por: Tarso Genro

O pequeno Aylan está deitado de bruços numa praia da Turquia e sua cabecinha, de menino de três anos de idade, está apontada para o mar. Aylan está morto, mas parece querer voltar para a sua terra síria. É o pequeno Aylan Kurdi, de três anos de idade. numa foto que levou séculos para poder ser realizada, colorida, divulgada e, finalmente, bater em nossa porta para nos comover e perseguir para sempre. Séculos de violência colonial, monarquias protegidas pelas potências europeias, ocupações militares do ocidente, tráfico de armas originárias dos países ricos, regimes feudais de restauração colonial, construíram esta foto. Mais do que a foto que nos arrebata, construíram esta realidade de uma criança de três anos, inocente, pura, cheia de promessas de vida, morta e tombada, com a sua cabecinha orientada para o mar.

Mas Aylan não comove a todos da mesma forma. Há os que se comovem porque pensam, não só em Aylan, mas também no sofrimento das famílias que tem o direito de buscar vida nova, nos países que construíram suas riquezas internas, pelas violências externas cometidas contra os antepassados de Aylan; há os que se comovem sem compreender as raízes históricas da tragédia e tem sentimentos humanitários; há os que se comovem, porque uma foto como esta força-os, pelo menos, a simular uma revisão da intolerância com a imigração (e isso tem “custos” a serem suportados). Mas, muitos dos que se comovem, pressionados pela vida cotidiana e pelos seus próprios problemas, logo esquecem Aylan, tombado naquela praia da Turquia.

Aylan não é o náufrago da civilização europeia, porque esta civilização está representada pelos alemães, franceses, italianos, que saem às ruas para saudar os desesperados que chegam –depois de vazar muros e cercas de arame farpado- buscando horizontes em pátrias estranhas. Está representada pelos jovens ativistas que, ao longo das ásperas fronteiras da Europa oriental, levam água para as famílias sedentas nos desertos de solidariedade da Europa do capital. A civilização está representada pelas lágrimas que rolam e na indignação que explode, independentemente de que saibamos o porquê. A civilização não é Marine Le Pen nem Berlusconi, mas Albert Camus e Berlinguer. A civilização não é Eichmann, mas Jean Moulin e De Gaulle. Não é Pinochet, mas Mujica, O único consolo que nos resta é saber que Aylan já parou de sofrer. Quem sabe vai se tornar uma estrela, uma praça florida, bougainvilles ou pequenas gotas de chuva, que vão cevar terras calcinadas. É bom pensar, para sofrer menos, que os infinitos mistérios da natureza, reservam para os inocentes, tornar-se um tarro de luz que ilumina a vida dos que ficaram.

Sentir em nós Aylan, com sua cabecinha voltada para o mar e ver nele nossos filhos e netos, nossos meninos e meninas da vizinhança, que falam balbuciantes como pássaros ariscos nas manhãs de sol, é uma oração e uma forma de luta. Aylan não é o náufrago de uma civilização, mas do colonialismo europeu. O mesmo que adora o bezerro de ouro da livre circulação de capitais, mas ergue mil Muros de Berlim para circulação de seres humanos, que querem trabalho e paz.

Milhares de poemas, músicas, pinturas, celebraram a dor de quem sente solidariedade e se humaniza na barbárie. Mas, nenhuma peça destas é tão universal e pungente, como as fotos do policial turco, que anota a tragédia para História e após recolhe, no seu peito, o corpinho frágil de Aylan. E devolve-o para um mundo já tão frio como o mar que lhe sufocou.
No seu romance clássico na década de trinta, “Conversa na Sicília”, obra que influenciou toda a literatura italiana do pós-guerra, Élio Vittorini põe na boca de um dos seus personagens a seguinte fala: “O mundo é grande e belo, mas é muito ultrajado. Todos sofremos, cada um por si mesmo, mas não sofremos pelo mundo que é ultrajado, e assim o mundo continua a ser ultrajado.” Sei que é muito utópico dizer “tomemos nos nossos braços, todos, o corpinho de Aylan e rejeitemos este mundo insensato que a cada dia reafirma a sua barbárie”. Mas, faço-o, porque, se é o pragmatismo que construiu isso que aí está, só a utopia pode recriar a sabedoria e a vontade para resistir.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.