Apresentação*
Jáder de Carvalho é um dos mais importantes intelectuais brasileiros, sendo um intelectual engajado no mais precioso ou preciso sentido sartriano, e quase cervantino, atraído pelas causas perdidas, peleando contra moinhos de vento que na sua terra natal são uma poderosa oligarquia sem apego ao seu povo, com o qual não se identifica, sem apelo à terra, bárbara, que o Poeta cantará em versos telúricos. Jáder fez-se a voz dos humilhados e ofendidos, e das causas sem patrono. Foi jornalista indômito (na linhagem de João Brígido, de quem, aliás, nos legaria belíssima antologia), advogado, sociólogo e professor, poeta de primeira água, contista inspirado, escritor e romancista dos grandes. E para ser tudo isso era, antes de tudo, um bravo, um destemido, nos limites da imprudência, pois morreu sem conhecer o medo. “Terra bárbara”, talvez seu poema maior, é, a um tempo, autorretrato e retrato do sertanejo que Euclides da Cunha imortalizou: bom, quase dócil e ao mesmo tempo valente, valente sem meio termo, sem medir meios e condições. Jáder foi, finalmente, um forte aberto aos desafios:
“… Filho da gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, / eu sou o índice do meu povo: / Se o homem é bom – eu o respeito / Se gosta de mim – morro por ele. / Se, porque é forte, entendesse de humilhar-me, / ai sertão! / eu viveria teu drama selvagem, / eu te acordaria ao tropel do meu cavalo errante, / como antes te acordava ao choro da viola…”.
Lutador sem quartel, intelectual orgânico expressando em nome dos oprimidos a luta de classes, é o que foi em todos os campos de sua multifacetada atuação político-intelectual, assim nessa ordem, pois, foi, sempre e principalmente, um militante de esquerda de formação marxista, que muito influenciou gerações e gerações de jovens cearenses.
Quando me entregou os originais de Aldeota para que eu intentasse sua reedição aqui no Sudeste (afinal, o livro foi mesmo editado em Fortaleza por iniciativa de Albanisa Dumar), escreveu: “… este é o meu melhor romance”. Ouso duvidar. É o mais bem trabalhado, sem dúvida, mas é o romance do Jáder pacientado, e é, assim bem costurado, o romance do sociólogo-político que usa a boa literatura como instrumento de crítica social – seu objeto, aliás, tanto em Aldeota quanto em Sua Majestade, o juiz, quanto em toda sua poesia. Quem ousará hoje escrever sobre a história de Fortaleza ignorando sua observação corrosiva das elites, quem escreverá hoje sobre a domesticidade da justiça sem referir-se a Sua majestade, o juiz? Em Aldeota, numa saga que às vezes lembra A floresta, de Ferreira de Castro (a quem significativamente dedica o romance) revela a morfologia das grandes fortunas urbanas derivadas do impacto das guerras mundiais sobre a economia extrativista e o início da especulação imobiliária urbana desbragada. É a emergência de seus milionários urbanos – os novos ‘homens de bem’ da província substituindo os ‘coronéis’ anacrônicos nos meandros do contrabando e da sonegação. Aldeota é o bairro no qual os novos ricos vão construir seus palácios-casamatas e se isolam da cidade pobre.
Escreve Jáder no frontispício de Sua Majestade, o juiz, que antecede e lavra o caminho de Aldeota: “Neste romance, algumas personagens são pura invenção do Autor”. Poucas são as personagens de ficção deste livro que ousa descrever, ditado por um ainda advogado militante, as entranhas do poder judiciário do Ceará, subalterno aos poderosos e envolto em tráfico de influência e corrupção. Todas as suas personagens são conhecidas e reconhecíveis no texto, mal disfarçadas por nomes sugestivos de seus modelos. Ao contrário de Aldeota, sisudo, Sua Majestade, o juiz, é um livro alegre, brincalhão, bem humorado, sem, todavia, abdicar da corrosiva crítica social e da interpretação sociológica, matriz de toda a sua obra.
Dizia-me ele que este livro era sua resposta aos juízes que o perseguiam. De uma forma ou de outra, o certo é que nunca mais advogou.
* Apresentação do livro Sua Majestade, o juiz, de Jáder de Carvalho. Fortaleza. Editora Armazém da Cultura. 3ª edição. 2019, pp 5-7.