Roberto Amaral*
A história desses 200 anos de Independência (celebrados de modo grotesco no último 7 de setembro) reproduz a história dos 300 anos que nos levaram da feitoria a um império atrasado, escravista, latifundiário, genocida de índios, negros e brancos pobres, extrativista e depredador do meio ambiente. Economia dependente, agroexportadora, destinada a atender à demanda europeia de produtos tropicais – índios escravizados flora e fauna, madeira de tinta, açúcar, algodão, ouro, prata e café – numa trágica premonição do Brasil de hoje, orgulhoso exportador de minérios, grãos, carne, frango, importador de ideias, ciência e tecnologia. E às voltas com o espectro da fome que ronda os lares de sua população pobre.
Se, na colônia e no império, sem história própria, nos fizemos exportadores de mão-de-obra escrava e florestas devastadas, no século XX nos firmaríamos como exportadores de mão-de-obra barata, sobre explorada, e meio ambiente. No século XXI, ainda economia periférica, cumprimos a falsa vocação de suprir o centro econômico com os alimentos que sonegamos ao nosso povo. Renunciando à industrialização, nos conformamos como exportadores mal remunerados de commodities. A modernização/inovação se dá nos setores essenciais à produção de matérias-primas de baixo custo para o consumo das economias hegemônicas, ou naqueles essenciais à acumulação do capital internacionalizado, caso que é do sistema financeiro.
Com a independência, essa que nos é dado comemorar, ao mesmo tempo em que nos apartávamos do decadente colonialismo português, nos imolávamos de pés e mãos atados ao imperialismo britânico que negociara o divórcio político com Lisboa. De colônia de uma potência declinante, nos transformamos em protetorado de um império feroz. A custos altíssimos – como, entre outros, o acordo leonino pelo qual nos obrigamos a saldar a dívida externa contraída por Portugal para financiar sua resistência militar à nossa separação. Manteve-se, sob a preeminência britânica, a política colonial impeditiva de qualquer sorte de manufatura ou investimento em educação e ciência. Afinal, nenhum colonialismo convive bem com a circulação de conhecimento. Colônia, não podíamos concorrer com o comércio monopolizado pela metrópole. País independente, não podíamos fazer frente à manufatura inglesa. A saga da dependência chega aos nossos dias como desenvolvimento condicionado.
Florescia uma sociedade autoritária – uma exigência da desigualdade – fundada na exploração do trabalho, no escravismo, no racismo de dominância masculina. Uma economia depredadora do meio ambiente, herdeira da ocupação territorial fundada no mito da natureza inesgotável. A depredação da natureza e dos homens, índios e africanos escravizados, era o passaporte para o progresso, que se chamava “colonização”. O genocídio seria o apanágio dos bandeirantes, que ganharam na história oficial o título de desbravadores dos nossos sertões. Dos povos nativos foi retirado tudo: a liberdade, a terra, suas línguas, sua cultura, suas crenças, sua história. A obra nefanda do bacamarte do sertanista foi completada pela evangelização dos padres.
A independência não implicou progresso das forças produtivas, senão o fortalecimento da oligarquia latifundiária ligada ao tráfico e aos comerciantes portugueses e ingleses que dominam a economia colonial e conservariam o mando na monarquia escravista. Economia periférica, as forças produtivas internas, e, consequentemente, as relações de produção e as relações sociais internas, eram condicionadas pelas relações externas. Assim nossa visão de mundo e nossa auto-visão. Nós nos víamos, e nos vemos hoje, pelos olhos dos colonizadores, cujos preconceitos assimilamos. Certamente aí radica o “complexo de vira-lata” ao qual se referiu Nelson Rodrigues, um dos principais intérpretes do que os sociólogos talvez possam denominar de “alma nacional”. O mais eminente dos pensadores liberais, Eugênio Gudin, escrevia, ainda nos meados do século passado, que o Brasil não podia aspirar à industrialização, pois sua “vocação” era a agricultura.
Em pleno terceiro milênio, militares organizados em torno do Instituto Sagres apresentam um programa de governo (dito “Projeto de Nação”) que eles, ameaçadoramente, esperam estar presidindo em 2035. Num saudosismo colonial, expressam o sonho de ver o Brasil como exportador de minérios e alimentos.
A pobreza de hoje – econômica, social, política –, a dependência ideológica, a carência de pensamento original, a ciência reflexa, a tecnologia sem originalidade, o recurso à conciliação para evitar a ruptura, o mando secular da casa-grande, o império da Ordem para conter o Progresso, o autoritarismo larvar (quando não o protofascismo), o racismo estrutural, a homofobia e a misoginia, o preconceito social, o desapreço ao trabalho, o parasitismo das classes dominantes… tudo isso são elementos condicionantes do Brasil de hoje, da tragédia que ainda nos assola. São frutos do processo histórico, mas não derivam de um determinismo colonial.
A história do presente é, insisto, a continuidade do mando político da casa-grande, a classe dominante que vem da colônia; e desde então, monopolizando o poder econômico e o poder financeiro, manipula a política, os corações e as mentes. Por isso somos um país sem revolução, sem heróis-libertadores – os que lutaram foram proscritos pela história –, de braços dados com o atraso, condicionado pela conciliação, engenho da classe dominante para evitar a mudança. .
Por isso caminhamos “aos trancos e barrancos”.
Quando o império arcaico não tinha mais condições de se conservar de pé, o exército, por meio de um golpe, fez a república sem republicanismo, para assegurar o poder da lavoura destinada à exportação, representado pela ascendente cafeicultura paulista. Consolidávamos assim a opção anti-industrialista que vem do império e se sustentaria até 1930, quando um movimento liderado por três governadores de estado e meia dúzia de oficiais do exército, recém modernizado por potência ocidental, rompe com o poder agrário. Era a revolução pelo alto, a única insurgência que deu certo, porque comandada pela classe dominante. O golpe de 1964 é levado a cabo pelos militares para fazer cessar a ascensão das massas e impor o fim do trabalhismo nascido no Estado Novo. Os militares depõem um governo democrático, por considerá-lo reformista. Uma das questionadas propostas de Jango, como se sabe, era a reforma agrária, defendida por José Bonifácio na frustrada constituinte de 1823, e reclamada por Joaquim Nabuco no segundo império.
Em 1949 a China era um país agrário cujos camponeses haviam feito uma revolução social ao cabo de uma longa guerra civil e séculos de invasões estrangeiras. Lá, ingleses, franceses e japoneses se haviam esmerado no concurso da exploração da terra e de sua gente. Em contraposição, naquela altura já éramos uma sociedade urbana em busca da industrialização. Enquanto somos o que somos, um país cujo povo perdeu a esperança, a China de hoje é a segunda potência econômica, científica e tecnológica do mundo, o maior parque industrial do planeta, disputando a hegemonia com os EUA. Entre a emergência chinesa e o nosso atraso encontra-se a forma como as duas classes dirigentes encararam o desenvolvimento científico-tecnológico. A opção chinesa é paradigmática: o investimento em educação e pesquisa, ciência e tecnologia. Deng Xiaoping, ao sentar-se no trono de onde reinara Mao Zedong, preconizava a estratégia de desenvolvimento do país que passara a comandar:
“A chave para conquistar a modernização é o desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E, a menos que prestemos especial atenção na educação, será impossível desenvolver a ciência e a tecnologia”.
O fato objetivo é que a opção pela educação, ciência e tecnologia (nessa ordem) levou a sociedade chinesa a patamares insuspeitados pelos observadores ocidentais. Em 40 anos promoveu a inclusão de 800 milhões de pessoas.
O Brasil que desinveste na educação, na ciência e na tecnologia, o Brasil governado pelo negacionismo e o atraso cultural, o Brasil que desorganiza o ensino público e desmonta a pesquisa científica, a formação de cientistas e educadores, convive hoje com cerca de 35 milhões de pessoas passando fome; 125 milhões, mais da metade da população, padecem algum grau de insegurança alimentar. A comida dos miseráveis são restos, resíduos coletados nas lixeiras dos supermercados, pescoço, asas e pés de galinha, ossos de boi, espinhas e cabeças de peixe.
Esse Brasil retorna ao cenário da fome – uma criação do homem contra a humanidade – e reatualiza Josué de Castro, que, ainda nos idos de 1946 (Geografia da fome) denunciava a fome como produto de um modelo excludente agroexportador.
No entanto o país cujo povo passa fome é o terceiro maior produtor/exportador de grãos do mundo.
No mundo do desenvolvimento tecnológico, que exige da massa trabalhadora mais e mais escolaridade, o Brasil da atual classe governante vira as costas para a educação, a ciência e a formação profissional de sua mão de obra. Constrói uma sociedade que se aparta de si mesma; anula as possibilidades históricas do país, e de seu povo, espanca a esperança. Somos hoje um país temente de seu futuro. A crise da universidade brasileira deve ser vista, portanto, como um projeto; a crise da ciência e da tecnologia, uma necessidade, porque nada é mais revolucionário, ou mudancista, do que o conhecimento.
Este é o quadro com o qual vai se defrontar o eleitorado brasileiro no dia 2 de outubro, cabendo-lhe decidir entre democracia e barbárie, desenvolvimento e atraso. Nada, pois, autoriza o desânimo, senão a certeza do salto qualitativo do processo político, no que depender de nossa luta.
A humanidade não conhece melhores profetas do que seus poetas. Concluo essas reflexões com a palavra de Carlos Drummond de Andrade:
“Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas
Mas ele será um dia
O país de todo homem.”
* Com a colaboração de Pedro Amaral