Roberto Amaral*
A França, com o povo nas ruas, homens e mulheres, jovens e velhos, trabalhadores de todos os ofícios, em Paris e em todas as vilas, enfrentando a repressão, resistindo, brigando, defendendo seus direitos, celebra os 152 anos da frustrada Comuna de Paris (1851-1871), quando os herdeiros dos sans culottes se levantaram contra a fome, a opressão e o autoritarismo exacerbados no Império, pouco mais de sessenta anos passados dos eventos da Revolução (aquela da tríade liberté – égalité – fraternité) para uma vez mais defender a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião e de organização. Mas o povo da Comuna inova, e intenta a autogestão, quer o governo perdido para a burguesia. É inexoravelmente esmagado, como são todas as insurreições populares, como foram esmagados todos os levantes populares que marcam a cruenta história brasileira, desde o genocídio das populações indígenas resistentes ao bacamarte dos bandeirantes e o extermínio dos quilombos, ao massacre de Canudos, pelo exército brasileiro, já no alvorecer da república sereníssima. Nesse evento, na terceira ou quarta investida contra o aldeamento de Antônio Conselheiro, a tropa militar dizima alguns milhares de sertanejos alquebrados que simplesmente lutavam contra a fome de forma organizada. Euclides da Cunha, em Os sertões, regista a cena final que rendeu medalhas a muitos generais, e conta os sobreviventes: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.”
A única “revolução” brasileira que “deu certo”, relembro, foi a de 1930, um movimento da classe dominante liderado por três governadores de província (Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba) e meia dúzia de oficiais superiores preocupados com a “moralização dos costumes”. Levada a cabo de cima para baixo, implantou sem resistência o governo civil-militar e distribuiu as cartas do baralho político durante 15 anos. No mais, no Império e na República, a saga das emergências populares frustradas e dos golpes de Estado impostos com a mão de ferro da intervenção militar substituindo a voz da sociedade.
O que se assiste hoje na França está longe de um levante, e em nada lembra os idos de maio de 1968 (que ainda agora assustam sua classe média), quando a insurreição estudantil, ao contaminar as fábricas, ameaçou o establishment. Mas é significativo sinal da possibilidade da mobilização de massas – acicatada por um interesse legítimo e imediato, no caso concreto a defesa da aposentadoria –, mesmo quando as organizações clássicas do movimento popular dão sinais de esgotamento ou falência.
Contrastando com o ambiente internacional que se sucede ao final da Segunda Guerra Mundial –caracterizado pelas grandes mobilizações sociais e sindicais, o avanço das forças progressistas e de esquerda, as conquistas do campo socialista e as concessões a que foi obrigada a socialdemocracia europeia –, o quadro de nossos dias, mormente a partir da debacle do “socialismo real”, se distingue pelo recuo das organizações e dos movimentos de esquerda, de par com a consolidação, de especial na Europa ocidental, das teses e dos governos neoliberais, o que se traduz nas crescentes restrições aos direitos das grandes massas, nomeadamente os trabalhistas e previdenciários. Nada que não conheçamos no resto do mundo, sob o reino da vitória do capitalismo. Nada que não tenhamos vivido no Brasil principalmente a partir dos governos FHC, e, em termos de exacerbação, na sequência do golpe de 2016 e do projeto protofascista de 2018 interrompido na 25ª hora em 2022.
É instrutivo comparar entre si as formas como franceses e brasileiros têm enfrentado o assalto aos direitos sociais.
Após mais de uma quinzena de confrontos de rua, dizem os noticiários de hoje (sexta-feira,24) que as manifestações de massa em toda a França reuniram 3,5 milhões de pessoas, segundo a CGT, e “um pouco mais de um milhão” segundo o Ministério do Interior.
Salta aos olhos, no contraste, a passividade brasileira diante da razzia promovida contra os direitos dos trabalhadores e a soberania nacional. Direitos fundamentais foram cassados ou restringidos, políticas de proteção social eliminadas, a escola pública gratuita e laica perseguida, o meio ambiente de um modo geral e a Amazônia especialmente entregues à sanha sem limites da grilagem associada ao garimpo ilegal. Empresas fundamentais para nosso desenvolvimento, como a Eletrobras, foram vendidas na bacia das almas, e a Petrobras se desfez de seu patrimônio para aumentar o lucro de acionistas minoritários, ao tempo que deixava de investir no país; a indústria foi desestimulada e o Banco Central, tornado “independente” em face da sociedade e ainda mais dependente do sistema financeiro impõe uma política de juros altos que, segundo Joseph Stiglitz (prêmio Nobel de economia de 2001), “equivale a uma pena de morte”. E podemos dizer que se trata de um crime, imposto e sustentado por uma classe dominante alienígena.
Em face desse conjunto de medidas anti-povo e anti-nação, não tivemos condições de opor resistência digna. Já não falo de greves políticas, que dão a medida da politização sindical. Mesmo greves reivindicativas e outras mobilizações visando à defesa de direitos ameaçados ou surrupiados, não logramos promover. E sabemos que a presidente Dilma Rousseff foi cassada e Lula foi processado, teve sua inelegibilidade decretada e afinal foi preso porque lhes faltou o grande apoio das massas, que não foram às ruas. Dizem-me que se trata de mero desdobramento da crise das organizações de esquerda brasileira, que se reflete na recessão dos movimentos populares. Fator agravante, mas não isolado, seria a crise específica da vida sindical, fermentada pela revolução tecnológica, impondo o declínio do poder político do trabalho subsumido pelo capital financeiro, monopolista e internacionalizado.
É preciso acrescentar, porém, que nossos próprios governos de centro-esquerda dormiam com o inimigo: no primeiro governo Lula implementamos uma “reforma” da previdência restritiva de direitos; Dilma contribuiria com uma questionável lei antiterrorismo, além de uma confusa e autoritária preparação para a Copa e as Olimpíadas. E ao seu governo devemos o ajuste monetarista do ministro Joaquim Levy, hoje fazendo carreira no grupo Safra, depois de presidir o BNDES sob as ordens de Bolsonaro. A defesa do mandato legítimo da presidente assim se impôs no momento em que era mais ativa e necessária a reação contra a política econômica de seu governo, imobilizando consideráveis setores populares, inclusive áreas sindicais ligadas ao PT.
Muitos desses elementos, todavia, se encontram no cotidiano francês, quando também nos deparamos com a dissolução de organizações como os partidos Comunista e Socialista, este até há pouco governante, dando passagem à hegemonia da direita tout court, aparentemente inabalável.
A esquerda francesa chega ao poder com François Mitterrand em 1981, mas logo em 1986 perderia as eleições legislativas e Jacques Chirac, direita, seria eleito primeiro-ministro, inaugurando a “coabitação”. Em 2012, a esquerda (isto é, o Partido Socialista), retornaria ao poder, com François Hollande, para, em 2017, entregar o Palácio do Eliseu de volta à direita, agora liderada por Emmanuel Macron, o 12° presidente da Vª República, vencendo a esquerda e a extrema-direita do clã Le Pen. O fato novo é o movimento França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon, prometendo o reencontro da esquerda. O que se identifica como socialismo na França, porém, cabe relembrar, não se confunde com o conceito brasileiro de esquerda, pois não ultrapassa os limites ideológicos de uma socialdemocracia convencida da inexorabilidade da hegemonia norte-americana. Já a direita, renunciando às aspirações autonomistas europeias, transita para a extrema-direita e o fascismo na mesma linha do que ocorre na Itália.
No contraste com o quadro francês de hoje, se conhecemos os 21 anos da ditadura militar instalada em 1964, e a experiência protofascista do governo do capitão e seus áulicos fardados, conhecemos igualmente as experiências petistas sinalizadoras de franca emergência das massas, e vivemos a presente experiência da reconstrução democrática nacional, pela mão do terceiro governo Lula. Se, a rigor, todas as grandes organizações de esquerda francesas, como o PS e o PCF, se dissolveram, por diversas razões, uma das quais necessariamente terá sido o fato de se confundirem com o discurso da socialdemocracia, no Brasil registramos a sobrevivência do do PCdoB e a vitalidade do PT (que, ademais, controla a CUT, nossa maior central sindical) como partido hegemônico da esquerda e a emergência do PSOL, o que, pelo menos aparentemente, sugeriria a existência de condições objetivas de resistência e mobilização popular. Ademais das organizações camponesas lideradas pelo MST, presentes em praticamente todo o país, e a mobilização urbana, mais paulista que nacional, comandada pelo MTST de que surgiu a liderança de Guilherme Boulos.
A questão que trago à baila não é simples, porque, se na França o desafio é o enfrentamento, dentro da institucionalidade, do projeto neoliberal do governo Macron, o desafio brasileiro dos dias presentes, crucial, é oferecer a Lula (e só o movimento popular pode fazê-lo) condições de governabilidade diante de um “mercado” e de um sistema financeiro hostis, além de crise fiscal, forças armadas reacionárias e partidarizadas, um congresso majoritariamente fisiológico e retrógrado, o aparelho público destroçado, uma crise financeira namorando o retorno à depressão, um país por refazer em um mundo em guerra.
* Com a colaboração de Pedro Amaral