por: Bernardo Carvalho

Um editor português que acompanha com atenção o processo do impeachment me disse outro dia que o que mais impressiona no Brasil é a falta de pensamento crítico. Eu podia ter me ofendido se em parte não concordasse. Não é que falte pensamento crítico no Brasil (há gente ótima pensando muito bem), mas é uma reflexão sem consequências –ainda mais quando vista de fora–, varrida pela ressaca de oportunismo e hipocrisia.

Algumas circunstâncias contribuíram para chegarmos a esse estado de desinteligência e grau zero do debate, a começar pela truculência de uma reação de direita reminiscente da Guerra Fria, que as mídias sociais ajudaram a galvanizar.

A mídia tradicional também teve o seu papel. Com raras exceções, que serviram para não deixá-la afundar por completo em um consenso irresponsável e descaradamente interessado, ela contribuiu com sua indignação seletiva para o processo que culminou no show de horrores da votação do impeachment na Câmara, um espetáculo de hipocrisia, burrice e desserviço cívico que nunca será esquecido.

Não é menos constrangedor perceber que alguns dos porta-vozes mais eloquentes da estratégia de “dois pesos, duas medidas” de repente se surpreendam com o monstro que ajudaram a criar (outros, mais coerentes ou simplesmente mais boçais, seguem inabaláveis) e passem, menos por vergonha do que por sobrevivência, à ponderação crítica que antes relegavam a uma segunda etapa, sob a lógica suicida de cada coisa a seu tempo. Não será tarde?

Assisti faz duas semanas ao documentário “Fogo no Mar”, de Gianfranco Rosi, vencedor do Urso de Ouro no último Festival de Berlim. A certa altura do filme, um médico da ilha de Lampedusa, levado pelas circunstâncias a trabalhar no resgate de refugiados à deriva no Mediterrâneo, diz: “Faço o que um homem deve fazer, porque é o que um homem deve fazer”. Ele não só ajuda a salvar os sobreviventes, alguns entre a vida e a morte (o que lhe garante a satisfação desinteressada de fazer o bem ao próximo), mas tem de atuar também como médico-legista, um trabalho pavoroso que o obriga a lidar, entre outros, com cadáveres de mães e filhos natimortos, ainda ligados pelo cordão umbilical. Faz “porque é preciso fazer”.

O discurso do médico soa extraterrestre no Brasil, hoje, quando os que derrubam um governo eleito pelo voto popular, sob o pretexto de punir crimes da mesma ordem dos que eles próprios cometeram, ainda têm a cara de pau de calcular se vale a pena sujar as mãos com o novo governo que eles apoiaram, formado por gente fisiológica a ponto de cogitar um bispo da Igreja Universal no lugar de ministro da Ciência. É gente que grita pela salvação da pátria (e de sua dívida pública), mas não está disposta a desembolsar nem mais um centavo por isso, enquanto ministros do STF, aos quais os olhos da nação se voltam em busca de arbitragem, articulam na Câmara a aprovação célere do aumento dos salários do Judiciário.

O homem que o médico de Lampedusa representa se tornou inconcebível entre nós, não porque ele não exista aqui, mas porque não aparece, por mais que diga o óbvio e aja de acordo com a ética que sua condição humana e profissional exige. O médico de Lampedusa não age por dinheiro, por poder, por vaidade, por interesses próprios e escusos, em nome de Deus ou da família. Faz porque é isso o que um homem deve fazer. Sem ter de alardear porcaria nenhuma. Um homem (no caso, um europeu) salvando refugiados árabes e africanos, por razões que não precisam ser explicadas, com a dignidade discreta da sua competência.

Já vejo os cínicos de plantão a zombar da minha ingenuidade. É verdade que o problema não se restringe ao Brasil. O populismo, a truculência e a ignorância vêm ganhando cada vez mais espaço também nos Estados Unidos e na Europa. Um jornal como o “Libération”, dirigido a um público educado e de esquerda, agora precisa explicar aos leitores os princípios básicos da justiça na democracia, como o direito à defesa, garantido pelo Estado até mesmo a um terrorista responsável por uma carnificina. É como se a violência dos fatos bastasse para fazer tábula rasa do espírito e da democracia, quando mais deveria reforçar os fundamentos democráticos contra a brutalidade.

A vergonha do Brasil tem a ver com o sistema político mas também com os homens. Um governo que nem começou e já se anuncia desavergonhado é o preço para salvar a economia? Mesmo? Por hipocrisia e oportunismo político, o pensamento crítico foi relegado a uma segunda etapa que, ao que parece, não vai chegar nunca.

Fonte: Folha de São Paulo