A mais aguda das crises simultâneas que vivemos é a do sistema de partidos, que exauriu o “presidencialismo de coalizão”
O processo histórico parece desenvolver-se em vagas sucessivas e contínuas, como as marés, insufladas por forças que não são menos intensas por não serem identificadas a olho nu. O que chamamos de processo histórico realiza-se no choque e no entrechoque dessas ondas que ora morrem tranquilas como espuma na praia, ora se quebram, violentas, provocando ‘ressacas’ e, no extremo, maremotos e até… tsunamis. Cada processo social engendra sua onda, e a sucessão de ondas engendra a ‘crise’ mediante a qual se consuma, se realiza para enfim sair de cena.
No Brasil de hoje, podemos afirmar que a ‘crise’ é uma superposição de crises simultâneas, de tamanhos e significados variados, sem hierarquia ou ordem de precedência, pois vivemos um sistema de crises que funcionam como vasos comunicantes que se retro-alimentam, numa espécie de autarquia perversa ou círculo vicioso.
Os otimistas dirão, comigo, que essa crise nem é especificidade brasileira, nem fenômeno de agora, pois se interliga com a crise internacional, mais uma ‘crise cíclica’ do capitalismo, evidenciada, na sua configuração atual, a partir da quebra do mercado imobiliário dos EUA (anunciada pela quebra do mercado imobiliário japonês), uma consequência do modelo de capital financeiro especulativo, cuja simples ocorrência pôs por terra as elaborações dos ‘cientistas’ do neoliberalismo.
Dessa crise, herdeira de outras tantas, o movimento tectônico mais notável foi a quebra do Lehman Brothers (EUA), com os desdobramentos conhecidas para a economia global, atingindo em cheio a Europa e particularmente a comunidade do euro, mas a ela não se limitando, pois em recessão, já longa, vive o Japão. Instalava-se, assim, para surpresa dos economistas de Chicago e da FGV, uma ‘nova onda’, similar à da década 1980-1990, marcada por crises severas tanto cambiais quanto financeiras, atingindo em cheio os países em desenvolvimento.
Era o prenúncio de mares encapelados na forma de uma nova instabilidade econômica profunda e prolongada. Para uns, entre nós, era a ameaça de um cataclismo, profundo como o crash de 1929 nos EUA, para outros, uma simples marola. Isso ou aquilo, sabemos agora, chegaria até nossos dias, e seria a justificativa do ‘ajuste fiscal’ imposto ao País, segundo o modelo prussiano, pelo governo democrático de Dilma Rousseff.
Na Europa, antes da Grécia, e no rasto da implosão do sistema financeiro dos EUA, conheceram a agonia as economias de Portugal, Itália e Espanha. A orgulhosa França de De Gaulle é, hoje, quase só um departamento da Alemanha de Merkel. À crise econômica segue-se, nas suas pegadas, a crise dos partidos progressistas e do pensamento e da ação da esquerda ocidental, quando o fracasso do neoliberalismo parecia evidente como uma fratura exposta. Talvez seja essa a grande novidade do processo que vivemos com dificuldades para interpretar.
A China, fenômeno que cobra análise própria – virtual grande planta industrial do mundo –, se não está em crise, vive, presentemente, a desaceleração de sua economia, acostumada a crescimentos anuais de seu PIB em torno ou acima de 10% ao ano, e hoje havendo de conformar-se com ‘apenas’ 7%. O mundo sabe o que isso significa para a economia global, e o sabemos muito bem os brasileiros, quando o preço de nossas commodities despencam em queda livre, e cai o volume bruto de nossas exportações – exportações, é preciso sempre lembrar, predominantemente de minérios e matérias-primas sem valor agregado, como soja em grão, carne, frangos etc.
E, assim, provamos o acre preço da reprimarização de nossa pauta de exportações, conhecemos as repercussões da teimosa política de juros altos (que Dilma intentou conter no início de seu primeiro governo) sobre a produção industrial e o consumo, associada a uma política cambial que favorece as importações e dificulta a disputa de nossas mercadorias no mercado internacional. Mesmo assim, não obstante tanta evidência, nada foi suficiente para convencer nossos industriais da necessidade de investir em inovação e desenvolvimento de tecnologias. O País, retornando à dependência agrícola dos anos 1930, realiza as promessas do capital financeiro: no vestibular da recessão, os bancos privados auferem (dados relativos a 2014) lucros variantes entre de 25 a 30% ao ano.
A crise política, que, de resto, segue os passos da crise econômica, ainda não revelou abalos sociais significativos, e o que parecia ser a ‘revolução das ruas’, a promissora ‘Primavera Árabe’, esgotou-se cedo como árvore de poucos frutos. Se restaurou a democracia ocidental na Tunísia, no Egito simplesmente trocou um presidente eleito por um ditador em armas. Igualmente não se conhecem consequências objetivas da ocupação de Wall Street, como, aliás, era previsível. Cabe aos esperançosos aguardar, torcendo pelo seu sucesso, os desdobramentos do Syriza grego e do Podemos espanhol.
A ‘onda’ das ruas caminhou e chegou até nós, e, como é de seu feitio, sem se anunciar. O marco foram as primeiras manifestações de 2013, com seu voluntarismo, com seu anarquismo, com a característica diluição de teses e palavras de ordem, que o tempo e o cansaço cuidaram de esvaziar. O que eu chamaria, sem maior reflexão, de anarco-espontaneísmo, de um lado, mostrou, com crueza, a crise dos partidos políticos, socialmente superados, mas mostrou, igualmente, a imprescindibilidade da via orgânica (mais precisamente de uma via orgânica) como instrumento até aqui não superado para canalizar energias e produzir consequências. Esvaziadas as ruas, ficou o nada de um movimento que gerou mais calor do que luz.
Na Europa, com as notáveis exceções espanhola e grega, já mencionadas, passadas as tempestades, ficaram as forças da reação ocupando os espaços cedidos pelas forças progressistas, quando mais fortes e robustas deveriam estar. Assim na Itália (que conheceu a degradação com Berlusconi), assim a França humilhada entre Hollande (representante de um partido socialista que abjurou o socialismo) e Marie Le Pen com seu fascismo ativo, assim na Grã-Bretanha, onde o partido trabalhista é a contrafação do partido conservador, por sinal seguidamente vitorioso, como acabamos de ver nas eleições da semana passada, não obstante a queda da renda média da população em 2,4% de 2010 a 2014. Assim na Alemanha, onde o reinado autoritário de Angela Merkel parece haver sepultado a socialdemocracia.
De comum nesse Ocidente ao qual pertencemos, a crise da política e nela, causa e consequência, a crise dos partidos políticos, entre nós vivendo e morrendo em lenta e perniciosa agonia.
Assim, no Brasil de hoje, a falência do sistema de partidos – caracterizados pela insustentável ausência de caráter político, de caráter ideológico e ético –, torna lógica, natural e autêntica a liderança de Eduardo Cunha, quadro representativo da Câmara que comanda e lidera; assim, torna-se lógico, coerente e compreensível que o PMDB, o partido do vice-presidente da República, seja o mais eficiente instrumento da oposição parlamentar e responsável pelas mais significativas derrotas do governo de Dilma Rousseff, cuja coordenação política administra.
Esse é o cadinho da mais grave e perdurante de nossas crises, a crise da representação, que, a um só tempo, tem origem e consequência na crise dos partidos políticos. Esta é a raiz da crise maior e mais profunda, e mais preocupante, a crise do fazer político, insinuando, lá adiante, no final do túnel, uma crise institucional de configuração indefinida aos nossos olhos de hoje.
A crise dos partidos é reconhecida por todos, e há unanimidade em torno da necessidade de uma reforma política, que, no entanto, não se faz, ou, quando se pretende levá-la a cabo, é para tornar ainda mais remota a legitimidade do processo eleitoral. Pois esse é o objetivo de quem pretende transformar em norma agasalhada pelo Direito Constitucional o financiamento das campanhas eleitorais pelo capital financeiro, a porta aberta para a corrupção legalizada, que, com o abuso do poder político, vigente em todas as esferas da vida nacional, manipula a vontade eleitoral e degenera a expressão da soberania popular. Abuso de poder desde sempre impune e hoje prática legalizada com a permissividade das reeleições.
Por fim, a mais aguda das crises, a exaustão do ‘presidencialismo de coalizão’ levada ao paroxismo pela falência do sistema de partidos. Esse nosso presidencialismo, impondo a ingovernabilidade, firmou-se como instrumento de instabilidade política, espaço das negociações e das negociatas tornadas ‘necessárias’, abastardando a política e corrompendo as instituições. Não se trata, apenas, de profligar as negociações que desconhecem o interesse público, mas de igualmente denunciar o descompasso político, ideológico e programático que se estabelece entre a vontade expressa pelo eleitorado na eleição majoritária, decidida por maioria absoluta de votos, e o caleidoscópio parlamentar derivado de 32 siglas com presença nas duas Casas, siglas sem corpo e sem alma, na maioria inorgânicas, bancadas que se reproduzem em tantos quantos sejam os interesses (quase sempre escusos) de grupos e grupelhos, por defender.
Para além dos partidos legais, e denotando a falência comum, surgem aqueles outros ‘partidos’ que realmente contam, a saber, ‘bancadas’ de interesses, como a ‘bancada dos ruralistas’, a ‘bancada da bala’, a ‘bancada evangélica’, a ‘bancada dos donos de rádio e tevê’, a ‘bancada do sistema financeiro’, a ‘bancada disso’ e a ‘bancada daquilo’. É o opróbrio da política, o cadafalso do sistema de partidos, sem os quais, todavia, é impensável o funcionamento de uma democracia representativa.
Como pensar em solidez do poder democrático, se assim o vemos ameaçado, quando mais necessitamos de seu aprofundamento? Mas dos deputados e dos senadores, senão forçados por amplo movimento de massas – e quem tem condições políticas e morais de convocá-las? Não se pode esperar que legislem abolindo os vícios e as mazelas do sistema eleitoral que asseguraram suas eleições! Daí o reino da miséria da política, a política das verbas e das ‘verbinhas’ arrancadas do erário – mediante todos os meios, inclusive a chantagem –, e negociadas com empreiteiras e a administração pública em seus diversos níveis, daí as ‘comissões’, as gorjetas, os subornos, as extorsões, as propinas. Esse sistema rejeita qualquer aprofundamento do processo democrático, como sinaliza a iniciativa popular na propositura de projetos de lei, o exercício do plebiscito e do referendo, e a revogação do mandato, o primeiro caminho para estabelecer a identidade entre o eleitor e o eleito.
São essas aspirações da democracia participativa consagradas pela Constituição de 1988 (Art.14), ainda à espera da legislação complementar, conquistas às quais outras precisam ser alinhadas, como o fim das reeleições para os cargos majoritários, a limitação das reeleições sucessivas para a mesma função parlamentar, a obrigatoriedade de renúncia do mandato parlamentar para o exercício de função no Poder Executivo, a quebra automática do sigilo bancário de todo titular de função pública, e, mantidas as eleições no mesmo ano, a separação do sufrágio majoritário do parlamentar. E, ao fim e ao cabo, a instituição de mandato único de dez anos para os titulares dos tribunais superiores.
Roberto Amaral