“O homem é o nome póstero.”
Joaquim Nabuco
Admirados desde sempre, somente fomos com eles conviver mais assiduamente –-com Evaristinho e Evandro—- quando nos encontramos, os quatro, na tarefa solitária e então quase quixotesca, estávamos nos idos de 1985, de reconstrução do Partido Socialista Brasileiro. Pois foi no escritório de Evandro, na avenida Rio Branco, que realizamos nossas primeiras reuniões; foi no anexo do escritório de Evaristo, na rua México, que nosso partido teve sua primeira sede.
E por que Evandro Lins e Silva neste texto de homenagem a Antonio Evaristo de Morais?
Evandro foi discípulo de Evaristo de Morais, pai, e mestre de Evaristinho no magistério comum. Juntos, com suas biografias, militantes da liberdade, escreveram, na vida forense, a pedagogia do dever do advogado, ensinado por Rui no antológico texto, provocado por Evaristo de Morais. Chamado a defender acusado já previamente condenado pela opinião pública, demais de seu adversário político, o advogado Evaristo de Morais socorre-se de seu mestre e chefe político, Rui Barbosa, e pergunta como deveria proceder. A resposta de Rui – um de seus muitos textos imortais— transformou-se na tábua dos deveres do advogado, antes e sobre nosso Código de Ética.
E neste momento em que ensaiamos estas linhas, abril de 2000, mestre Evandro está em Vitória, no Tribunal do Júri, liderando a defesa do militante político José Rainha, acusado de crime de homicídio por haver combatido o crime do latifúndio, que mata crianças e constrói a fome que assola nosso país. Antes, pouco antes de sua morte, sempre prematura, e já doente, só saberíamos depois (e não é possível ignorar essa revelação de sua grandeza moral, de um homem que nem com o sofrimento quis magoar os seus amigos), Evaristinho assumira a defesa do ex-Presidente Fernando Collor de Melo flagrado em uma série de crimes contra a União e o Erário, num caso em que a justa comoção da sociedade podia lembrar as circunstâncias do julgamento de Mendes Tavares, cercado da “ferocíssima manifestação dos sentimentos excitados da ocasião[1]”. O clamor da opinião pública, que já condenara o Presidente traidor de sua confiança, não podia impedir que Evaristinho cumprisse com o seu dever de advogado, assegurando, em defesa da sociedade civilizada, que o acusado tivesse ouvida “a voz de seus direitos legais”, voz que não pode silenciar, jamais, principalmente quando a paixão pública ameaça impor a expiação do direito.
Não temeu a impopularidade nem a eventual incompreensão de seu gesto. Era e foi sempre um bravo, bravo sem alarde, culto sem pedantaria, diligente, dedicado às suas causas e aos seus clientes, altivo sem ser prepotente.
Como um nômade que caminha por amor da jornada, a jornada de Evaristo era o direito, o direito criminal, era a defesa da liberdade, era o júri, era o homem.
Seu pai vivera essa experiência em inumeráveis oportunidades, a mais exemplar das quais foi certamente a defesa de José Mendes Tavares[2].
Cabia agora a Evaristinho, numa história que quase se repetia, seguir o conselho de Rui: “Quando se me impõe a solução de um caso jurídico ou moral, não me detenho em sondar a direção das correntes que me cercam: volto-me para dentro de mim mesmo, e dou livremente a minha opinião, agrade, ou desagrade a minorias, ou maiorias”[3].
Na tribuna adversária estava Evandro. Afastado da lide forense, a ela voltava no julgamento político do Presidente, porque, pelas mesmas razões, não poderia fugir do requerimento da Nação, que pedia sua voz acusadora.
Advogado criminalista, o mais notável dos sucessores de Evandro, Evaristinho se viu permanentemente confrontado, como foi no caso Collor, com restrições de ordem ética e restrições de ordem política, muitos, mas só aqueles que desconhecem o dever do advogado, questionando causas que patrocinava e direitos que defendia. Nenhum advogado foi tão julgado. Na defesa de Collor, à restrição ética –-tratava-se de um Presidente irrecusavelmente vinculado a um processo de corrupção que contaminara a República— somava-se a dúvida política. O Presidente era notório quadro da direita, e seu patrono um homem de esquerda, filiado ao Partido Socialista Brasileiro. Membro de nossa Executiva Nacional nos períodos mais difíceis, aqueles da refundação, por sucessivos anos titular destacado de nosso Diretório Nacional, por nossas mãos tivera seu nome indicado para ocupar a vice-presidência na chapa encabeçada por Luiz Inácio Lula da Silva na memorável campanha política de 1989. Não fôra candidato porque recusara o convite, afinal aceito pelo senador José Paulo Bisol, que viria a ser, mais tarde, figura destacada, como representante de nosso partido, na CPI que terminou levando ao julgamento político do Presidente.
Evaristinho optara pela cátedra de advogado, fazendo da defesa o seu apostolado.
Recorrente, a história parece rescrever o episódio de seu pai. Prócer eminente da campanha civilista de 1910, derrotada pela eleição de Hermes da Fonseca, já no ano seguinte Evaristo de Morais iria defender um dos mais destacados representantes do hermismo e do militarismo positivista de Pinheiro Machado.
Advogado, e advogado dos mais capazes, dos mais conscientes de seus deveres cívicos, Evaristinho envidava todo o seu esforço, empregava toda a sua competência, valia-se de todos os recursos de sua eloquência inexcedível para defender o mandato do Presidente Collor que, na campanha de 1989, tudo fizera, como militante, para derrotar.
Juntos, advogado de defesa e advogado da sociedade, lá estavam Evaristo e Evandro, e ambos nos diziam que o país civilizado não pode suprimir do cidadão a voz dos seus direitos legais. A voz das ruas, que clamava por punição, não podia esmagar a voz do advogado que requeria plena e completa defesa para que o direito se fizesse.
O Partido tudo envidou, mobilizando todas as suas forças, visando ao impeachment. Atuou com denodo na Comissão Parlamentar de Inquérito, através de Bisol e de Jamil Haddad. Mas jamais reprovou Evaristo pelo patrocínio da causa impopular. A lição de Rui também conhecíamos: “Os partidos transpõem a órbita da sua legítima ação, toda a vez que invadem a esfera da consciência profissional, e pretendam contrariar a expressão do Direito”[4].
Anos passados, Evandro lecionaria na memorável conferência de Fortaleza:
“Não cabe ao advogado criminal, como se fôra juiz, fazer o julgamento do ato de quem o procura, em transe delicado de sua vida, abrindo-lhe a alma e o coração, e muito menos trair a confiança nele depositada. Não é esse o seu papel dentro de nosso ordenamento jurídico-institucional, nem do ponto de vista humano. A avaliação que fizer é para uso próprio, ou seja, para nortear sua própria conduta na estratégia da defesa que vai conduzir dali por diante.
“Solidário com a dor e a desgraça do cliente, mesmo nas situações mais infelizes, dramáticas e deploráveis, isso não quer dizer, porém, que o advogado esteja solidário com o crime porventura cometido. Ele conhece os princípios de deontologia da profissão, tem deveres de consciência para consigo mesmo e tem compromissos de cidadão para com a sociedade. Ele sabe os limites e os parâmetros de sua ação profissional”[5].
Essas linhas querem registrar um dos atributos de Evaristo: o desassombro, pois sempre foi, na sua cátedra de advogado, destemido sem arrogância, diligente sem precipitação. Jamais cortejou a simpatia dos meios de comunicação, e deles foi um crítico, um corajoso crítico, denunciando, em conferências e artigos, o papel manipulador da opinião pública exercido pela imprensa, garroteando a verdade, induzindo condenações, impondo penas, julgando sem ensejar a defesa, condenando sem apelação.
Bravura inexcedível do advogado de perseguidos políticos. Ninguém como ele lutou tanto e tão bem contra o autoritarismo militar-fascistóide que nos atingiu depois do golpe de 1964 arrostando contra a autoridade arbitrária, enfrentando as permanentes violações de direito, o desrespeito aos direitos individuais, aos direitos civis, aos direitos políticos, à tradição do direito constitucional brasileiro, o direito das gentes, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, liderando um corpo de advogados destemidos e abnegados, como Eni Moreira, Augusto Sussekind, Beto Rubião, Modesto da Silveira, Heleno Fragoso, George Tavares, Técio Lins e Silva, Oswaldo Mendonça, Antonio Carlos Barandier, Alcione Barreto, Nilo Batista e Rosa Cardoso. Patrono de todos, o mestre e paradigma de todos: Sobral Pinto.
Evaristinho jamais temeu a japona quando se tratava de preservar a liberdade. E, naqueles idos, um tempo terrível que precisa ser lembrado sempre para jamais ser repetido, não se tratava apenas de restaurar a liberdade ameaçada: tratava-se de garantir a vida ameaçada, a integridade física ameaçada, a violência física e moral da tortura, permanente, banalizada. E fazer tudo isso sob a ameaça de tudo, porque também o advogado era vítima da mesma violência institucionalizada nos porões infectos da ditadura.
Na história da resistência a categoria guarda, honrada, as humilhações a que foram submetidos tantos advogados de presos políticos, mas guarda principalmente as ofensas físicas e morais a que foram submetidos Heleno Fragoso, George Tavares e Augusto Sussekind.
Evaristo viveu sempre na proa da vida.
O tempo decantará obra e vida, sua extraordinária personalidade de tribuno e cientista, de jurista e paladino do júri, de professor universitário e militante político, agitador social na melhor tradição paterna, atento à denúncia das desigualdades de classe separando os homens entre poderosos e excluídos.
Sua vida, é sua obra. Sua obra é sua vida dedicada à liberdade. Neste norte se fundem, irmãos siameses, o militante socialista e o advogado da liberdade.
II
Se o virus politique a que se referia Aron,[6] que em Evaristinho era herança, não havia sido suficiente para levá-lo a integrar a chapa presidencial ao lado de Lula, representando seu partido na Frente Brasil Popular, já determinara seu engajamento de toda a vida. De fato, ao lado de Evandro Lins e Silva e Antônio Houaiss, figuras tutelares do socialismo e de nosso Partido, ocupara-se Evaristo, como intelectual engajado na melhor tradição sartreana, na militância política, militância que confundia a política com o ofício de advogado, a cátedra na Universidade, a cátedra na OAB, a cátedra no IAB, e fundamentalmente o magistério, que era sua prática profissional, constituindo lição permanente, diária, e permanentemente renovada na dedicação às causas que patrocinava. Desse magistério muito se alimentaram sucessivas gerações de alunos e jovens advogados. Político desde sempre, e porque político e de esquerda advogado criminal, porque socialista dedicado à defesa e à defesa da liberdade, das liberdades individuais e das liberdades coletivas, Evaristinho havia compreendido, e nesse entendimento tivera seu pai como mestre, que, mais importante do que pensar o direito, é fazer o direito, realizá-lo, em defesa dos pobres, dos desvalidos, dos excluídos, dos perseguidos. E em nosso pais não há direito que mais expresse a sociedade de classes, com o cortejo de suas injustiças inafastáveis, senão o direito penal. Cedo, com Florestan Fernandes, e outra vez seguindo sendas abertas por seu pai, compreendera que mais importante do que entender o mundo, é transformá-lo. E, tão grave é a exploração do homem pelo homem, em nosso país, que o intelectual não pode ser um contemplativo: o pensador há de ser ao mesmo tempo um homem de ação, o jurista e o catedrático é o advogado militante, o advogado é um político, e o bom político é o militante socialista. O mundo precisa ser compreendido ao mesmo tempo em que nele intervimos para modificá-lo, a história precisa ser vivida no mesmo momento em que a estamos pensando, as idéias precisam ser postas em prática já enquanto estão sendo formuladas. Nesse sentido, soube encarnar o papel do intelectual militante, engajado e comprometido, irrecuperavelmente em conflito com os interesses de sua origem de classe, comprometido com as massas de excluídos de quem tudo foi retirado, a começar pelo direito de aspirar à justiça.
Fiel aos seus compromissos como intelectual e socialista, priorizou a banca de advogado, o embate diário, honrando sua categoria, mas soube fazê-lo sem abandonar a cátedra, sem abandonar a academia, sem renunciar à contribuição científica de que é exemplo sua participação na XVI Conferência Nacional dos Advogados, em Fortaleza, em 1996, a última de quantas abrilhantou[7].
Naquela Conferência, Evaristo profligou a tendência de um certo direito criminal, promotorial, penalista, que, impulsionado pelos escândalos da impunidade e pelo sensacionalismo de uma certa imprensa, simplista e simplória, pretende resolver o conflito social que está na raiz do regime e alimentador do crime impondo novas tipologias para assegurar novas penas crescentemente mais graves, e todas elas cerceadoras da liberdade. Como se o crime não tivesse raiz na organização social, e na pobreza, na punição tão só de pobres e negros, pobres porque negros, e na impunidade dos ricos e poderosos.
De novo a recorrência histórica.
Evaristo, pai, amigo de Ingenieros, fundador do Boletim Criminal Brasileiro, foi, como todos sabemos, o introdutor, em nosso país, das lições de Ferri, e da escola positiva do direito penal. Coube-lhe o patrocínio e o prefácio da primeira edição brasileira do Dos delitos e das penas (a primeira edição italiana é de 1764). Escrevendo no início dos anos 30, destaca o ainda hoje atualíssimo trecho do clássico de Cesare Bonesana:
“Quanto mais se estender a esfera dos crimes, serão eles cometidos em maior número, porque sempre se verificará a multiplicação dos delitos à medida que aumentarem os motivos do seu cometimento, sobretudo se a maioria das leis se basearem em privilégios, isto é, na prestação de um tributo imposto à massa geral da nação, em favor de poucos senhores”[8].
Patrono da intervenção mínima, “à luz da qual a sanção criminal se constitui a ultimaratio, de que o Estado lança mão somente naqueles estritos casos em que outros instrumentos de controle social se revelem insuficientes”[9], Evaristinho investiria contra o rigorismo estéril, nada obstante embalado pelas campanhas da imprensa ligeira, para defender a discriminalização e a despenalização nos casos de delinquência leve e média (Jescheck), donde a admissibilidade das penas restritivas da liberdade apenas para aquelas hipóteses em que o bem lesado pela ação criminosa tenha valor semelhante ao sacrificado, a saber, a liberdade pessoal.
É ainda o seu texto de 1996.
Reconhecendo o “recrudescimento da prática de crimes de extrema gravidade, notadamente ligados ao tráfico de drogas e terrorismo”, não se deixa embair pela estimulação de uma opinião pública que justificadamente não se cansa de reclamar pela intervenção estatal, com a imposição de penas severas, “ansiedade punitiva [que] acaba se extravasando para alcançar até as infrações leves, sob o pretexto de que não poderiam, a título de exemplo, permanecer impunes”[10].
Crítico do sistema penal clássico, Evaristinho lança mão da escala constitucional de valores para separar, qualitativamente, os tipos de ilícito mais significativos pertencentes ao núcleo do direito penal, daqueles pertencentes ao direito administrativo (Maurach e Zipf). Se há uma escala de direitos constitucionais, se há uma escala de lesões, há, de igual sorte, uma escala de penas. Esta escala implica hierarquia, impondo a prevalência dos direitos tutelados constitucionalmente, e não há direito de maior valor que o direito à vida e à liberdade. Ora, o direito penal clássico lança mão de forma abusiva e indiscriminada da pena privativa da liberdade, impondo, e estamos em face de um de seus erros mais graves “a quebra da proporcionalidade abstrata que deve existir entre o crime e a reprimenda estatal”.[11] Valor constitucional de tutela só equiparável à vida, a liberdade só pode ser cerceada em face de graves violações de direitos humanos. Se a liberdade tem, para a Constituição, um valor preeminente, qualquer limitação ao seu exercício só pode ser empregada como derradeira hipótese, vencidas todas as demais, considerando, na aplicação da pena, as infrações classificadas como de maior e de menor potencial ofensivo, e, assim, aplicando-lhes tratamento diferenciado. A um talianismo arcaico, o moderno direito penal defende a crescente e disseminada aplicação de penas alternativas, como a prestação de serviços à comunidade, a indisponibilidade de direitos ou bens, a desformalização, a conciliação, a suspensão do processo, sem julgamento de mérito, ou seja, o direito penal mínimo.
IV
Ao fim e ao cabo, Evaristinho nos lega uma lição do tamanho de sua vida: vale a pena lutar pela liberdade; vale a pena o mundo, enquanto a liberdade não for uma utopia, ou, enquanto a liberdade for aquela utopia que se realiza todo dia, pela qual se luta todo dia, toda hora, a vida toda. Esta utopia depende de homens como Antonio Evaristo de Morais Filho.
Por isso, quando nos deixou, amputou um pouco da nossa alegria, nos deixou mais fracos e mais sós na nossa luta, que foi sempre a sua.
- Publicado in Antonio Evaristo de Moraes Filho por seus amigos (Luís Guilherme Vieira e Ricardo Pereira Lira, Orgs). Rio de Janeiro. Renovar. 2001. Escrito em colaboração com Jamil Haddad.
[1] Da carta-consulta de Evaristo de Morais a Rui Barbosa in Rui Barbosa. O dever do Advogado. Fundação Casa de Rui Barbosa-AIDE Editora. Rio de Janeiro. 1994. p 40.
[2] A descrição do caso está no prefácio de Evaristo de Morais Filho à obra acima referenciada, pp. 13-36.
[3] Rui Barbosa. Ob. Cit. p. 43.
[4] Idem. p. 44.
[5] ‘Ética e sigilo profissional do advogado’ in Anais da XVI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil.(Direito, advocacia e mudança). Fortaleza, setembro de 1996. Pp. 393-7.
[6] ARON, Raymond. Memoires. P. 196.
[7] Sua Conferência: ‘Criminalidade astuciosa e violenta: causas e soluções’. Anais da XVI Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. (Direito, advocacia e mudança). Fortaleza, setembro de 1996. Pp. 307-318.
[8] BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. 5º edição. Atena Editora. São Paulo. P.18
[9] Anais..P. 308.
[10] Idem. P. 310.
[11] Ibidem. Pp. 308-9.