por: Fernando Costa
O lançamento do filme (75 minutos aproximados) Livre Pensar – Cinebiografia da Maria da Conceição Tavares foi realizado na Unicamp no dia 19 de junho, às 18h, no auditório da Adunicamp, como parte das comemorações dos 50 anos do Instituto de Economia. O evento foi aberto ao público e teve um debate ao final da exibição entre o diretor do filme José Mariani e professores do IE.
Para meu (verdadeiro) orgulho, fui convidado a dar um depoimento a respeito da minha Professora – e amiga –, ao lado do Professor Wilson Cano. Como de hábito, meu estimado orientador no Mestrado e Doutorado exortou-nos a pesquisar o atual estado calamitoso da economia brasileira e fazer o bom combate em debate público a respeito. Estimulou-nos a buscar e propor saídas racionais para o impasse político e econômico da Nação.
Em narrativa pessoal, eu transmiti outra lição de vida: a gente tem de ir atrás de bons professores para o desenvolvimento intelectual. Mentor é aquele indivíduo experiente capaz de guiar (ou dar conselhos a) uma outra pessoa. Serve a alguém de guia, de sábio e experiente conselheiro. Ele inspira, estimula a criatividade, o livre pensar. Não necessariamente é o orientador presencial de ideias, ações, projetos, realizações etc.
Há 44 anos eu me graduei na FACE-UFMG. Aí ocorreu um ponto de ruptura na minha história. Largar a vida metropolitana, em uma cidade com boa qualidade de vida cultural, para a imersão em uma cidade do interior de São Paulo inteiramente desconhecida por mim: Campinas.
Por minha boa colocação no concurso da ANPEC (Associação Nacional de Pós-Graduação em Economia) eu poderia escolher qualquer uma das três opções inscritas. Tinha a priori descartado a FGV-RJ e a FIPE-USP. Em ambas dominavam economistas apoiadores da ditadura militar. Podia ficar no CEDEPLAR em Belo Horizonte, onde minha família morava, ou ir para a UnB, em Brasília, onde meu pai morava. Lá, antes de ir para PUC-RJ, imperava o Edmar Bacha. Sua esposa na época, a Eliane Cardoso, foi à bolsa da FACE-UFMG (sistema de alunos em tempo integral) me convidar pessoalmente para escolher a UnB. Declinei o convite. Fui atrás da minha mentora, a Professora Maria da Conceição Tavares, recém-chegada do Chile, após o golpe militar. Não a conhecia pessoalmente, mas admirava sua obra e sua combatividade.
Minha mestra nunca me deu, diretamente, conselhos pessoais, mas deu-me o mais importante para qualquer educador: bons exemplos de postura intelectual sábia e política combativa. A mentora é a pessoa responsável pelo desenvolvimento de alguém. Sua prática exemplar influencia os comportamentos de uma outra pessoa mesmo sendo de maneira virtual, não presencial ou inconsciente de sua parte.
O novo documentário de José Mariani faz um relato de sua vida e obra através de depoimentos próprios e de discípulos. Ao mesmo tempo, recupera imagens de arquivos, tanto fotos, como vídeos, e as apresenta como pano-de-fundo da evolução da obra da Professora. Fica demarcada a característica da portuguesa ser mais brasileira, em defesa da construção de nossa Nação, de maneira civilizada, em relação a quem veste a camisa amarela e sai por aí… de maneira incivilizada.
Eu não conhecia as fotos da Conceição antes migrar de Portugal para o Brasil em 1954. Vi na sua cinebiografia seu contínuo sorriso e lembrei-me, sentimentalmente, de seus risos até hoje quando a visito.
Quase ao mesmo tempo ela se enfurece com indignação face às impropriedades da vida pública brasileira e admira as virtudes da miscigenação cultural, cujo olhar estrangeiro percebe e exalta. Vocifera aos brados ou colericamente, berra, clama, profere palavrões aos gritos contra os desatinos, mas também ironiza e ri das situações absurdas.
Ela nos conta. “Veja a loucura: chegar no País durante o carnaval, em fevereiro, e presenciar a reação popular à pressão política indutora do suicídio do Presidente da República, em agosto!”
Foi apenas um breve flash do turbilhão presenciado daí em diante: golpes e contragolpes no projeto desenvolvimentista, o eterno enfrentamento entre as castas dos guerreiros-militares, mercadores, trabalhadores organizados e sábios-intelectuais, tanto à direita, quanto à esquerda. Desse lado ela sempre se colocou.
Naturalizou-se brasileira em 1957. No mesmo ano, mesmo tendo se graduado em Matemática em Portugal, decidiu estudar Economia na Universidade do Brasil (hoje UFRJ). O documentário registra seu ingresso no BNDES, trabalho na CEPAL, ida para o Chile, retorno após o golpe militar contra a experiência socialista-democrática em 1973. Prisão em cadeia militar em 1975 e soltura graças à mobilização entre os colegas até chegar ao ex-colega Mário Henrique Simonsen e daí ao general Geisel, ditador militar de plantão. Seu ingresso na vida acadêmica (UNICAMP e UFRJ), partidária (PMDB e PT), congressual (deputada) e conselheira do Lula e discípulos em seu governo. Mostra a alegria de sua festa de aniversário de 80 anos em 2010, quando até os dois candidatos à Presidência da República, ambos economistas e discípulos dela, estiveram presentes.
Contei a minha (e também de vários colegas professores do IE-UNICAMP) experiência de ter sido aluno dela no mestrado em 1976 (e no doutorado em 1985). Foi o primeiro curso dado após seu retorno do Chile. Dividiu-o com o Professor Carlos Lessa. Ela dava em uma aula cada fase dos ciclos da economia brasileira, ele apresentava em outra a política econômica da ocasião. Cada qual se rivalizava em brilhantismo intelectual.
Não em didatismo. Ela propiciava um brainstorm de ideias sobre tudo e todos. Tinha insights fantásticos aos borbotões sem tempo sequer para os alunos anotarem. Resultado: saímos da sala-de-aula encantados pelo espetáculo, mas se nos perguntassem o que tínhamos aprendido na aula, responderíamos: ficamos muito impressionados com a sapiência dela… Não conseguimos reproduzir nada. Aprendemos a aprender. Fomos estimulados a estudar muito para enfrentar os desafios intelectuais. Também a jamais falar algo sobre a economia brasileira sem mostrar evidência empírica.
Com o tempo entendemos sua impaciência com a burrice alheia. O conceito científico de idiota não se refere à pessoa carente de inteligência ou de discernimento. O tolo, ignorante, estúpido, pode até ser tolerado, mas a pessoa pretensiosa, vaidosa, tola, jamais ela perdoou. Idiota é quem não tem consciência do mal feito a si próprio e aos outros, inclusive desconhecidos.
Em consequência, a Professora tem razão em exigir-nos a preparação árdua, mas prazerosa, para enfrentar os desafios intelectuais. Seguindo seu exemplo de combatividade, aprendemos a gostar de estudar e pesquisar com o objetivo além do enriquecimento pessoal. Tratava-se de preparar-nos para o enfrentamento do debate público contra os neoliberais, voltados apenas para a defesa de O Mercado, e a favor do igualitarismo social, bandeira de esquerda compartilhada por alunos e professores.
Disse-me em certa ocasião: “com quem você acha eu aprendo hoje? Com meus discípulos! Vocês são especialistas, não são generalistas como eu. Portanto, tratem de pesquisar até aprenderem a fazer uma síntese sistêmica como eu faço.” Dotada de uma visão holística, prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico em que seus componentes são tomados isoladamente. A análise da economia como um sistema complexo exige o holismo.
E deu-nos exemplo de comportamento humilde, mas sábio. Em seminários no auditório do IE-UNICAMP, quase sempre era a única pessoa a anotar tudo de relevante dito pelos palestrantes. No debate, sempre os questionava, não só para testar a defesa de suas hipóteses, em atitude científica, mas também para sedimentar sua aprendizagem.
Era engraçado quando o interlocutor sustentava veementemente uma hipótese contrária à dela. Debatia com ele até ela mesmo passar a defender a hipótese se ficava convencida da força dos argumentos contrários.
Com os anos de acompanhamento de seus passos mesmo à distância aprendi: ela respeita as personalidades fortes, combativas, e não tolerar a arrogância esnobe. Se ela grita com alguém, aceita a pessoa retrucar com a mesma veemência e passa a respeitá-la.
Em um mundo profissional essencialmente masculino, quando passou a trabalhar em meio a economistas, abriu espaço aos gritos e impondo o respeito aos machistas através de seu brilho intelectual. Talvez, por isso mesmo, achávamos ela cobrar mais ainda das jovens economistas tímidas. Preparava-as para o combate mundano.
Exigia-nos também o conhecimento teórico plural. Como heterodoxos, tínhamos de superar o marxismo vulgar – “de merda!” –, aprendido apressadamente por conta própria, e ampliar nossa capacidade analítica com outras teorias, inclusive as ortodoxas, para melhor debatê-las – e combatê-las. O conhecimento multidisciplinar de Ciências Afins (Política, Sociologia, Psicologia, Antropologia, etc.) e História era também incentivado. Um bom economista tem de ser capaz de fazer uma abordagem pluralista nos planos da abstração, evolução e regulação.
Nesse sentido, talvez o título de sua cinebiografia seja reducionista. Com ela não se trata apenas de Livre Pensar uma teoria pura. Além de O Pensar, ela exige O Querer, isto é, a capacidade de aplicar a teoria, e mais: O Julgar. Capacidade de tomar melhores decisões é a Arte da Economia aprendida com a Professora (com P maiúsculo)!