16 de Janeiro de 2005
Fernão Lara Mesquita*
“O tipo de opressão de que os povos democráticos estão ameaçados não se parecerá com nenhuma das que a precederam no mundo”.
(Alexis de Tocqueville, “La Démocratie en Amérique”, 1832.)
Quando estávamos, ainda, em um mundo bipolar onde as duas grandes forças divergentes atuando sobre a política mundial se moderavam uma à outra e o capital obedecia a controles muito mais rígidos que os de hoje, a principal ameaça contra a liberdade individual vinha, em geral, do abuso do poder do Estado. Hoje a realidade é bem outra. Desaparecida a União Soviética, instalou-se a incontestável hegemonia norte-americana que, neste momento, mostra ao mundo, no Iraque, a sua face mais espetacular e agressiva.
Mas não é esta a que mais me assusta.
O rebaixamento geral da proteção antitruste na economia norte-americana desencadeou, nos Estados Unidos e no resto do mundo, uma nova onda de competição desenfreada e predatória e uma incoercível tendência ao açambarcamento de todos os setores por corporações gigantes. Como corolário desse processo, a quantidade de dinheiro detido ou manipulado por essas corporações se multiplicou exponencialmente e, com isso, o seu poder de corrupção. Esse efeito, somado ao estreitamento do número de financiadores privados de campanhas eleitorais, tornou explícito um perigoso jogo de cooptação entre essas corporações gigantes e o poder político. E em nenhum setor esse fenômeno é mais visível e perigoso que no da mídia.
O processo de concentração da propriedade da mídia nos Estados Unidos é, ao mesmo tempo, causa e consequência do exagero do processo de concentração da propriedade na economia norte-americana como um todo e, por contaminação, do processo de concentração da propriedade na economia global. Só uma economia no mundo tem peso suficiente para arrastar para seus padrões de desenvolvimento todas as outras economias do mundo: a norte-americana. E só uma sociedade conta com uma democracia suficientemente forte e organizada para deter ou regulamentar esse processo: a norte-americana. Mas a imprensa – o Quarto Poder -, ferramenta essencial de acionamento da participação do cidadão no processo decisório dos Estados Unidos, traiu a sua função essencial quando chegou o momento de debater e promover a crítica de um processo do qual ela se tornou parte interessada.
A mídia foi agente, por omissão, do processo de demolição da legislação de proteção à diversidade de opiniões – talvez o segmento mais importante da legislação antitruste dos Estados Unidos – que levou à onda avassaladora de fusões de empresas de informação e entretenimento que acabou resultando no desvirtuamento do papel da imprensa na sociedade norte-americana. Como deter ou reverter esse desvio é problema dos mais intrincados.
A legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada em 1975 pela Federal Communications Comission (FCC).
Como nos Estados Unidos a mídia começou a se organizar em redes, de jornais, primeiro, e de rádios e TVs, mais tarde, desde o início do século 20, a compra de umas pelas outras começou cedo a desenhar cenários preocupantes, de controle de regiões inteiras do país por um único grupo de mídia. A legislação de 1975 visava a preservar a diversidade de opinião, considerada fundamental para o fortalecimento da democracia no país, e estabelecia alguns parâmetros simples e eficazes para a consecução desse objetivo.
- Proibia que um mesmo grupo fosse proprietário de jornais e de televisões num mesmo mercado;
- Nenhuma empresa podia ser proprietária de canais de televisão que atingissem mais do que 35% da audiência nacional;
- Uma mesma empresa só podia ter dois canais num mesmo mercado, se fossem canais de audiência pequena e se houvesse pelo menos mais oito canais disputando esse mesmo mercado;
- Uma mesma empresa não podia ter mais que uma das quatro grandes redes de TV aberta numa mesma praça;
- Proibia as fusões entre as quatro grandes redes de TV;
- Limitava o número de estações de rádio que um mesmo proprietário podia ter num mesmo mercado e impedia a montagem de redes nacionais. Mas a ideia de que o negócio de informação, sendo um negócio que envolve poder político, deveria ser tratado de forma diferente dos outros, que sustentava o regulamento da FCC, começou a ser erodida ainda no final dos anos 1970, quando a ideia de infotainment, misturando informação e entretenimento, começou a tornar as coisas menos claras no mundo do negócio da informação e serviu de pretexto para que começassem as pressões dos grupos proprietários de mídia contra as regras de 1975.
Desencadeou-se uma onda de processos das companhias interessadas no levantamento das barreiras à sua própria expansão. Era a época do “crescer ou morrer”. E cada regra que caía, beneficiando uma corporação, obrigava as demais a seguirem o mesmo caminho “para se manterem competitivas”. Sob as vistas grossas dos órgãos responsáveis pela legislação antitruste e o silêncio cúmplice da mídia, diretamente interessada em quebrar as barreiras, as fusões e incorporações iam acontecendo sem discussão.
Com George W. Bush, um novo padrão de relacionamento entre o governo e as grandes corporações se instala no país. A promessa de subsídios setoriais é uma ferramenta explícita da campanha eleitoral e as denúncias de relações espúrias com grandes grupos econômicos se multiplicam. Depois da mais controvertida de todas as eleições da história dos Estados Unidos, o governo se instala sob crise de legitimidade que só seria superada pelos atentados de Bin Laden, e debaixo de acusações de favorecimento pela Fox na cobertura dos lances até hoje mal explicados da votação na Flórida.
Com a nova administração, Michael Powell, filho de Colin Powell, ex-militar como o pai, torna-se chairman da FCC, aos 39 anos. Anuncia desde o primeiro momento sua intenção de modificar radicalmente as regras de 1975 e, em 2 de junho de 2003, cumprido o prazo legal, convoca a votação das mudanças pelos cinco membros da FCC:
- Cai o embargo à propriedade cruzada de jornais e TVs;
- O limite para as TVs passa a ser de 45% da audiência nacional;
- Alteraram-se as exigências para a propriedade de múltiplos canais (e tipos) de TV, de tal forma que o monopólio se torna possível em quase todas as cidades do país, com exceção das megalópoles onde o limite também foi ampliado. Só a restrição à fusão das quatro grandes redes e as regras para rádios permanecem inalteradas.
O processo todo rolou em meio à mobilização para a guerra no Iraque, acontecimento que, sozinho, já forçou mesmo a mídia independente a moderar sua posição crítica em relação ao governo Bush. Isso facilitou a omissão da imprensa ligada aos grandes conglomerados de sua obrigação de proporcionar o debate nacional da decisiva questão das regras de propriedade da mídia.
Tudo terá, ainda, de ser ratificado pelo Congresso, o que quer dizer, teoricamente, que se pode reverter o processo.
Mas, enquanto a discussão jurídica e legislativa prossegue em água morna, as fusões e incorporações vão matando jornais em ritmo alucinante e reduzindo enormemente as fontes de informação ao alcance dos cidadãos. Em 1983, quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente no país, o reitor da Berkeley Graduate School of Journalism, Ben Bagdikian, mostrou que a grande massa dos americanos se informava com base em notícias produzidas e veiculadas por 50 companhias diferentes. Em 2004, na sétima revisão de seu livro, sobravam só 6.
- Viacom (dona da CBS, da MTV, da Infinity Radios, da Paramount Pictures, da Simon & Schuster, da Blockbuster, e outros);
- Disney (dona da ABC, da ABC Radio Network, da ESPN, e de muito mais);
- Time Warner (dona da CNN, da AOL, e mais); – General Electric (dona da NBC, da Universal, da Vivendi…);
- News Corporation, de Murdoch (dona da Fox TV, da Harper Collins, do Weekly Standard, do New York Post, do London Times, da DirecTV, da Star e da Sky de TV por satélite na Ásia e na Inglaterra, associada à Globo para exploração de TV fechada no Brasil etc.)
- Comcast, a maior empresa de cabo dos EUA, que, recentemente, estudava uma fusão com a Disney.
O chamado Quarto Poder, essencial ao funcionamento das democracias, está, portanto, gravemente ameaçado de se dissolver na geléia geral da corrida desenfreada atrás do dinheiro. Os jornalistas, de quem antes se exigia um comportamento de fiscal do poder público pautado pela ética, vão se transformando em meros agentes de grandes conglomerados focados exclusivamente no enriquecimento de grupos de acionistas. E isso explica suficientemente a presente crise da imprensa, em torno da qual têm sido construídas tantas teorias exóticas, mas que parece ser, antes de tudo, uma crise de credibilidade. Afinal, como o público pode levar a sério, para nos fixarmos na versão francesa desse fenômeno, um jornal “socialista” patrocinado pelo barão de Rothschild (o Libération) e os seus dois concorrentes, o Figaro e o Monde, hoje propriedades de dois grupos econômicos focados na indústria de armamentos?
LIÇÕES BRASILEIRAS
O resto do mundo é mero aprendiz, em relação aos brasileiros, em matéria de concentração da propriedade da mídia e, principalmente, de ligações perigosas entre ela e o poder político. Já ultrapassamos longe esse estágio, aliás. No Brasil de hoje as duas coisas concretamente se confundem.
O ponto de partida desse processo foi o golpe aplicado por representantes de velhas oligarquias que, prestes a serem banidas do cenário político pela redemocratização do País após o regime militar, se autopresentearam repetidoras das redes nacionais de TV.
Iniciaram assim a construção de monopólios regionais de opinião e informação realimentados com verbas oficiais de propaganda de seus próprios governos, pela manipulação dos quais esses “coronéis eletrônicos” e seus clãs se eternizam no poder.
Contagem não muito recente mostrou que políticos controlam diretamente 1/4 das emissoras comerciais de televisão do Brasil: 60, de um total de 250. E esse número se refere apenas aos canais que detêm concessão governamental para gerar programação. A Rede Globo tem 21 afiliadas pertencentes a políticos, o SBT tem 17, a Bandeirantes, 9. É preciso somar a isso o resultado da multiplicação em metástase das redes de telecomunicações sustentadas por “igrejas” das últimas duas décadas. Foi-se o tempo em que as novas confissões nasciam antes; hoje, a partir de operações obscuras nas áreas de concessão e autorização para transferências de canais, forma-se primeiro a rede de comunicações e em cima dela cria-se a “confissão religiosa” que vai sustentá-la. Cada uma dessas “redes religiosas”, assim que se consolida como potencial fabricante de candidaturas, acaba criando também o seu braço político e a sua bancada no Congresso.
Esses dois mecanismos levam à criação de máfias políticas virtualmente indestrutíveis. Nos mercados publicitários incipientes do Norte e do Nordeste do País, onde não circulam verbas suficientes para sustentar, de fato, mais do que umas poucas estações de rádio, pululam as redes de rádio e TV do esquema do “coronelismo eletrônico” e das novas igrejas, que se auto-alimentam: elegem os governadores e prefeitos locais que anunciam preferencialissimamente apenas nos seus próprios meios de comunicação, matando a concorrência de inanição. Calam, assim, todas as vozes dissonantes e se tornam donos do pedaço. A reversão desse processo é praticamente impossível, pois a política de comunicações do País é definida entre os sócios das empresas a ela sujeitas, detentores de mandatos legislativos. E impedir a concorrência de se estabelecer, em vez de ampliá-la, tem sido sua preocupação primordial. Pelas normas por eles estabelecidas, proprietários de redes de TV aberta podem ser donos, também, dos sistemas de distribuição de TV a cabo ou por satélite, e sem a obrigação de carregar concorrentes, escândalo proibido em todo o resto do planeta. Por enquanto, a política para TV fechada no Brasil, de exclusiva responsabilidade de quem detém a outorga dos sistemas de carregamento (a Globo, agora associada ao grupo de Murdoch), é de mantê-la cara para os consumidores, de modo a não dividir a audiência hegemônica que ela detém na TV aberta, e inacessível para os canais de concorrentes.
Os donos de todos esses privilégios podem, igualmente, ser donos de jornais e rádios nas mesmas praças que atingem com suas TVs e subsidiar-se mutuamente em práticas que claramente caracterizam dumping, tanto nos preços que cobram pela publicidade uns dos outros, que todos veiculam, quanto nas possibilidades de mídias cruzadas que podem oferecer aos anunciantes em detrimento dos concorrentes.
É demais pensar nesse tipo de padrão no resto do mundo? É possível reverter o processo que avança nos Estados Unidos e em outros países do mundo? Tomara que seja. Mas isso só poderá acontecer se a reação começar nos próprios Estados Unidos, a economia líder do planeta que dita a velocidade em que todas as outras têm de andar.
Os Estados Unidos foram o país que primeiro sentiu a necessidade de pôr limites às ambições desmedidas. A lei antitruste – o Sherman Act, da qual as leis de proteção da diversidade de opinião eram, talvez, a parte mais importante – é de 1890. A opinião pública norte-americana parece entorpecida pelo momento de crise que o país atravessa, e desarmada pelo apelo patriótico que tem servido, mais que para qualquer outra coisa, para “patrulhar” qualquer manifestação crítica aos atos do governo. Mas não há nada que justifique que ela não se dê conta, mais cedo ou mais tarde, de que a ameaça encerrada na concentração da propriedade da mídia é muito maior, por exemplo, que a que pode vir das manobras monopolistas da Microsoft, que o povo dos Estados Unidos mantém sob permanente guerrilha judicial.
É provável, como antecipa Domenico De Masi, que a bandeira contestatória das próximas gerações venha a ser “o direito de desacelerar”, que só será obtido com o recuo dos limites para a competição econômica. Como se conseguirá isso dentro do atual modelo de democracias representativas mutiladas por sistemas de comunicação viciados é algo que ainda está por ser demonstrado.
* Jornalista, membro do Conselho de Administração de O Estado de S. Paulo. Texto extraído de comunicação apresentada ao 6.º Congresso Internacional de Jornalismo de Língua Portuguesa, em Lisboa. (http://txt.estado.com.br/editorias/2005/01/16/ger005.html)