por: Sérgio Sérvulo da Cunha
Se me perguntarem qual o preceito mais importante do ordenamento jurídico brasileiro, direi sem hesitar que é este:
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Constituição brasileira, art 5º-II).
Esse preceito marca a passagem do Estado absoluto para o Estado constitucional, a passagem do Estado despótico para o Estado liberal. Com ele, põem-se limites ao poder do Estado; declara-se que a pessoa humana é senhora dos seus fins.
Ninguém pode ser constrangido a fazer algo contra a sua vontade, salvo nos casos em que essa obrigação esteja prevista em lei. Para que isso ocorra, existe a “ação de obrigação de fazer”. As obrigações nascem, ou da lei ou dos negócios jurídicos (dos contratos). Quem pretenda impor, a outrem, a prática de um ato, deve requerer ao juiz que o ordene, demonstrando a existência da respectiva obrigação, e sua fonte.
Antenor implica com o nariz de sua vizinha. Uma noite a surpreende, aplica-lhe uma mecha de clorofórmio e a submete, clandestinamente, a uma cirurgia corretiva. Faz isso pelo seu bem, e, realmente, ela se transforma numa beldade.
Como se chama isso? Apesar da boa intenção, chama-se crime.
Com efeito, em seu art. 129, o código penal define, como lesão corporal, “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. A lesão corporal é de natureza grave, entre outros motivos, se dela resulta “debilidade permanente de membro, sentido ou função”.
A lei existe para nos proteger. Portanto, o Ministério Público, no cumprimento do seu dever, em caso como esse não deixará de requerer que se aplique a Antenor a pena respectiva, que é reclusão de um a cinco anos.
A função do ministério público e da magistratura é tão fundamental para a democracia e o bem estar dos cidadãos, que só pode ser exercida por profissionais especialmente preparados, que conheçam a lei, e estejam também dispostos a aplicá-la. Por isso, não apenas cursaram ciências jurídicas, mas foram depois aprovados em concurso público específico. Se a ignorância da lei não socorre aos iletrados, quanto mais aos profissionais do Direito.
Prevenido sobre as consequências de seu ato, Antenor, em vez cometer esse crime, tem uma ideia brilhante. Pede a um juiz, amigo seu, que o autorize. O juiz, que também não suporta o nariz da vizinha, determina que se realize a cirurgia, o que vem a ser feito.
Como se chama isso? Chama-se crime.
No último dia 9, o jornal Folha de São Paulo publicou uma notícia em que dificilmente se pode acreditar. O respeitado professor Oscar Vilhena Vieira, em artigo que assina, nos informa, em resumo, o seguinte:
Janaína é uma mulher pobre, em situação de rua, que já tem filhos. Por isso um membro do Ministério Público entendeu que ela deveria ser esterilizada. Como Janaína não consentiu em realizar a cirurgia, o promotor moveu ação judicial, requerendo sua esterilização compulsória. O juiz, sem sequer realizar audiência ou nomear um defensor, determinou que a esterilização fosse realizada coercitivamente. Quando o recurso chegou ao tribunal de justiça, a mutilação já havia ocorrido.
As peças do processo estão disponíveis nesse endereço, onde podem ser consultadas: https://drive.google.com/file/d/1INTfDLL9zGVgsTHu2QoMcRd6laXdGNlU/view?usp=sharing.
Pinço alguns trechos do acórdão, proferido pela 8ª. Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, para que se possa avaliar a enormidade da agressão cometida contra a ordem jurídica, contra os direitos fundamentais, e, antes de tudo, contra a integridade e a dignidade de uma mulher negra e pobre.
Quanto ao mérito do pedido:
“[…..] no nosso ordenamento jurídico não se pode admitir a chamada esterilização compulsória, ou seja, nenhuma pessoa poderá ser obrigada a se submeter a esterilização, uma vez que se trata de procedimento médico invasivo, que lesa a integridade de forma irreversível.”
“A esterilização compulsória eugênica é vedada pelo Direito Brasileiro, pela Constituição da República e pelas Convenções Internacionais a que o Brasil aderiu. …Em suma, trata-se de inadmissível preconceito social contra os menos favorecidos, uma vez que existem alternativas jurídicas disponíveis de assistência social e de planejamento familiar.”
Quanto às falhas procedimentais:
“De pronto verifica-se a inadequação da via processual eleita, ensejando a carência da ação e o indeferimento da petição inicial, manifestando-se ilegítima a atuação do Ministério Público”.
“O processo é nulo de pleno direito, pois a ré não poderia ser privada de defesa efetiva, seja qual fosse a matéria em questão, mas especialmente porque aqui se debate a realização de cirurgia, em caráter compulsório, de esterilização.”
E, para concluir:
“(Essa ideia) implica despossuir a pessoa dela mesma; em semelhante perspectiva a pessoa se coisifica e longe de ser sujeito de direitos passa a ser, como a propriedade sobre objetos externos, uma função social que, mal desempenhada, dá azo à investidura da vontade alheia em domínio pleno sobre o corpo que fôra da pessoa. [……] O reconhecimento da inviabilidade da presente ação promana da rejeição, pelo Direito, dessa desoladora perspectiva”.
Quero assinalar, por fim, o seguinte: o Direito veda a concessão de liminares ou de medidas antecipadas irreversíveis. O juiz que o fizesse estaria: a) assumindo o risco de provocar um dano definitivo; b) se transformando em instância única, inibindo o exame de sua sentença por parte do órgão recursal (o que poderia ser considerado obstrução da justiça).
Estou curioso para saber o que farão, a propósito, os órgãos competentes do Ministério Público e da Magistratura. Nesse ínterim, choremos por Janaína. Porque o corpo e a alma de uma pobre, como de toda mulher, são sagrados.