Roberto Amaral*

O homem é suas ações
Pe. Antônio Vieira – Sermões

O andar dos tempos reserva, como condenação aos que vão ficando, a tristeza da perda de grandes e insubstituíveis amizades, construídas ao longo de décadas de trabalho comum e de lutas comuns,  imbricadas numa mesma existência.  E não raro a tragédia biológica ceifa brasileiros excepcionalíssimos, que se dedicaram a vida toda à batalha pelo progresso humano. É quando a dor bate ainda mais forte e lembra nossa pobreza e nosso desamparo.

Na sessão que a Academia Brasileira de Ciências dedicou à memória de Luiz Pinguelli Rosa foi anunciado o falecimento de Erney Camargo, um de nossos mais notáveis cientistas, a vida toda dedicada ao serviço público e à luta contra a desigualdade social, o paradigma do capitalismo que nos vitima. Ambos chegaram à política pelas mãos da ciência – a física e a medicina –, que é, em si, uma missão e uma filosofia de vida. Pela ciência compreenderam que a iniquidade social não é nem um determinismo nem um fatalismo, mas uma construção humana, renovada dia a dia, pela ação dos indivíduos como agentes históricos. O homem faz a história a partir das condições objetivas que encontra, mas a partir delas decide que humanidade e que mundo deseja construir, e assume sua responsabilidade existencial quando intervém no processo, quando se omite, quando se associa aos donos do poder, ou quando se levanta contra o sistema de classes ou opta pela solidariedade com as dores dos humilhados e ofendidos do capitalismo. O mundo é um produto do homem, e o homem é suas ações. O indivíduo, sujeito histórico, a um tempo cria a si mesmo e constrói o mundo. Pinguelli e Erney tiveram sempre presente esse amplo campo de liberdade de opções oferecido, e, como cientistas, foram  políticos e militantes, por serem pensadores e cientistas de primeira ordem.

O que mais louvo na vida desses  cientistas  que tão cedo nos deixaram – pois é sempre cedo que nos deixam  os pioneiros – é  a opção política que os fez personalidades de escol na ciência que exerceram até o último momento, reunindo pesquisa, reflexão e pensamento e ação. O magistério de ambos, a lição deixada aos seus alunos e aos seus discípulos, foi a própria vida de cada um.

Pingueli alcançou o melhor da militância política pelos caminhos da cosmovisão científica. Pelos caminhos da física nuclear chegou à política científica e à politica maior, e, como Erney,  foi dos nossos melhores: dos melhores pensadores, dos melhores na defesa dos interesses populares, na resistência ao mandarinato militar que se seguiu a 1964, na resistência ao pesadelo protofascista que se seguiu à debacle democrática de 2016. A física das partículas o levou à física teórica, à epistemologia, à história da ciência e à política. Orgulhava-se de integrar o Conselho da Pugwash Conferences on Science and World Affairs, entidade fundada por Albert Einstein e Bertrand Russel (cientistas  e filósofos  que conheceram a política para poder defender a humanidade), e dedicada à luta pela proscrição das armas de destruição em massa. Nos encontramos nos já distantes idos de 1985, na tentativa de, com Jamil Haddad e Antônio Houaiss, construir um partido socialista. No primeiro governo Lula trabalhámos juntos, eu na chefia do MCTI e Pinguelli no comando da Eletrobras. Mais tarde, com Dilma, fomos companheiros no conselho da  Itaipu Binacional. A última luta comum foi a resistência ao impeachment da ex-presidente. Essa batalha perdemos, e ele lamentavelmente não mais estava conosco para festejar  o 30 de outubro de 2022, e viver, como vivemos hoje, nos limites da  impotência, as interrogações que nos perturbam e as angústias  que nos afligem no preâmbulo do terceiro governo Lula. Governo de que tanto depende a retomada daquele curso da história que insinuava a emergência das massas, tanta vez interrompida pelo braço armado da casa-grande, a conciliação de interesses que nos governa desde sempre – porque nos conservamos ainda muito distantes da luta anti-hegemônica.

Erney honrou-me ao aceitar a indicação, que me fizera Wanderley de Souza, outro grande cientista e companheiro, para a presidência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, tornando-se um dos mais notáveis dirigentes da mais importante agência brasileira de financiamento da pesquisa em C&T, em momento especialíssimo de nossa história, o primeiro ano do primeiro  governo Lula, quando nossos sonhos represados desconheciam limites.

Juntos, com a colaboração do professor Manuel Domingos Neto, vice-presidente do CNPq, nos esforçámos  visando à descentralização do trabalho cientifico brasileiro, expandimos territorialmente a pós-graduação e levamos os hesitantes governos estaduais a manter e  fortalecer as agências de fomento à pesquisa, ciência e tecnologia. Ao estender as bolsas de iniciação científica aos alunos do ensino médio, Erney comentou com Manuel Domingos a consciência de que estava abrindo portas para alterar o perfil social da comunidade científica, projeto de democratização a que os  governos de Lula e Dilma Rousseff buscaram dar continuidade.

A preocupação de Erney   com a formação de pesquisadores remonta aos  primeiros anos de docência, quando se dedicou ao tema, na expectativa de levar estudantes corriqueiramente voltados para a clínica médica  a se transformarem em médicos-pesquisadores  comprometidos com o enfrentamento  das mazelas que naquele então e ainda agora afligem  as populações pobres, e por isso mesmo são desconsideradas pelos grandes laboratórios e pelos financiamentos internacionais. É nessa altura que começa a colaboração com outro brasileiro  notável, Luiz Hildebrando Pereira da Silva,  inicia a grande saga de parasitologista e se dedica ao estudo de doenças negligenciadas, como a malária. Esta postura permanente de professor e líder que se antecipava ao seu tempo se confundia com a militância política de vida inteira do comunista de primeira água.

Em 1964 o certificado de grande brasileiro foi-lhe conferido pela ditadura militar, que o demitiu da cátedra na USP, forçando-o a longa temporada de docência e pesquisa em universidades francesas, norte-americanas e polonesa.
O mundo real, que conhecera pelas mãos da pesquisa científica levara-o à política militante e à resistência revolucionária, realizando com grandeza a transição da teoria à prática. O indivíduo se cria a si mesmo e ao mesmo tempo constrói o mundo.

Poucas pessoas  deram aos companheiros de trabalho tantas lições de vida quanto Luiz Pinguelli Rosa e Erney Plessmann de Camargo

É desses dois grandes brasileiros que nos despedimos.

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Agro é tech, agro é pop, tá na Globo – Este é o agro que, associado à grilagem e ao garimpo ilegal, está devastando a Amazônia, dizimando as populações nativas, e desertificando o Cerrado. É o mesmo agro que emprega mão de obra escrava nas  vinícolas gaúchas.
Aqui é diferente – A França, Paris notadamente, enfrenta um verdadeiro levante sindical-popular contra a reforma de Macron, que pretende aumentar em dois anos o tempo necessário para a aquisição do direito à aposentadoria. Maiores e mais profundas reformas, todas restritoras de direitos dos trabalhadores, foram implantadas no Brasil sem a mínima resistência sindical ou popular. A explicação que tive de um amigo dirigente de partido revolucionário, a quem pedi ajuda,  foi a de que “a França é diferente”. Está tudo explicado, portanto.
O mercado é isso. Após o estouro do Silicon  Valley Bank (SVB) e do Signature Bank anuncia-se o terremoto do Credit Suisse, que deve promover abalos sísmicos na Faria Lima, apesar da intervenção  do governo suíço.   Não se sabe ainda qual será o destino da Americanas (de seus funcionários e de seus milhares de pequenos fornecedores e dos seus milhares de acionistas), mas sabe-se que serão inalcançáveis os manipulares do rombo. Ora, trata-se de três dos maiores bilionários brasileiros. Segundo pesquisa  do Génial Quest, o “mercado” (esse fantasma que nos governa) está  convencido (1) de que os investimentos estrangeiros  no Brasil vão  cair e  (2) que a economia deve piorar no curso de 2023. Mas acha que a política de juros exorbitantes  do BC  está certa. Esta é a opinião de 95% dos “agentes” ouvidos.

* Com a colaboração de Pedro Amaral