CARTA ABERTA
TENSÕES DEMOCRÁTICAS E A POTÊNCIA DA OCUPAÇÃO

A convivência do senhor e do escravo, cada vez mais, se normaliza, tragicamente. Porém, enquanto houver um rebelde, temos uma chance.

Estamos diante de um fenômeno político de grande significação, com símbolos para além dos fatos.

É a coincidência estratégica de desenvolvimento de uma prática política de ampliação e de mudança, num processo em que a cultura rompe com a concepção reducionista eventual, para a expressão de significação, que transversaliza os modelos de Estado, na diversidade plural da sociedade.

Portanto, as contradições que a Lei Rouanet expõe nesse momento são apenas sintomas e não causas de nada. Sintomas da fragilidade dos pressupostos e critérios de definições orçamentárias da máquina estatal que reduz a pasta da Cultura ao “zero vírgula”. Na tradição patriarcal e patrimonialista procura-se manter um modelo que atrele a coisa pública ao modo privado.

O processo democrático em consolidação no Brasil, caracterizado ou protagonizado pelo acesso que respeita e incentiva a diferença e cuida da diminuição da desigualdade, tem na sociedade a sua referência.

Isso fez explodir os conflitos de visão de mundo que culminou numa grande combinação dos setores conservadores e reacionários com a participação de parte da sociedade. Instaurou-se um golpe jurídico-midiático-parlamentar sob forma de impedimento.

Assim, instalou-se um governo interino com práticas definitivas.

E qual não é a primeira medida!? … a extinção das políticas públicas ligadas ao acesso dos setores marginalizados da sociedade como mulheres, negros, homossexuais etc, culminando no Ministério da Cultura.

Aqui começa a mais importante resistência e confronto político, explicitado em “Ocupações”.

Isso ocorre no Brasil inteiro, mas a que adquire marca histórica é o “OcupaMinC”, do Palácio Gustavo Capanema, no Centro do Rio de Janeiro.

Após quase dois meses de duração, o “OcupaMinC” já acumula e materializa tempo de arte e política que imprime nesse prédio modernista, referência no patrimônio mundial, na arte e na arquitetura com Niemeyer, Lucio Costa, Le Corbusier e tantos outros, o que, por si só, se credencia para a visitação/participação desse espaço público.

Esse templo público da arte, já referência de ação política da resistência, especialmente, nos seus pilotis, na época da ditadura militar no Brasil, consolida-se agora em dupla significação: arte e política.

Votado pelo Senado o início do impedimento da Presidente Dilma, a cultura, na sua diversidade, intui o ataque à democracia em curso.

Um “abraçaço” ao palácio Gustavo Capanema, inicialmente, convocado pelos Pontos de Cultura, marcou o início da “Ocupação”.

Nesse mesmo dia, pude participar de sua primeira plenária, posicionando-me, ainda como Chefe da Representação Regional do MinC, no Rio e no Espírito Santo, quando me apresentei como demissionário que não tinha como ser demitido, pois a instituição encarregada disso estava extinta, o MinC. Nesse sentido, declarava-me “ocupante do lugar que ocupo”.

De lá para cá, entre debates abrangentes dos temas emergentes, os principais intelectuais orgânicos têm se apresentado, casados com shows de primeiríssima qualidade, notadamente nos pilotis, e uma infinitude de apresentações e troca de linguagens da arte e das ideias no mezanino do Capanema, guardando vizinhança com cerca de cem barracas que abrigam os ocupantes. Essa dinâmica convive ainda com a Agência Colaborativa de Comunicação que abriga Mídia Ninja, CUCA da UNE, TV Petroleira, TV Comunitária, Coletivo Barão de Itararé, Cafezinho…

Portanto, podemos afirmar que o Palácio Gustavo Capanema, o Ministério da Cultura e suas vinculadas, bem como os setores que compõem a gestão territorial da política de cultura, não são mais os mesmos. A relação com a coisa pública ganha outra significação, com essa presença orgânica e política da sociedade em sua manifestação e participação direta.

Qualquer que seja a perspectiva de continuidade do MinC deverá ser levada em conta essa experiência política inédita que povoou o Capanema. Aliás, algo que deveria ocorrer o tempo todo, nesse e em outros patrimônios públicos, em geral, pouco frequentados, ou com frequência burocratizada.

Importante afirmar também o tratamento responsável e reconhecido de toda obra de arte por estes ocupantes. A passagem do segundo andar habitado por Portinari e outros artistas, para o mezanino, comprova tal cuidado. A estratégia do “OcupaMinc” – pessoas que cuidam de cada área do cardápio do cotidiano – tem sido compartilhada com a administração do prédio, sua segurança, representação regional.

A cultura referência que se criou em torno do “Baixo-Capanema” atrai a juventude do Rio, mas agrega também pais e mães que encontram programações infantis de qualidade e atrai ainda adultos de diferentes origens pelo respeito à diferença, à pluralidade e à diversidade que transversaliza os debates, os shows e a diversão que recuperam o verdadeiro significado da festa, que dá sentido à vida, especialmente, nesse momento tão singular do Brasil, que em curto espaço de tempo vive esse pesadelo ou intempérie das consequências do golpe. Todas as conquistas democráticas estão sob risco.

Nesse sentido, o “OcupaMinC” constitui-se, concretamente, no símbolo de luta e resistência para as garantias da tradição democrática e constitucional que tem distinguido o Brasil no mundo. Especialmente no acesso dos empobrecidos aos seus direitos, que não é apenas o de superar a fome, mas de ser doutor, andar de avião, ou ter utensílios de consumo, como coisa normal na vida, e de expressar uma outra concepção de desenvolvimento.

Está aí uma outra prova: a de descobrir que a cultura como significação, engloba, em uma de suas dimensões, a política.

É tempo, portanto, de buscar aproximações orgânicas entre a esquerda e os movimentos novos e tradicionais, na construção democrática, onde o acesso ao público e comum amplie, prioritariamente, os setores empobrecidos da sociedade, com referência na sua potência.

Adair Rocha
Gestor Público de Cultura
Ex-Chefe da Representação do MinC no Rio de Janeiro e Espírito Santo
Professor de Comunicação na PUC-Rio e UERJ