Roberto Amaral*
Jamais será exaustivo insistir sobre a real disputa que nos aguarda o próximo 2 de outubro, aquela que será, sem dúvida, a mais importante eleição republicana, pois estaremos optando entre civilização e barbárie, entre desenvolvimento e atraso, entre passado e futuro, entre democracia (essa que temos como referência) e o projeto protofascista em curso. E esta decisão, qualquer que seja, delineará as décadas vindouras. O quadro, assim posto, repele a neutralidade: a busca insólita por uma terceira via inexistente é a tentativa de disfarce de uma aliança envergonhada.
Consciente desse processo, Ciro Ferreira Gomes assume, faticamente, o papel de cabo eleitoral do bolsonarismo, que diz rejeitar. A insistência na candidatura inviável, na contramão dos interesses do país, ameaçando o processo democrático, criando condições para um possível segundo turno, será a pá-de-cal do que restou do nobre legado de Leonel Brizola, e o PDT, sequestrado pelas escolhas paranoicas de seu candidato, periga juntar-se ao PTB, que, com a ajuda do general Golbery do Couto e Silva, viajou de Vargas a Roberto Jefferson, e hoje não passa de um excremento da má política.
O ponto de partida, imposto pelos fatos, é, pois, eleger Lula, preferentemente no primeiro turno. Isto, embora necessário, ainda não é tudo. Se Lula não pode ter sua eleição contestada, nem sua posse questionada (e o antídoto de ambas as ameaças, reais, é uma grande maioria), é de igual modo preciso evitar que seu governo seja inviabilizado, como foi o de Dilma Rousseff, por uma Câmara dos Deputados chefiada a rédeas curtas por um meliante de longa carreira que terminaria por comandar a deposição da presidente. Sai de cena Eduardo Cunha, e a liderança do “centrão” é assumida pelo deputado Arthur Lira, bandalho como Cunha, professor, porém mais competente e violento naquilo que é seu mister. Já está em campanha para a recondução à presidência de uma Câmara que controla o orçamento da União, e assim controla os recursos do Executivo. A manipulação abre caminho para a chantagem e a prevaricação, uma história conhecida em suas mais variadas nuanças – e consequências indesejáveis.
Ganhar, no pleito, nem sempre é a segurança de poder governar, e, principalmente, poder governar seguindo os compromissos de campanha. O governante muitas vezes chega ao poder manietado pelos arranjos que costuram alianças heterodoxas para possibilitar o bom êxito eleitoral, fim de qualquer candidatura que se dê respeito. E não raro é manietado pela oposição em maioria no Congresso, pelas contingências internacionais e pela onipotência do grande capital, também chamado de “mercado”.
Lula, repito, precisa ganhar, e ganhar bem, isto é, com larga margem de votos, sepultando de vez os sonhos continuístas do capitão e de sua retaguarda de militares golpistas (portanto, maus militares, que emporcalham a farda), além das hordas alimentadas pelo ódio fabricado. E, assim, acumulando força política e popular para enfrentar os obstáculos que já lhe são antepostos, e que só crescerão em volume e periculosidade na medida em que se confirme seu governo. Para a resistência (ou sobrevivência, aquela a que não lograram Vargas, Jango e Dilma) é fundamental que, com o presidente, sejam eleitos parlamentares progressistas que, primeiro, assegurem apoio ao seu governo, e, no limite, impeçam as tentativas de impeachment de que direita e extrema-direita, unidas, forçosamente lançarão mão. Foi sempre assim, e agora não será diferente. Não é ocioso lembrar que Dilma foi deposta porque não conseguimos, num colégio de 513 deputados, reunir 171 votos para trancar a proposta carente de fundamento. Seis anos passados, o MPF solicitou o arquivamento do inquérito sobre as falaciosas “pedaladas fiscais” que serviram de argumento para o pedido de impeachment do jurista Miguel Reale Jr, prócer socialdemocrata hoje arrependido.
Qual será, porém, nossa base de apoio parlamentar e popular, quando os partidos do campo progressista vivem grave crise, terminal em alguns casos, e o movimento sindical se debate com o esvaziamento da força do trabalho? Sinal dos novos tempos: o projeto neoliberal-protofascista restringiu os direitos trabalhistas, promoveu a reforma precarizante da previdência, privatizou a Eletrobras e deu início ao fatiamento da Petrobras, sem enfrentar uma só greve.
O projeto da direita (no momento associada à extrema-direita civil e militar) é conservar o poder que controla desde a colônia. O capitão (o “mau militar”, na sentença de Ernesto Geisel) é o cavalo que passou encilhado e no qual montou quando seu mando parecia ameaçado em 2018. Investiu nele, ganhou com ele e sustentou seu governo, tanto quanto investe em sua reeleição como projeto preferencial, mas não o acompanhará no féretro.
A derrota do capitão foi sempre uma possibilidade considerada pelos seus estrategistas, que de há muito investem na manutenção de um Congresso reacionário, mediante o qual procurarão condicionar o governo Lula, senão derroga-lo, como lograram contra Dilma. E não estão de braços cruzados. A campanha dos candidatos a deputado federal começa irrigada com os R$ 19,4 bilhões do escandaloso “orçamento secreto” operado por Arthur Lira, o jagunço de terno e gravata. Sua evidente inconstitucionalidade será julgada pelo STF, anuncia a ministra Rosa Weber, “após as eleições”, isto depois da consumação do crime anunciado. Junte-se a esse “reforço” o usual concurso do financiamento empresarial direto e o emprego da máquina pública em todos os seus níveis, a ação dos setores mais atrasados das seitas neopentecostais e a vasta teia de apoios, os mais variados, tecida pelas forças armadas e pelas polícias civis e militares. Não é pouca coisa
O voto em Lula, portanto, não pode estar politicamente desvinculado do voto em parlamentares, em todos os níveis, sobretudo o federal.
Por inumeráveis razões, cuja análise não cabe nesses comentários, tivemos, porém, uma campanha despolitizada e com baixa mobilização popular. Afora a questão democrática, retomada pelos segmentos de centro-esquerda, o debate, escasso, não atingiu as questões fundamentais que respondem pelo atraso e pela concentração de renda, o desemprego e a fome, a queda de renda das famílias e a desnacionalização da economia. Ou seja, desperdiçamos excepcional oportunidade de politização e mobilização das massas, de cujo apoio careceremos seja na sustentação do mandato de Lula, seja no fortalecimento, no governo, de sua porção de centro-esquerda, que terá de conviver com as concessões impostas pela correlação de forças requerida para a estabilidade política.
Cresce a convicção de que o melhor para o país é a resolução eleitoral já no primeiro turno. Em torno desse objetivo devem estar mobilizadas todas as forças populares, espancando o medo que a extrema-direita tenta impingir para nos afastar das ruas, do debate, das manifestações de massa. Além de, possivelmente, assegurar a eleição de Lula, essa mobilização é o ponto de partida tanto para a sustentação política do governo quanto para o enfrentamento político-ideológico da extrema-direita, hoje organizada, preparada (inclusive contando com apoio nas fileiras) e ciente de seu apelo popular.
A eleição de Lula, entenda-se, é fundamental para apear a extrema-direita civil-militar governante, criando condições políticas, sociais e institucionais para o seu enfrentamento, a tarefa política primordial dos próximos tempos. Derrotado eleitoralmente, Bolsonaro permanecerá em cena como o grande líder da direita/extrema-direita brasileira, o maior líder popular que o campo reacionário formou neste país, dispondo hoje de algo como 35% do apoio nacional. Será o líder extremista de base popular que jamais tivemos, investindo no confronto e no conflito, no extermínio da divergência e dos divergentes. Este fenômeno não pode ser negligenciado pelas forças democráticas e progressistas.
O bolsonarismo (chamemos assim a emergência da extrema-direita popular e organizada) é o adversário fundamental que nos cabe enfrentar, o que nos cobra organização e firmeza ideológica que, possivelmente, nossos partidos, condicionados pelas consequências da opção puramente eleitoral (que muitas vezes implica concessões políticas e ideológicas, como, por exemplo, a batalha ideológica) não estão em condições de assegurar. A eleição de Lula não é, pois, o ponto de chegada, mas é só a partir dela que nosso país terá condições de promover a recuperação de seu projeto como nação independente, a construção de uma sociedade politicamente democrática, capaz de enfrentar a estrutura de classe, de natureza autoritária, amante do totalitarismo.
O futuro governo Lula, democrático-popular, haverá de voltar-se para a organização dos movimentos populares, de que muito dependerá para atender às expectativas depositadas pelo país majoritário em seu líder.
* Com a colaboração de Pedro Amaral