Vargas no mandato constitucional (1951-1954), financiou a campanha contra as reformas de base e deu sustentação à subversão militar que decretou o golpe de 1964[22], para, finalmente, financiar a campanha de desconstituição do governo Dilma Rousseff, de que resultou, ainda com sua ajuda, a emergência do regime neoliberal antiindustrialista e antidesenvolvimentista que se segue ao mandato tampão de Michel Temer.
Por todas essas razões, o Brasil contemporâneo não conheceu a contradição empresa nacional x imperialismo, embora com ela sonhassem os comunistas ortodoxos. Por uma razão muito simples: o chamado capital nacional associou-se ao imperialismo através dos grandes bancos e das multinacionais.
O permanente debate entre vocação rural e projeto industrialista reflete de certa maneira essa visão conservadora, atrasada e alienada que leva à opção pela dependência, como está exemplarmente exposta na obra de Eugênio Gudin, um dos epígonos da economia brasileira, mestre do monetarismo e do privatismo[23]. Como explicar a reprimarização radical da economia brasileira, senão lembrando que a casa-grande de hoje, como a de ontem, independe do mercado interno? Ou seja, independe do país, da nação, do desenvolvimento do país, do poder aquisitivo de sua população. Daí, ao contrário de outras burguesias em outros contextos históricos, não se molestar com a pobreza, com a concentração de renda e riqueza, com o desemprego. Interessa-lhe a ordem, a tranquilidade para seus negócios.
Que burguesia nacional é esta que não se incomoda com a miséria, que não combate o atraso, que não se empenha no desenvolvimento do país? Uma burguesia que se apega ao status quo e recusa as reformas sociais.
Se não tivemos uma burguesia progressista, nem moderadamente reformista, disputando o poder com o latifúndio e o atraso, também não tivemos (talvez pagando o preço de uma industrialização retardada) um proletariado revolucionário. As grandes massas operárias urbanas – o contingente que contava politicamente – se revelaram mais sensíveis às reformas trabalhistas e ao protecionismo paternalista do que à ruptura social, com sua miríade de incertezas.
A reprimarização da economia nacional
Por volta dos anos 1950 cerca de 80% da nossa pauta de exportações e do ingresso de dólares derivavam das vendas de café para o exterior; hoje, o agronegócio representa ¼ do PIB nacional e 48% do total das exportações brasileiras em 2020.
Não é de estranhar a destruição da indústria manufatureira, levada a cabo pelo neoliberalismo. A participação da indústria no PIB nacional, que já foi de 35,8% em 1984, caiu para os atuais 11% quando (dados da ONU para 2021) essa participação chega a 43,1% na China, 30,4% na Coreia do Sul, e, para citar um país da Europa desenvolvida, chega a 20,8% na Alemanha[24].
Nossa classe dominante
A economia escravagista, dependente da lavoura, baseada na remessa bruta de produtos — uma ordem estamental, uma ordem fechada, uma ordem dominada pela relação senhor-escravo, sem nenhuma mobilidade social. — produziria uma classe dominante que necessariamente refletiria seu perfil. Não poderia ser diferente o mando da casa-grande.
Somos produto de uma história cruenta, que se registra não apenas nas insurreições, nas rebeliões, nas guerras, nos levantes populares, nas organizações camponesas massacradas pelos donos da terra. Mas que igualmente se alimenta no genocídio de etnias e raças, na repressão à massa indígena, negra, mestiça e cabocla, na moderna naturalização da expropriação do trabalho, na injustiça social, na concentração de renda e no desemprego de camadas crescentes da população.[25]. Na Colônia, no Império, na República o sangue derramado é o do povo insurgente.
É difícil de ver nessa “sociedade”, como o faz José Honório Rodrigues, a “homogeneidade do povo”. Entusiasmado pela miscigenação, esquece-se o grande historiógrafo brasileiro de que a “democracia sexual” se fez tão só mediante a violação da mulher negra ou índia ou cabocla pelo senhor branco, senhor de baraço e cutelo em sociedade que consagrava o direito de pernada. A mulher não branca é reduzida, na colônia e no império ao papel de matriz reprodutora, até o advento da lei do ventre livre (1871). Na República, a filha do “morador” nas fazendas, e nas cidades a “empregadinha”, negra, mulata ou branca são o pasto da aprendizagem sexual do filho da classe dominante. No entanto, José Honório chega mesmo a afirmar que “As diferenças regionais, sociais e raciais – quanto mais escura a pele mais baixa a condição social – não impediram a unidade. Todos se sentem igualmente brasileiros, dos mais modestos aos mais poderosos”[26].
Como uma sociedade racista e preconceituosa, autoritária, na qual o branco pobre e o negro precisam “conhecer o seu lugar”, economia concentradora de bens e riqueza, fundada no latifúndio e na exploração do trabalho humano, no massacre das chamadas classes subalternas, camponeses e trabalhadores, poderia pensar em construir cidadania, sociedade civil ou nação? Quem vai compor a elite produzida por essa sociedade? Os filhos do latifúndio, os filhos dos comerciantes, e dos traficantes dos navios negreiros. É esta a base original da nossa elite, da nossa casa-grande, da nossa ilustração, da nossa burguesia, atrasada, dos nossos dirigentes, dos nossos juízes, dos nossos tribunos, dos nossos generais, para a qual classe dominante era e é preferível um país arcaico, agroexportador e sempre dependente, um povo de analfabetos e mal alimentados a qualquer reforma que minimamente ameaçasse seus privilégios, que radicam na propriedade da terra e no rentismo. O Brasil passa de feitoria a colônia escravagista, faz-se país e Estado e nominalmente separa-se da Coroa, transita de monarquia a república, mas a ordem agrário-oligárquica não se altera e o povo é conservado no seu dia a dia, sem conhecer alterações em suas relações políticas e econômicas. Os comerciantes da praia e os barões feudais são substituídos pelos capitães do mercado financeiro; o escravismo foi abolido e o etnocídio dos silvícolas apenas foi amainado; o país se industrializa, surge o proletariado para ser substituído pelo precariado contemporâneo.
Nossa primeira constituinte, convocada e dissolvida pelo príncipe absolutista, era formada de 23 doutores em direito, sete em cânones, três em medicina, 22 desembargadores, nove clérigos, sete militares. Todos ligados à propriedade da terra. Nenhum bafejado pela soberania popular[27].
O parlamento do primeiro e do segundo impérios, integrados por essa gente, fossem liberais ou conservadores – intelectuais orgânicos da propriedade, militares, padres e magistrados todos –, pois não conheciam diferenciações ideológicas e se confundiam os dois partidos como advogados da ordem e da propriedade, notabilizou-se por impedir reformas, senão as epidérmicas, aquelas que são feitas para que nada mude mesmo. Eram admitidas reformas jurídicas, como no lento processo da abolição da escravatura, esperando que o fim do regime escabroso se desse naturalmente com a morte dos escravos; muito podia ser objeto de conciliação, menos mexer nos privilégios dos senhores da terra e seus procuradores. Era possível discutir todas as reformas menos aquela que mexesse na fonte do poder, a propriedade privada.
Assim ainda hoje.
Cabe lembrar que entre nós, nos anos 1962, 1963 e 1964 chegou a constituir grave ameaça à segurança nacional o pleito das “reformas de base”, reformas de estrito caráter burguês-capitalista, perfunctórias, de superfície, que a burguesia havia levado a cabo na Europa e nos EUA em séculos passados, como a reforma agrária, a mais exprobada de todas, ainda hoje irrealizada e demonizada, defendida por José Bonifácio no início do primeiro reinado, e por Joaquim Nabuco no segundo império. Pois a defesa de reformas de base (agrária, tributária, bancária, urbana, educacional, eleitoral) levou no Brasil à deposição de um presidente da República e à implantação de uma ditadura de 21 anos.
O Brasil continua não sendo contemporâneo.
A burguesia brasileira é contrarrevolucionária, e tem na corporação militar seu braço armado, o grande partido da ordem, cujo papel tem sido o de mantenedor do statu quo, a serviço da classe dominante e de seus interesses que hoje se vinculam aos interesses do grande capital internacional. Cumpre-lhe impedir o nascimento do novo.
Nossa independência, cujo bicentenário se registra, prenuncia um aspecto do caráter nacional: a composição, a conciliação, a concordata, a traficância. Sem revolução de libertação nacional e sem libertadores, rompemos nominalmente com o Reino, sem havermos nos apartado do sistema colonial; nos separamos das Cortes de Lisboa e negociamos essa independência consentida e tutelada com a Inglaterra e nos transformamos em pasto do colonialismo inglês.
Ou seja, rompemos com a Colônia mas nos mantivemos no sistema colonial. Essa foi a segunda grande tragédia porque já nasce conosco uma Monarquia atrasada que mantém o país, como na Colônia, empresa agroexportadora de produtos tropicais demandados ela Europa, dependente do latifúndio, dependente escravismo que ela vai sustentar até 1888, quando, na observação de Darcy Ribeiro, “as classes dominantes reestruturam eficazmente seu sistema de recrutamento da força de trabalho, substituindo a mão-de-obra escrava por imigrantes importados da Europa, cuja população se tornara excedente e exportável a baixo preço”[28], e que aqui será vilmente explorada.[29] Com os libertos sem trabalho e camponeses sem terra construindo um extraordinário “exército de reserva”. O que preside a manutenção do statu quo? Éramos uma monarquia imune a qualquer política de modernização, que obstaculizava mesmo a industrialização do país… Se fizemos a independência sem romper com o colonialismo, chegamos à república reproduzindo o estamento, a base econômica do império; permanecemos economia rural, latifundiária, exportadora de produtos primários. O país viveu todas as experiências possíveis, insurreições, revoluções, independência, golpes de estado de toda sorte, abolição da escravatura, ditaduras militares, renúncias e suicídio de presidentes da república, conhecemos mesmo espasmos de franca democracia… mas nada alteraria o caráter e a composição do poder. Ele é inabalável, inatingível por aquelas intempéries que em outras civilizações destruíram a ordem dominante. Entre nós, a revolução, como proclamava Antônio Carlos Ribeiro de Andrada[30], líder de 1930, deveria ser feita pelos governadores antes que o povo a fizesse, e não era distinto o discurso de Getúlio Vargas [31]. Este é desde sempre o estratagema da classe dominante: proceder às reformas políticas e jurídicas necessárias para evitar a ruptura do establisment. Ou seja, no Brasil, as revoluções são preventivas: políticas para evitar a revolução social. O papel que a defesa da terra desempenhara no Império, unificando ideologicamente liberais e conservadores, na República será exercido pelo receio das mudanças, reunindo no mesmo redil “revolucionários” (assim definidos os que se erguiam contra o poder central) e conservadores.
Porque o povo brasileiro é um exilado da história, escrita pelos condes e pelos cônegos, pelos duques e pelos marqueses, pelos barões, pelos conselheiros, pelos doutores, pelos marechais, brigadeiros e almirantes, pelos generais e pelos coronéis, pelos procuradores dos fazendeiros, pelos empresários, pelos comerciantes, pelo banqueiros e pelos rentistas: de fora, excedente, o povo-massa.
A insurgência dos subalternos
As transformações sociais e políticas não resultam do movimento popular, de ações que se desenvolvem de baixo para cima, comandadas pelas forças populares, pois se resolvem sempre “através de uma conciliação entre os representantes dos grupos opositores economicamente dominantes”[32]. São as “reformas pelo alto”, levadas a cabo pela classe dominante, para preservar o mando: esta é nossa história que tem o povo como o grande ausente. O liberalismo da classe dominante admite algumas concessões, como, por exemplo, a democracia representativa sob controle, desde que não enseje a emergência das massas. Sempre que essa ocorre, a estabilidade institucional é quebrada pela intervenção das forças armadas, em nome da ordem. Como tal entenda-se o congelamento do processo social, e, de regra, a retomada do regime autoritário, quando não da ditadura franca. Em seu pluralismo ideológico a direita pode dar-se ao luxo de divergir sobre o formal e epidérmico, para ser rigorosa na unidade substancial: em impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem, façam política[33].
Exemplo recente de resistência popular, a defesa da legalidade em 1961, teve seu fecho no golpe do parlamentarismo, negociado por generais sediciosos com a cúpula do Congresso Nacional. Enquanto o povo nas ruas – certamente no mais significativo exemplo de mobilização de massas na República – clamava pelas eleições diretas para presidente, o Congresso Nacional derrotava a emenda Dante de Oliveira, que as restabelecia, e impunha a eleição por um colégio eleitoral, contra a expressa manifestação da vontade popular.
Sob a proteção do debate nacional e a mobilização da opinião pública que sustentava a constituinte de 1987, longe do plenário e das comissões, generais e constituintes negociaram a redação do atual art. 142 da ‘constituição cidadã’, graças ao qual os militares alegam pretensa legitimidade para intervir na vida nacional, para a defesa “da lei e da ordem”.
O povo frequentemente se insurge, é verdade; mas raramente consegue ser agente de modificações e jamais conseguiu alterar a natureza do mando secular. A história registra um sem número de irrupções e insurgências, desde a Colônia, e marcando o Império e a República. Todas derrotadas pela ferocidade repressiva do Estado; a última talvez tenha sido o massacre dos camponeses de Canudos, imolados pelo exército brasileiro a mando dos latifundiários (sempre a propriedade da terra!) da Bahia, sob as bênçãos dos bispos.
Euclides da Cunha descreve os momentos finais da resistência camponesa, milhares de homens, mulheres, velhos e crianças, lavradores sem terra para plantar, vaqueiros sem gado para pastorear, sem casa para morar, sem saúde, sem escola, miseráveis que da república só conheciam a repressão brutal, cearenses, pernambucanos, potiguares, alagoanos, baianos, nordestinos de todos os rincões tangidos há séculos pelas secas de um semiárido inapropriado para a vida humana, guiados por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Peregrino (como ele se definia) que acenava com terra para plantar e colher, e a paz do Senhor quando chegasse a hora:
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos, uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”[34].
A guerra de Canudos, a rigor, não terminou; permanece na defesa da terra e na repressão aos pobres. É aqui um símbolo da violência das forças armadas quando se trata de lidar com as mais legítimas e puras expressões das formas de luta e organização de nosso povo. O aldeamento foi destruído, sua gente, lavradores humildes, dizimada, porque eram vistos pelos senhores da terra como maus exemplos para a humanidade de sertanejos extorquidos pelo latifúndio improdutivo e vítimas das secas cíclicas que tornavam quase impossível a sobrevivência humana. As forças expedicionárias militares foram reclamadas pelo clero a serviço do latifúndio e desencadearam comando de guerra contra trabalhadores famintos que queriam apenas… trabalhar a terra e dela tirar o seu sustento. O camponês – desnutrido e enfermo para melhor ser subjugado – não tem alternativa; se resiste, é um homem morto, na mão do jagunço ou da polícia ou do exército; se cede, degrada-se, não é mais um homem. Seu destino é a morte de que se morre
“de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia”[35].
A violência é a resposta do sistema sempre que o povo dá mostras de sua capacidade de organização, como na Cabanagem (1835-1840), na revolta dos Muckers (1873-1874) e no Contestado (1912-1913).[36]
A única “revolução” brasileira vitoriosa foi a de 1930, um movimento político que nasce e se consolida de cima para baixo, liderado por três governadores de Estado e levado a cabo por um sem número de oficiais superiores do exército, que, na sua quase unanimidade, se destacariam, a partir de 1945, na defesa do statu quo, na sustentação da ordem capitalista, na resistência a reformas e no comando de golpes de estado e no império de ditaduras. Na verdade, a chamada revolução de 30 nasce de uma dissidência política no seio da classe dominante. Por isso é que pôde ser vitoriosa e manter-se viva enquanto contou com a solidariedade participativa das forças armadas, solidariedade que cessa quando os generais se dão conta dos acenos trabalhistas do ditador já nas horas de declínio do “Estado novo”.
Somos o fruto do nosso passado.
Os temas aqui simplesmente aflorados serão tratados, com a profundidade possível, nos capítulos que este livro reúne, numa tentativa de construir uma síntese crítica de nossa formação histórica, desde o início da ocupação da terra achada, até o golpe de 2016 e suas consequências.
Decidi-me à escrita deste ensaio em momento muito difícil de nosso país e de sua gente, abalada em seus sonhos de desenvolvimento e felicidade: a utopia de novos tempos, aquela que embalara as esperanças de tantas gerações, via-se esmagada por uma realidade madrasta. A expectativa do bom e próximo futuro se desvanecera. Antes de avançar, regredíamos, após tanta luta e tanta dor, tanta conquista e tanta perda, tantos ensaios e tantos fracassos, tantos sacrifícios e tão pouco progresso. Já nos perguntávamos: Por que esta província, uma das mais belas e mais ricas do mundo, promessa de uma nova civilização, não cumpria seu destino, não conseguia fazer feliz seu povo trabalhador e generoso, de quem se amputava o direito ao sonho? Tal era a tristeza que nos traziam os dias de então. Passados 500 anos de esforços e sacrifícios, continuávamos um projeto sem ser, “impedido de sê-lo”; uma vez mais, como se existisse uma maldição histórica, ao invés de avançarmos, recuávamos, retrocedíamos. Eis o que me impôs o esforço por uma reflexão que ajudasse a compreender o que éramos, o que poderíamos ter sido, o que somos, e o que ainda poderíamos ser. Era preciso refugar a sensação de fracasso, e apostar, com fé e racionalismo, que ainda poderemos ser a nova Roma. Por tudo isso este livro foi escrito em homenagem a Darcy Ribeiro. (Rio, setembro de 2021)
* Texto introdutório, sujeito a revisão, de ensaio ainda inédito. O autor agradece as observações de seus colegas professores Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes e Manuel Domingos Neto.
[1] GRAMSCI, Antonio. Cartas. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro. s/d e Cadernos do cárcere. Idem. 2004. v. 1. P. 394..
[2] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil : Rio de Janeiro, José Olympio.1936. p. 122.
[3] O índio chegou a ser, depois do pau-brasil, ou pau de tinta, a principal mercadoria de exportação para a metrópole ao lado de peles de onça, macacos e papagaios falantes. Por enquanto, apenas um enunciado, deixando para mais adiante o estudo da escravização e do etnocídio dos povos nativos.
[4] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: São Paulo. Círculo do livro. S/d. Pp 20 e 22
[5] LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil: Cia Editora Nacional. São Paulo. 1969. p. 190, referindo-se à “praça do mercado” em Salvador (1803) destaca a venda, em meio a frutas nativas, de “deliciosas laranjas doces de procedência europeia e laranjas da China” ao lado de ananás trazidos da Espanha.
[6] FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil: São Paulo. 2009. Companhia das Letras. p 236.
[7] LINDLEY, Thomas. Ob. Cit. P. 76.
[8] Idem. P. 76
[9] CF. HOUAISS, Antônio. A crise de nossa língua de cultura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1983. P. 33.
[10] A propósito, observa Paulo Bonavides: “Na verdade, o Primeiro Reinado foi nossa primeira ditadura militar (…) encabeçada, aliás, por quem não terçara armas nem vestia uniforme. Do golpe-de-Estado contra o colégio constituinte de 1823 à Abdicação, transcorreu uma fase de evidente hegemonia militar, fase a que presidiu o primeiro Pedro(…)”.
[11] Cf. BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Textos políticos da história do Brasil. Brasília. Conselho Editorial do Senado Federal. 3ª.Ed. Vol. I. p 221
[12] Observa GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo. Editora Ática. 1978. Observa: “A conquista da independência política não suprime o escravismo e este permaneceu tão colonial quanto o era ao tempo da subordinação estatal à metrópole portuguesa. Precisamente o Brasil imperial proporcionou o exemplo de um Estado independente com um modo de produção escravista colonial” (p. 170).
[13] Ob. Cit. p. 19
[14] NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo. Instituto Progresso Editorial S.A. S/d. p. 229
[15] CAPISTRANO DE ABREU, João. O descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI. Rio de Janeiro. Tip. De G. Leuzinger. 1883
[16] Distanciando-se de seus principais antecessores, como Capistrano de Abreu e Caio Prado Jr., que, respectivamente, privilegiavam a criação de gado no Vale do São Francisco e a lavoura do café, Celso Furtado via na economia do ouro o fator decisivo na formação nacional (Cf. Ob. Cit. Pp 133 e segs.). No Diálogos das grandezas do Brasil (São Paulo. 1977. Edições Melhoramentos-MEC) Brandônio se refere à descoberta de minas de ouro na capitania de São Paulo. O texto, consabidamente de autor desconhecido, é 1618. Uma boa fonte para o estudo desse período é BOXER, C. R. A Idade do Ouro do Brasil (1695-1750). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963
[17] In Brasil, a construção interrompida. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 2ª.Ed.1992. p. 32
[18] Idem. Ibidem. p. 35
[19] Idem. Ibidem.
[20] Apud RODRIGUES, José Honório. Rio de Janeiro. Conciliação e reforma no Brasil. Editora Civilização Brasileira, 1965. P 75
[21] FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo. Livraria Martins Editora. 1942. Pp. 183
[22] Nesse sentido depõe um dos principais articuladores do golpe, o general Cordeiro de Farias. Cf. CAMARGO, Aspásia&GÓES, Walder de. In Diálogo com Cordeiro de Farias. Ed. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1981. P 552
[23] O pensamento de Eugênio Gudin. Editora da Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 1978
[24] Cf. BELLLUZO, Luiz Gonzaga. “A Ford e a desindustrialização”, in Carta Capital. 27 de janeiro de 2021. P. 32
[25] “Nos tempos coloniais – observa José de Souza Martins (“Nossa cultura genocida”. Apud Valor. Eu e fim de semana.29/1/21) — nas estatísticas oficiais e nas definições da diversidade dos brasileiros da época, se vê claramente a dúvida dos escrivães na classificação da população da colônia, em relação a quem era gente ou não era. Seres de escravidão ou de servidão, suas vidas eram consideradas provisórias, limitadas à utilidade do servir e a no servir esgotar-se. As diferenças sociais indicavam diferenças na possibilidade de viver: os que viveriam tudo que tinham direito, e os que viveriam apenas o que as condições lhes permitissem”.
[26] Ob. Cit. p.122
[27] BONAVIDES, Paulo & AMARAL, Roberto. Ob. Cit. p 52
[28] Ob. Cit. P. 221. GORENDER, ob. Cit. P566, lembra que a Europa, na crista do avanço do capitalismo, “criava uma superpopulação desocupada e miserável cujo excesso inassimilável os próprios governos europeus tinham interesse em expelir”. Outro atrativo era o sonho imperial do “embranquecimento da raça”.
[29] A exploração dos colonos, conhecidos como “escravos brancos”, que chegaram mesmo a ser vendidos pelos fazendeiros, ficou timbrada de parceria, um arranjo jurídico que “atava os colonos à obrigação de servir durante cinco anos, prazo que podia prolongar-se indefinidamente em consequência do endividamento cumulativo”. CF. GORENDER. Idem. P 566 e segs.
[30] “Façamos a revolução antes que o povo a faça”. Muitos anos passados, o deputado Ulisses Guimarães, presidente e líder da Constituinte de 1988, declararia: “Ou mudamos ou seremos mudados” (Discurso na instalação da legislatura de 1991-1995)
[31] Em carta a João Neves da Fontoura (13 de setembro de 1929), Vargas escrevia “Penso que não é lícito lançarmos o país numa revolução, sacrificarmos milhares de vidas, arruinar e empobrecer o Estado, só para combater um homem, que atualmente nos desafia e que é o presidente da República. Se formos vencidos, ele ainda será glorificado, com o título de restaurador da ordem e reconsolidador do regime. Não é possível ensanguentar o Brasil, por causa desse homem.” No dia 3 de outubro de 1930, horas antes de deixar o Palácio Piratini para comandar o levante, inicia a primeira anotação de seu Diário (1930-1942), reduzindo a revolução a um irresponsável salto nas trevas: “Que nos reservará o futuro incerto neste lance aventureiro?”. Cf. VARGAS, Getúlio. Diário. Rio de Janeiro. 1995.Siciliano/FGV. P3