por: Valton de Miranda Leitão

A palavra ética é atualmente e infelizmente um conceito moral de propriedade da mentalidade burguesa, portanto, existe ética dos arquitetos, ética dos engenheiros, ética dos médicos, ética do papa, ética da religião e pasmem ética do capitalismo. Na verdade, tudo não passa de um sistema de regras para coibir a cobiça, o egoísmo e a ganância dos indivíduos no interior de um grupo social.

Dessa maneira, poder-se-ia partir da filosofia ou dos costumes para dar início a essa exposição sobre o que costumeiramente se chama ética, porquanto, na perspectiva da sociocultura burguesa os bandidos também se organizam segundo uma ética.

A Antiguidade Clássica colocava nos costumes a origem da Ética, afirmando a sua regra de ouro: não faças aos outros aquilo que não desejas que te façam. Nesta perspectiva, a história humana evoluiu, contendo os impulsos desregrados da sexualidade e destrutividade, reprimindo-os através da influência religiosa dos muitos deuses no politeísmo.

A contenção e a renúncia são a marca registrada desse processo modelar no mito de Prometeu na nossa civilização prometeica. Desse modo, tanto no mito quanto na grande narrativa homérica é o outro ou os outros que servem de referência para a constituição de uma visão ética. Assim Orestes é punido por Apolo com a loucura por ter morto sua mãe adúltera, violando o princípio de que, tirar a vida de outra pessoa compete aos deuses e/ou a sua Lei.

Durante a maior parte do desenvolvimento histórico do homem o ethos que nutre a Lei esteve articulado no binômio teologia e soberania que fundaria o conceito de justiça. A filosofia busca uma saída, ou melhor, uma base, mais firme do que as dos hábitos de costumes e da religião, tendo Platão estabelecido o conceito de justiça como algo já dado, inato, universal.

O homem já teria dentro de si a compreensão do justo e do injusto, sendo sua prática em relação aos outros apenas o exercício e fortalecimento da virtude. Aristóteles não seguiu o seu mestre, mostrando que o homem está dividido entre zoe e bios, ou seja, vida animal bruta e vida qualificada na polis. Dessa forma, na sua Ética a Nicômaco, dizia que somente a vida qualificada era verdadeiramente ética. Assim inaugura a concepção de que ética e política não podem ser separadas.

No curso desta exposição pretendo, numa perspectiva geral, seguir a seguinte sequência, na qual o termo Ética não tem precisão conceitual, e veremos porque coloco a questão desse modo.

A palavra ethos em grego tanto pode significar uso ou costume como regra moral, de conformidade com a acentuação. O fato é que historicamente, conforme já vimos, se relaciona com o bem e o mal, o justo e o injusto, a virtude e o vício, a justiça e a injustiça. Tal desenvolvimentohistórico da mentalidade coletiva e da cultura humana, tanto quanto da personalidade individual sempre estiveram entrelaçados com o poder soberano ao lado da transcendência religiosa que sempre buscavam torná-las códigos jurídicos e normas bíblicas. A primeira combinação destes elementos foi a aliança da religião com a soberania, quando o Bispo Eusébio de Cesareia deu suporte teológico às ações guerreiras do imperador romano Constantino O Grande, aproximadamente em 323 d.C.

Os legionários romanos carregavam bandeiras nas quais se lia abaixo da cruz cristã a seguinte expressão latina: in hoc signo vinces (por este sinal vencerás), É interessante notar que Constantino foi um dos mais cruéis e sanguinários imperadores de Roma nas suas conquistas, sempre debaixo da cruz de Cristo. O fato importante é que Eusébio conceituava o poder do papa como auctoritas e a força do soberano como potestas. Dessa forma, quando Sartre satiriza a religião e sua aliança com o poder político em O Diabo e o Bom Deus, mostra dentro da sua perspectiva existencialista que o diabo é quase sempre o outro ou os outros.

O casamento entre as virtudes teologais e a norma geral que se consubstanciará no Direito tanto na Grécia quanto em Roma, terá sempre a rubrica do paradoxo e da ambivalência que marca a relação entre política e ética. Tais ingredientes foram bem captados na Renascença italiana por Maquiavel, posto que, deixa claro em O Príncipe, a natureza violenta da relação entre a soberania e o povo, parecendo em alguns momentos até sínico, quando diz que o soberano não deve praticar a crueldade em doses homeopáticas, mas infligir os castigos todos ao mesmo tempo, para depois recuperar seu prestígio e amor pelos bens que viera a praticar.

A vulgata maquiaveliana lhe atribui a expressão “os fins justificam os meios”, entretanto, Maquiavel apenas constatava o modo de funcionar da vida política. As suas famosas metáforas do leão, da raposa, e do Centauro Quiron exprimem respectivamente a violência, a astúcia e a sabedoria para proporcionar a cura das feridas pela medicina e pela palavra, através respectivamente dos dois animais e da figura mitológica do homem cavalo, professor do herói Aquiles.

A concepção hobbesiana de política utilizará também o poderoso mito do dragão no Leviatã, metáfora do soberano, que além de temido e amado como em Maquiavel, também estabelece um contrato com os súditos, abrindo caminho para o contratualismo que caracterizará o Contrato Social de Rousseau que, como todos sabem, será a base teórica da Revolução Francesa.

Até este ponto da exposição tratei da relação entre ética e política como consciência histórica, coletiva ou individual, portanto, embora as emoções e sentimentos humanos estejam sempre presentes nos diversos teóricos, ainda não tinham sido objeto de conceitualização mais precisa e isso se dará com Baruch Spinosa. O seu Tratado Teológico Político, juntamente com sua Ética mostrarão o notável vigor deste pensador (Séc. XVII) que recusará a lei talmúdica do Velho Testamento, mostrando que sua interpretação fica ao talante de quem o lê. Afirmando a presença de uma divindade cósmica, cuja natureza naturante se transforma em natureza naturada, Spinoza dirá que Deus não tem nome, mas está em toda parte. Chamado por uns de herege maldito e por outros de sublime crente, definirá a separação entre teologia e política, pois esta é da ordem da razão, enquanto aquela é da ordem da fé.

A revolução espinozana no plano filosófico é tão extensa que tratará na ética da relação entre razão e afeto, mostrando que a política pode ser tratada racionalmente, desde que possa conviver de modo harmônico com os afetos de tristeza e alegria, para os quais dá uma especial relevância muito próxima daquilo que Freud e principalmente M. Klein e Bion teorizarão no futuro.

Os autores que na esteira de Maquiavel, como Hobbes e Spinoza tentarão separar as exigências teocráticas do agir político, estão desde a Renascença preparando caminho para o Iluminismo, no qual a Ciência e a Razão serão os norteadores da ética pública. A superação do Estado Soberano como detentor da verdade já está de certo modo pressuposta em Spinoza e Locke, para os quais a ética ou é uma combinação da razão natural com a liberdade ou surge no contexto afetivo entre a razão e a paixão, e sempre melhor pensada pelo todo do que pela parte. Feita essa incursão nos costumes e na filosofia, vamos agora situar a questão ética, mais propriamente na dialética da práxis política.

Para isso, colocarei duas concepções centrais, partindo da história real, que Tolstoi romantizou em Guerra e Paz, para fazer o contraste com essa história que alterna guerra e paz, temos o famoso ensaio de Kant sobre a Paz Perpétua, que o homem finalmente alcançaria com sua razão. Na verdade, é na luta entre classes e na guerra (Marx), em que a práxis histórica do homem se movimenta, tendo nos intervalos, alguns momentos de paz. O general Von Clausewitz fez a famosa afirmação de que a guerra é apenas uma extensão da política, e Marx endossou essa tese na sua concepção de luta entre classes. Nessa perspectiva, a ética somente pode ser extraída da práxis histórica ou da mentalidade coletiva que tende à reificação fetichista. É essa reificação fetichista que está mais ativamente presente na mentalidade coletiva mundializada, desde quando o capitalismo deixou sua fase concorrencial no Século XVIII para assumir sua fase monopolista na passagem do Século XIX para o XX.

É a essa mentalidade que Max Weber se refere em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, no qual traz importantes conceitos sociológicos, mas fixarei somente a ideia de que os sujeitos humanos burocratizados desaparecem enquanto tais para serem objetos de um verdadeiro automatismo, tanto na indústria, quanto nos serviços. Weber busca estabelecer uma dialética entre duas éticas que chama respectivamente, da convicção e da competência, para caracterizar a relação entre paixão e razão no contexto da mentalidade burguesa. Portanto, tendo em vista, o fato de que, todo e qualquer processo histórico tem sua mentalidade inconsciente e, que essa mentalidade se infiltra na vida política, depreende-se disso, que sendo o monopólio capitalista uma batalha acirrada, a luta ocorre igualmente entre amigos e inimigos no contexto do Poder. Adam Smith sem rodeios já dissera que o capitalista é necessariamente rapace, egoísta e sem escrúpulos em relação à sociedade. O famoso texto A Riqueza das Nações, desse autor que inaugura a visão do capitalismo moderno, diz que apesar disso, uma Mão Invisível fará a distribuição da riqueza acumulada pelo conjunto da sociedade e no fim, toda população lucra com o enriquecimento do sistema capitalista.

Nesse ponto, vemos que tal dispositivo não comporta uma ética e que em princípio, qualquer preocupação ética com o bem público, está excluída desta forma de economia política. O contraponto dessa impossibilidade ética no capitalismo é o sistema constitucional jurídico político que fundará o princípio de que, “todos os são iguais perante a lei”. O judiciário, dessa forma, assume a dimensão kantiana de ser o próprio princípio ético.

Admitindo como já foi dito antes, que política e guerra se interpenetram em diferentes níveis, é possível estabelecer que a ética é sempre uma virtualidade, pois o inimigo intramuros e do outro lado da fronteira é sempre potencialmente presente. Nessa visão, o modelo mais adequado é o do nazismo, o qual se fundem uma super ética, um sistema jurídico político, um inimigo estabelecido como necessário para que exista a unidade do Estado é um fetiche que se constitui no führer.

Vocês certamente estão se perguntando, sobre onde em tudo isso entra a arquitetura. Antes de desenvolver esse ponto, gostaria de dizer que na minha perspectiva, todo e qualquer agrupamento político, pequeno, médio ou grande é movido por um motor narcísico paranóico interno. Assim, organizações médicas, de engenheiros, arquitetos, psicanalistas sempre contêm esse ingrediente, onde nascem os conflitos grupais, com cisões e coalizões, inimigos e vanguardas etc.

A norma geral que existe no Estado capitalista, constituída no judiciário, passa a se reproduzir como disciplina ou deontologia nos chamados Conselhos de Ética das diversas instituições. O mesmo espírito camaleônico que perpassa a mentalidade burguesa mundializada penetra nesses microsistemas, nos quais é mais importante o sucesso a qualquer preço, do que o comportamento justo. O exemplo mais recente foi mostrado pelo Ex-assistente técnico da CIA, Edward Snowden, que denunciou a espionagem de cidadãos considerados persona non grata pelo governo dos E.U.A. A CIA certamente tem uma deontologia ou norma disciplinar que justifica a espionagem em nome do maniqueísmo da pax americana. Portanto, se tal mentalidade burguesa é mundializada, podemos admitir que a paranóia maniqueísta que divide países e povos entre aqueles que são do bem e aqueles que são do mal, espalhou-se na cultura paranóica globalizada.

Como o Conselho de Ética dos Arquitetos está dentro do processo político, caracterizado pela mentalidade coletiva inconsciente já referida, tende a sofrer as mesmas contradições grupais como qualquer outra entidade, de médicos, políticos etc. Dessa maneira, a passagem de uma perspectiva econômico, interesseira e egoísta para uma dimensão ética integrada é tanto um problema complexo na grande política quanto na pequena política. Gramsci chama a isso catarse, que é um objetivo a alcançar, mas nunca uma totalização ética.

A história da arquitetura é marcada por diversos momentos importantes, desde quando, na Renascença e Escolástica, a arquitetura gótica pretendia abrigar o conjunto da população na catedral. A arquitetura como o direito e a filosofia sempre tentou apontar para a ética, como Gaudi, na sua grandeza religiosa, a arquitetura modernizante do Estado Novo, no Brasil e a arquitetura de uma cidade ideal, em Brasília, com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. A questão ética é que não podendo se universal exigiria a lebensreforms”ou reforma do homem proposta por Nietsche! Isso, sabemos, levou ao nazismo no qual a transvaloração se incorporou à paranoia coletiva vivida pela população alemã e pelo seu líder fetiche.

A fábula que introduz Scarlett Marton sobre Nietzsche pode ser estendida para a mentalidade burguesa contemporânea. Diz:

Um cordeirinho matava a sede à beira de um regato, quando surgiu um lobo faminto.
Procurando o que devorar, o lobo, ao ver o bichinho, gritou-lhe irritado:
─ Então, ousas turvar a água que vou beber!
─ Perdoe-me, senhor ─ respondeu com humildade o cordeiro ─, mas a água vem descendo e eu
bebo aqui no declive: não poderia turvá-la.
─ Turvas, sim; além disso, soube que falaste mal de mim há uns seis meses.
─ Não seria possível: tenho apenas três meses de idade.
─ Se não foste tu, foi teu irmão.
─ Mas eu não tenho irmãos, senhor.
─ Então, foram teus parentes: tanto eles quanto os cães e os pastores nunca me poupam.
Por isso, agora vou vingar-me.
Com essas palavras, o lobo atirou-se sobre o bichinho indefeso, arrastou-o para dentro da mata e devorou-o.

Moral da história: sempre predomina a razão do mais forte.

Qualquer semelhança com a sociedade paranoica e a barbárie capitalista atuais não é mera
coincidência.